Páscoa
Evangelho:
Jo 16, 20-23
20
Em verdade, em verdade vos digo que haveis de chorar e gemer, e o mundo se
há-de alegrar; haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há-de converter-se
em alegria. 21 A mulher, quando dá à luz, está em sofrimento, porque chegou a
sua hora, mas, depois que deu à luz a criança, já não se lembra da sua aflição,
pela alegria que sente de ter nascido um homem para o mundo. 22 Vós, pois,
também estais agora tristes, mas hei-de ver-vos de novo e o vosso coração se
alegrará, e ninguém vos tirará a vossa alegria. 23 Naquele dia, não Me
interrogareis sobre nada. «Em verdade, em verdade vos digo que, se pedirdes a
Meu Pai alguma coisa em Meu nome, Ele vo-la dará.
Comentário:
Uma vez mais se insiste na alegria.
Esta virtude tão desejável por todos os homens é
particularmente “obrigatória” para o cristão que se sabe filho de Deus em
Cristo e este conhecimento não pode senão gerar uma alegria tão intensa e
profunda que nada nem ninguém – o próprio Senhor o afirma – poderá
arrebatar-lhe.
(ama,
comentário sobre Jo 16, 20-23, 2015.05.15)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO – CONFISSÕES
LIVRO
DÉCIMO-TERCEIRO
CAPÍTULO
XXXII
A
criação
Graças te damos, Senhor!
Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material,
assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que compõe
o conjunto do Universo e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi
criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está
situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores,
como ainda esses espaços de ar, chamados também céu, onde volitam as aves do
céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam
em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas
reunidas nas planícies do mar e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível
e ordenada, mãe das plantas e das árvores. Vemos os luminares do céu brilhando
acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite,
e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o
elemento húmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a
densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das
águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem,
criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente
porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da
inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e
outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para
o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência
racional, iguais aos do homem, mas o seu sexo coloca-a sob a dependência do
sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da acção, se submete à
razão que concebe a arte do agir rectamente. Eis o que vemos, e que cada uma
dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, no seu conjunto, são
muito boas.
CAPÍTULO
XXXIII
A
matéria e a forma
Que as tuas obras te
louvem para que te amemos! Que nós te amemos, para que as tuas obras te louvem!
Elas têm o seu princípio e fim no tempo, o seu nascimento e morte, o seu
progresso e decadência, a sua beleza e a sua imperfeição. Elas têm, portanto,
sucessivamente a sua manhã e sua noite, umas ocultas; outras, manifestamente.
Foram feitas por ti do
nada, não da tua substância, nem de nenhuma substância estranha ou inferior a
ti, mas de matéria concriada, isto é, criada por ti ao mesmo tempo em que lhe
deste forma, sem nenhum intervalo de tempo. Sem dúvida a matéria do céu e da
terra é uma coisa, e a sua forma é outra; a tua matéria fizeste-a do nada, a forma,
tu a tiraste da matéria informe.
Contudo, criaste uma e
outra a um só tempo, de maneira que entre a matéria e a forma não houvesse
nenhum intervalo de tempo.
CAPÍTULO
XXXIV
Alegoria
da criação
Também meditei sobre o
significado simbólico da ordem pela qual se fez a tua criação e da ordem que a
Escritura relata. Vimos que as tuas obras, consideradas uma a uma, são boas, e no
seu conjunto, muito boas. No teu Verbo, no teu Filho único, vimos o céu e a
terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos,
quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no
tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar os teus desígnios
ocultos e de dar ordem às nossas desordens – porque pesavam sobre nós os nossos
pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. O teu Espírito
misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno.
Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a
autoridade do teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os
inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste num único corpo, com as
mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos
fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da
terra para adquirir os do céu.
