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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO XXXII
Porfírio, porque o procurou mal, não encontrou o caminho que conduz à
libertação da alma. Só a graça cristã o descobre.
Esta é a religião que possui o caminho universal da libertação da alma, pois que
nenhuma alma pode ser senão por esse caminho libertada. Este é, de certa
maneira, o caminho régio único que conduz ao reino que não desliza na vertente
do tempo, mas se afirma na estabilidade da eternidade. No fim do primeiro livro
Acerca do Regresso da alma (De regressu animae), Porfírio declara que a doutrina que propõe o
caminho universal da libertação da alma ainda não foi ensinada por nenhuma
seita, nem por qualquer filosofia de grande aceitação, nem pelas disciplinas morais
dos Indus, nem pela indução dos Caldeus, nem por qualquer outro sistema chegou
essa doutrina, por via histórica, ao seu conhecimento. Admite sem a mínima
hesitação que esse caminho existe, mas que não chegou ainda ao seu
conhecimento. Portanto, tudo o que ele tinha aprendido à custa de muito estudo
acerca da libertação da alma, tudo o que, a si e aos outros mais do que a si,
lhe parecia saber e possuir, tudo isso considerava insuficiente. Realmente,
sentia que ainda lhe faltava uma autoridade muito alta, cujas lições sobre
questão de tanta monta deveria seguir. Quando afirma que nem a mais verdadeira
lhe deu ainda a conhecer um sistema a propor o caminho universal da salvação da
alma, mostra à saciedade, bem me parece, que essa filosofia, por ele professada,
não é a mais Verdadeira ou não possui tal caminho. E como pode ser a mais
verdadeira sem conter esse caminho? Na verdade, que outro caminho universal de
salvação das almas poderá haver senão aquele pelo qual são libertadas todas as almas e sem o qual, portanto, nenhuma é libertada? Quando ele
acrescenta:
Nem pelas disciplinas morais dos Indus, nem pelaindução dos Caldeus, nem por qualquer outro sistema[i]
de forma claríssima dá testemunho de que nada do que tinha aprendido dos indus
e dos caldeus propõe este caminho universal da libertação da alma — e a verdade
é que não lhe foi possível esconder que foi buscar aos caldeus os oráculos
divinos que frequentemente vai citando.
Que pretende ele então significar com esse caminho universal que ainda não foi
proposto nem pela mais aceitável das filosofias, nem pelas doutrinas desses
povos que são tidos por célebres nas coisas a que chamam divinas por entre eles
prevalecer uma grande curiosidade pela doutrina e pelo culto de certos anjos —
caminho esse que ainda não chegou ao conhecimento da história? Que caminho
universal é esse senão o que a nação nenhuma pertence como coisa própria, mas
foi concedido por Deus para ser comum a todos os povos? Este homem, dotado de um
não medíocre engenho, certamente que não duvida de que ele existe: não crê que
a Providência divina possa deixar o género humano privado deste caminho
universal da salvação da alma. Ele não diz que não existe: apenas afirma que um
tão grande bem, um tão elevado auxílio ainda não foi recebido nem chegou ao seu
conhecimento. Não é de estranhar. Porfírio vivia então em circunstâncias humanas em que este caminho universal de salvação da alma — que outro não era
senão a religião Cristã — sofria, por permissão de Deus, os ataques dos
sectários dos deuses e dos demónios bem como dos reis da Terra; era preciso que
se assegurasse e consagrasse o número dos mártires, isto é, dos testemunhos da
verdade destinados a mostrar que é preciso suportar os males do corpo pela
fidelidade a verdadeira piedade e pela exaltação da verdade. Porfírio via isto
e estava convencido de que este caminho estava prestes a sucumbir às
perseguições e, portanto, não era o caminho universal da salvação da alma. Não
compreendia que o que o emocionava e receava suportar se escolhesse esse caminho, servia antes para tornar mais firme esse caminho e para
recomendá-lo mais eficazmente.
É, pois, este o caminho universal da salvação da alma, isto é, concedido a
todos os povos pela misericórdia divina, perante cujo conhecimento ninguém a quem
haja chegado ou venha a chegar, pode ou poderá perguntar: Porquê só agora?
