Leitura espiritual
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A Cidade de Deus |
Vol. 1
CAPÍTULO
XIV
No
seu cativeiro nunca aos santos faltaram as consolações divinas.
Mas
dirão que também muitos cristãos foram conduzidos ao cativeiro. Muito de
lamentar seria que os levassem para onde não encontrassem o seu Deus. Há nas Escrituras
Santas um grande lenitivo mesmo no infortúnio. Cativos estiveram os três
jovens; cativo esteve Daniel; cativos estiveram outros profetas. Nunca Deus
lhes faltou como consolador. Não iria abandonar os seus fiéis ao domínio de um
povo, bárbaro sim, mas humano, Aquele que não abandonou o profeta no ventre do
monstro.
Aqueles
com quem discutimos preferem zombar destas coisas a crer nelas. Todavia, também
eles nos seus escritos crêem que Arion de Metimna, célebre tocador de cítara, quando
foi arrojado de um navio, foi recebido no dorso de um golfinho e chegou assim a
terra. É certo que o que narramos acerca do profeta Jonas é mais incrível. Mais
incrível na verdade porque mais maravilhoso — mais maravilhoso porque mais
portentoso.
CAPÍTULO
XV
Régulo,
que deu um exemplo ao suportar o cativeiro espontaneamente por motivos religiosos,
nunca foi socorrido pelos deuses que adorava.
Têm
eles, entre os seus mais ilustres varões, o notabilíssimo exemplo de um
cativeiro voluntariamente suportado por motivos religiosos. Marco Régulo,
general romano, esteve cativo entre os Cartagineses. Como estes preferiam que
aqueles lhes devolvessem os seus prisioneiros a reterem em seu poder os
romanos, enviaram Régulo com os seus embaixadores a Roma com o fim primordial
de obterem a permuta. Mas antes fizeram-no jurar que voltaria para Cartago se
nada conseguisse. Para lá se dirigiu, mas exortou o Senado a não realizar a
troca dos cativos por estar convencido da sua desvantagem para o Estado Romano.
Depois desta exortação, nenhum dos seus o obrigou a voltar para o inimigo. Mas
ele cumpriu o que voluntariamente tinha jurado. Os cartagineses entregaram-no
então a horríveis e requintadas torturas, dando-lhe a morte. Com efeito, meteram-no
dentro de um apertado caixão dentro do qual tinha forçosamente de se manter de
pé; pregaram nele agudíssimos pregos, de maneira que a parte nenhuma se podia
encostar sem sofrer atrocíssimas dores e aniquilaram-no à força de vigílias.
Sem dúvida que é justificadamente que se louva tamanha virtude, maior ainda que
a sua infelicidade.
Ele
jurou pelos deuses cujo culto foi objecto de uma proibição que, segundo eles,
nos valeu as actuais desgraças infligidas ao género humano. Pois bem, se estes deuses,
aos quais se prestava culto na mira de se obter a prosperidade na vida
presente, quiseram ou permitiram a imposição de tais penas a quem se lhes
manteve fiel sob juramento — que castigos, mais duros ainda, não teriam na sua
irritação infligido o seu perjúrio? Mas porque é que do meu raciocínio não
hei-de tirar antes uma dupla conclusão? Certamente que ele de tal forma
prestava culto aos deuses que, devido ao seu juramento, nem podia deixar-se
ficar na sua pátria nem ir para qualquer outra parte; mas, sem a menor
hesitação, voltou para junto dos seus encarniçados inimigos. Não há dúvida de
que estava totalmente enganado se julgava útil a esta vida o que lhe acarretou
tão horrível morte. Com o seu exemplo elucidou-nos de que os deuses de nada
servem aos seus devotos relativamente à felicidade temporal. Com efeito, apesar
de devotado ao seu culto, foi vencido e levado cativo; e, porque não quis agir
contra o juramento feito em nome deles, depois de o terem torturado por um novo
género de suplícios, até então inaudito e horrível em excesso, suprimiram-no.
Se, porém, o culto dos deuses concede como recompensa a felicidade depois desta
vida — porque é que contra o Cristianismo levantam a calúnia de que a desgraça
de Roma resultou do abandono do culto dos deuses? Mesmo adorando-os com toda a
fidelidade, não poderia ela vir a ser tão desgraçada como Régulo? A não ser
talvez que a esta evidente verdade se oponha a loucura de uma surpreendente
cegueira, a ponto de se ousar pretender que uma cidade inteira não pode ser
infeliz quando venera os deuses, mas que um indivíduo pode sê-lo. Como se o
poder dos deuses fosse mais capaz de proteger a multidão do que o indivíduo,
sendo certo que são os indivíduos que constituem a multidão.