Acendeste então os
luzeiros no firmamento: os teus santos, que possuem a palavra de vida e brilham
pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, para difundir a fé
entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dos sacramentos os
milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavras sagradas,
conformes ao firmamento do teu Livro, pelas quais seriam abençoados os teus
fiéis. Formaste depois a alma viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bem
ordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a alma, que não estava
sujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridade
humana para imitar, a tua imagem e semelhança; submeteste, como a mulher ao
homem, a actividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que aos teus
ministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida, que esses
mesmos fiéis propiciassem o necessário para as suas necessidades temporais;
obras valiosas de caridade, cujos frutos colherão no futuro. Vemos todas essas
coisas, e todas são muito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos
deste o Espírito, para que por ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas.
CAPÍTULO
XXXV
Prece
Senhor Deus, tu que nos
deste tudo, concede-nos a paz do repouso, a paz do Sábado, a paz do ocaso. De
facto, esta formosíssima ordem de coisas muito boas, passará quando atingir o termo
do seu destino, e terá a sua tarde como teve o seu amanhecer.
CAPÍTULO
XXXVI
O
repouso de Deus
O sétimo dia, porém, não
tem crepúsculo; não entardece porque o santificaste para que se prolongue
eternamente. E o repouso do teu sétimo dia, depois de ter criado tantas e tão
boas obras, embora sem te causar fadiga, a palavra da tua Escritura anuncia-nos
que também nós, depois de nossos trabalhos, que são bons porque assim no-lo
concedeste, encontraremos o repouso em ti, no Sábado da vida eterna.
CAPÍTULO
XXXVII
O
repouso da alma
Então também repousarás em
nós, como hoje opera em nós; e o repouso de que gozaremos será teu, como as
obras que fazemos são tuas. Mas tu, Senhor, sempre estás activo e estás sempre
em repouso. Tu não vês o tempo, não ages no tempo nem repousas no tempo; todavia,
concede-nos que vejamos no tempo, fazes o próprio tempo e o repouso além do
tempo.
CAPÍTULO
XXXVIII
O
descanso de Deus
Vemos, portanto, as tuas
criaturas porque elas existem. Mas elas existem porque tu as vês. Olhando à
nossa volta, vemos que elas existem; no nosso íntimo, vemos que são boas. Mas tu
já as viste feitas quando e onde viste que deviam ser feitas. Agora somos
inclinados a praticar o bem, depois que o nosso coração concebeu essa ideia no
teu Espírito. Outrora estávamos inclinados ao mal, desertando de ti. Tu, porém,
ó Deus, único bem, nunca cessaste de nos fazer o bem. Pela tua graça, algumas das
nossas obras são boas, mas não são eternas. Esperamos, depois de realizá-las,
repousar na tua grande santificação. Mas tu, que não precisas de nenhum outro bem,
estás sempre em repouso, porque és teu próprio repouso.
Que homem poderá dar ao
homem a compreensão desta verdade? Que anjo a outro anjo?
Que anjo ao homem? É a ti
que devemos pedir, e em ti é que a devemos buscar, é à tua porta que devemos
bater. E somente assim receberemos, somente assim encontraremos, somente assim
se nos abrirá a tua porta.
FIM
Nota:
Stº Agostinho
Nunca deixou de me espantar o raciocínio lógico e
conclusivo que torna simples e entendíveis as verdades da fé, a magnitude do
"pensamento" divino, a impecável sabedoria do arquitecto da criação.
Nunca esquecendo o seu passado de vida algo desregrada
e, até libertina, faz parecer que tenha sido necessário para encontrar o verdadeiro
caminho.
As suas 'CONFISSÕES'' são de uma autenticidade
chocante porque revelam o que verdadeiramente deve ser um coração humilhado e
contrito.
Doutor da Igreja porque, verdadeiramente, ensina e faz
doutrina.
Ensina com clareza, sem deixar a mais ínfima margem
para a dúvida; doutrina com total segurança e certeza dizendo sempre o que é,
como é, como deve ser.