Porquê tão tarde? O desígnio d’Aquele que o envia não é penetrável para o engenho humano. Porfírio bem o compreendeu
quando declara que este dom de Deus ainda não foi recebido nem levado ao seu
conhecimento. Todavia, absteve-se de o considerar falso só porque ainda o não
tinha aceitado com fé ou porque ainda não tinha chegado ao seu conhecimento.
Este é que é, digo eu, o caminho universal da salvação dos crentes, a propósito
do qual recebeu o fiel Abraão este oráculo divino:
Todos os povos serão abençoados na tua descendência.[ii]
Não há dúvida de que este era um caldeu; mas para receber tais promessas e para
se tornar naquele de quem sairia a descendência
disposta pelos anjos nas mãos do mediador,[iii]
em quem se viria a encontrar este caminho universal da salvação da alma dado a
todos os povos, ele recebeu a ordem de abandonar a sua terra, os seus parentes
e a casa e seu pai. Libertado, antes de mais nada, das superstições caldaicas,
adoptou o culto do único Deus verdadeiro e acreditou fielmente nas suas
promessas.
Este é que é o caminho universal do qual se disse numa santa profecia:
Deus tenha piedade de nós e nos abençoe; que ele faça brilhar
sobre nós a sua face para que na Terra conheçamos o teu caminho e seja a tua
salvação conhecida de todos os povos.[iv]
É por isso que, tanto tempo depois, o Salvador que assumira a carne na
descendência de Abraão, disse de si próprio:
Eu sou o caminho, a verdade e a vida .[v]
Este é que é o caminho universal do qual tanto tempo antes se profetizou:
Nos últimos dias aparecerá a montanha do Senhor, estabelecida no
cume dos montes; ela elevar-se-á acima das colinas e todos os povos virão até
ela e numerosas nações avançarão e dirão: Vinde, subamos à montanha do Senhor e
à casa de Deus de Jacob. Ele nos mostrará o seu caminho e nele entraremos.
Porque de Sião sairá a lei e de Jerusalém a palavra do Senhor.[vi]
Não é, pois, o caminho de um só povo, mas de todas as nações; a lei do Senhor e
a sua palavra não ficaram em Sião e em Jerusalém; de lá saíram e espalharam-se
por todo o universo. Daí que o próprio mediador, depois da sua ressurreição,
tenha dito aos seus discípulos tomados de medo:
Era preciso que se cumprisse o que foi escrito a meu respeito na lei, nos profetas e nos salmos. Então abriu-lhes o entendimento para que compreendessem as Escrituras e disse-lhes: era preciso que o Cristo sofresse, que ressuscitasse dos mortos ao
terceiro dia e que em seu nome fossem pregadas a penitência e a remissão dos
pecados a todos os povos a começar por Jerusalém.[vii]
Este é que é, pois, o caminho universal da libertação da alma! Foi a ele que os
santos anjos e os santos profetas anunciaram mediante o tabernáculo, o templo,
o sacerdócio e os sacrifícios — primeiro, quando o puderam, a poucos homens,
que encontraram a graça de Deus e principalmente entre o povo hebreu. (A
própria sagrada república do povo hebreu existia de certo modo, com o que para
profetizar e anunciar a Cidade de Deus que se havia de formar de todos os
povos). Eles a anunciaram por palavras, claras algumas, mas o mais das vezes
simbólicas. Porém, o próprio mediador, presente na sua carne, e os seus
bem-aventurados apóstolos, revelando a graça do Novo Testamento, mostraram mais
claramente o que, nos tempos anteriores era veladamente representado em
conformidade com a distribuição das idades do género humano — como aprouve à
sabedoria de Deus ordená-lo com o testemunho das maravilhosas obras divinas,
algumas das quais já acima citei. Realmente, não foram só visões angélicas que
apareceram, não foram só palavras dos ministros celestes que se ouviram soar;
mas também, à voz de homens de Deus, falando com humilde piedade,
os espíritos imundos foram expulsos dos corpos e dos sentidos dos homens;
foram curados vícios e enfermidades do corpo e os animais da Terra
e das águas, as aves do Céu, as árvores, os elementos, os astros obedeceram às
ordens divinas;
renderam -se os infernos e os mortos voltaram à vida;
— sem falar dos milagres particulares do próprio Salvador, sobretudo do seu
nascimento e ressurreição — no primeiro se manifestou o sacramento da
virgindade de sua mãe, e no segundo se revelou o modelo dos que hão-de ressuscitar
no último dia.