Mas,
dirão: M. Régulo, mesmo no cativeiro e no meio de tais tormentos físicos, pôde
conservar a sua felicidade graças à virtude do seu espírito. Procurem então uma
virtude que possa tornar feliz toda uma cidade. É certo que a felicidade da
cidade e a felicidade do homem não têm origem diversa, pois que a cidade mais
não é que a multidão dos homens em concórdia. Não discuto agora a natureza da
virtude de Régulo. Para já, basta que este nobilíssimo exemplo os obrigue a
reconhecerem que o culto dos deuses não deve ser prestado na mira dos bens corporais
ou das coisas externas ao homem. Ele preferiu
carecer
de todas elas a ofender os deuses pelos quais jurara.
Mas
que havemos de fazer com homens que se gabam de terem tido tal cidadão e
receiam ter tal cidade? Então, se isso não temem, confessem que desgraça
semelhante à de Régulo pode cair mesmo sobre uma cidade tão diligente como ele
em honrar os deuses, e deixem de caluniar os templos cristãos.
Mas
voltemos à questão já levantada acerca dos cristãos submetidos ao cativeiro.
Pois calem-se, quando a este facto se referem, os que dele se valem impudente e
imprudentemente, para zombarem da mais salutar das religiões. Se não constituiu
uma vergonha para os seus deuses o facto de o seu mais zeloso adorador, por ser
fiel ao juramento, ter renunciado à única pátria que tinha e, cativo de seus
inimigos, ter perdido a vida em torturas de inaudita crueldade após uma longa
agonia, muito menos há que incriminar o nome cristão por causa do cativeiro dos
seus santos que esperam, com verdadeira fé, a pátria celeste e se reconhecem
peregrinos nas suas próprias moradas.
CAPÍTULO
XVI
Se a
violação das virgens santas, suportada sem consentimento da sua vontade durante
o cativeiro, poderá manchar a virtude de espírito.
Julgam
que lançam à cara dos cristãos um grande crime quando, exagerando o seu
cativeiro, aludem às violações cometidas não só com as casadas e com as
donzelas núbeis, mas também com religiosas. Aqui já não é a fé, nem a piedade,
nem mesmo a virtude chamada castidade, mas a nossa própria discussão que se
encontra constrangida entre o pudor e a razão. Não nos preocupamos aqui somente
em dar uma resposta aos estranhos, mas em proporcionar um lenitivo aos nossos
irmãos na fé.
Fique
bem assente, antes de mais, que a virtude, norma de vida recta, dá as suas
ordens aos membros do corpo a partir da sua sede, a alma, e que o corpo se
santifica sendo o instrumento de uma vontade santa. Se esta permanece
inquebrantável e firme, mesmo que um estranho opere com ou no corpo acções que
não poderia evitar sem pecado próprio, não há culpa na vítima. Todavia, a violência
cometida sobre o corpo de outrem pode não somente produzir a dor mas excitar a
volúpia. Quando isto acontecer, nem por isso se arrancou da alma a sua pureza
valentemente defendida, embora o pudor fique perturbado. Não se julgue
consentido pela vontade do espírito o que talvez tenha acontecido com algum
deleite da carne.
CAPÍTULO
XVII
A
morte voluntária por medo à dor ou à desonra.
Que
sensibilidade humana se recusará a desculpar as que se suicidaram para evitarem
tal ultraje? E se alguém acusar as que se não quiseram suicidar para evitarem
com este pecado o delito alheio — esse mesmo não se livrará da acusação de
estupidez. Sabemos que não há rei que consinta que se tire a vida, inclusive ao
culpado, por iniciativa privada e, portanto, quem a si próprio se mata é
homicida.
E
é tanto mais culpado ao suicidar-se quanto mais inocente era a causa que o
levou à morte. Se justificadamente detestamos o caso de Judas; se a Verdade
decide que, ao suspender-se do laço, ele, longe de expiar, mais agravou a vilania
da sua traição, pois que, desesperando da misericórdia de Deus, fechou com um
funesto remorso todo o caminho a uma salutar penitência — muito mais se deve
abster do suicídio quem nenhuma culpa teve a expiar com tal suplício. Porque
Judas, ao matar-se, matou um celerado e, todavia, acabou a sua vida réu não
somente da morte de Cristo, mas também da sua própria morte.
Suicidou-se
por causa do seu crime e ao seu crime juntou mais outro crime. Porque é, pois,
que o homem que nenhum mal causou, contra si o vai causar? Porque é que com a
sua própria morte vai ele executar um inocente para não suportar um culpado?
Porque é que vai cometer na sua própria pessoa um pecado próprio para evitar
que nela se cometa um pecado alheio?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)