Santo Agostinho tem uma dimensão gigantesca que, apesar
do muito que se tem dito e escrito está ainda muito longe de esgotar-se.
Apetece-me dizer-te, Senhor, como ele: O meu coração
está feito por Ti e para Ti e só se saciará quando estiver cheio de Ti.
Santo Agostinho é um mestre da introspecção, do exame
pessoal profundo e implacável. Estabelece como que um diálogo íntimo onde se
coloca perguntas a si próprio e procura as respostas na visão de Deus.
De facto, o exame é um diálogo expressivo e vivo com o Criador.
As soluções que encontra, as respostas que obtém,
estão sempre numa certeza insofismável de que lhe vêm de Deus. E espanta-se
como a sua pessoa merece tal cuidado e interesse do Omnipotente, aniquilando-se
e reduzindo-se a uma criatura pecadora, admite contudo que Deus lhe faça ver as
verdades da fé, não porque o mereça mas porque Deus é infinitamente
misericordioso.
No seu raciocínio procura respostas para tudo, tudo questiona, tudo analisa.
Põe a nu uma mentalidade complexa fruto de toda uma vida de choques constantes
entre a forma como a vivia e desejo de viver uma vida nova.
Sem dúvida que oração constante de sua Mãe, Santa Mónica, estará na
"base" da sua conversão.
O grande problema que enfrentava era querer compreender para poder aceitar.
Como que resiste até ao último momento porque quer ter
certezas, conclusões indiscutíveis e definitivas.
Finalmente percebe que o que pretende não está ao
alcance do ser humano porque se trata de mistérios da Fé. Não se
"entrega" sem luta mas compreende, finalmente, que se enfrenta com um
dilema: tornar-se cristão recebendo o Baptismo assumindo assim a sua total
dependência do Criador ou continuar na luta interior que tem vindo a travar.
E também entende que não tem - a sua mentalidade e espírito analítico não lhe
permitem pensar de outro modo - não tem alternativa para o que procura - e
portanto, adere à religião cristã, incorpora-se na Igreja.
A seriedade com que o faz é paradigma do seu pensamento, da dita maneira de
enfrentar a vida.
Santo Agostinho é, sobretudo, um homem sério e de uma honestidade pessoal a
toda a prova.
Expõe as suas dúvidas e ele próprio procura as respostas não dando tréguas a um
"sistema escalpelizante", que se caracteriza por avanços progressivos
de questão em questão.
Não dá um passo no seu processo de análise pessoal sem estar seguro do passo
anterior estar bem assente, resolvido.
Num processo longo mas contínuo vai como que despindo a roupagem da sua
sabedoria e reduzindo a sua pessoa a um simples ser vivo absolutamente
dependente do Criador.
Pede constantemente ao Senhor que o ilumine para que possa seguir em frente
deixando "resolvidas" as questões que se lhe colocam.
Este homem de inteligência poderosa não tem qualquer pejo em considerar-se
ignorante face à absoluta Sabedoria de Deus.
Acabará por chegar a um estado de intimidade com Deus tão profundo e completo
que não tenho qualquer dúvida em considerar como estado de santidade.
Para mim, aparte tudo o mais, Santo Agostinho é o exemplo de seriedade
intelectual e honestidade de pensamento. Não se impondo limites nas questões
interroga sobre tudo em que não está absolutamente seguro, das coisas mais
simples às mais elevadas, das evidências dos mistérios porque considera e com
razão, que o Senhor tem todas as respostas e que não deixará de lhas dar, não
por seu mérito mas pela Sua Misericórdia.
É talvez o maior exemplo do acatamento das palavras de
Jesus: batei à porta e abrir-se-vos-á, procurai e encontrareis.
Aconselho vivamente a leitura dos seus livros, nomeadamente “Confissões” e “Cidade
de Deus”, uma leitura detida e pautada por um sincero desejo de aprender as
verdades da nossa Fé.
ama, 2016