Este caminho purifica o homem todo e, a ele mortal,
prepara-o para a imortalidade de todas as partes que o
constituem. E para que se não tenha uma purificação para a parte da alma a que Porfírio chama «intelectual», uma outra para a que ele chama «espiritual», e outra ainda para o corpo, — o purificador e Salvador poderosíssimo e veracíssimo assumiu o homem
todo. Fora deste caminho — que nunca faltou ao género humano, quer no tempo em
que estes acontecimentos eram preditos, quer no tempo em que foram anunciados
como já cumpridos — ninguém foi libertado, ninguém é libertado, ninguém será
libertado.
Diz Porfírio que o caminho universal da libertação da alma não chegou ainda ao
seu conhecimento pela história. Mas que é que se pode encontrar de mais
luminoso que esta história cuja autoridade, vinda de tão alto, se impõe ao
mundo inteiro? E que mais digno de fé do que a narração dos factos passados a predizerem os futuros — e destes, muitos que estamos a ver já cumpridos nos incutem a esperança de que os
outros se hão-de cumprir?
De facto, nem Porfírio nem qualquer outro platónico podem, mesmo neste caminho
das coisas terrenas pertinentes à vida mortal, desprezar as previsões e
predições, tal como o fazem, e com razão, em relação aos outros vaticínios e
adivinhações, quaisquer que sejam os seus métodos e processos. Negam, efectivamente,
que estas coisas sejam próprias de grandes homens ou que se tenham de ter em grande
conta. Está certo. Realmente — ou acontecem com uma percepção antecipada das causas inferiores (assim, na arte médica muitos factos relativos
à saúde são previstos nos seus sinais percursores), ou são obra de imundos demónios
que anunciam antecipadamente os seus projectos e reivindicam o direito de os
realizar quer dirigindo os pensamentos e as paixões dos maus para as acções que
com eles estão em conformidade, quer agindo sobre os mais baixos elementos da
fragilidade humana.
Não foram tais predições que os homens santos, em marcha neste caminho
universal da libertação das almas, tiveram a preocupação de fazer, como se elas
tivessem grande importância, — em bora elas não lhes passassem desapercebidas e
muitas vezes as predissessem para tornarem crível tudo o que, não caindo sob a
alçada dos sentidos dos mortais, não podia impor-se nem ser verificado por uma
experiência rápida. Mas havia outros factos verdadeiramente grandes e divinos cuja
realização anunciaram na medida em que lhes era concedido conhecer a vontade de
Deus:
a vinda de Cristo em carne com os prodígios cumpridos na sua pessoa e em seu
nome;
a penitência dos homens e a conversão das suas vontades a Deus;
a remissão dos pecados, a graça da justiça, a fé dos piedosos e, no mundo
inteiro, a multidão dos que crêem no verdadeiro Deus;
a ruína do culto dos ídolos e dos demónios, a provocação dos bons nas
tentações, a purificação dos que progridem e a sua libertação de todo o mal;
o dia de juízo, a ressurreição dos mortos;
a eterna condenação da sociedade dos ímpios;
o reino da gloriosíssima Cidade de Deus gozando imortalmente da sua presença;
- tudo isto foi predito e prometido acerca deste caminho nas Escrituras: destas coisas vemos que foi já cumprida uma tão grande parte
que uma salutar piedade nos dá confiança no cumprimento do que falta. Este é
que é o caminho directo para se chegar à visão de Deus e à eterna união com ele,
que se proclama e afirma pela verdade das Sagradas Escrituras. O que nela não
crêem — e por isso não a entendem — poderão com certeza o pugnar esta verdade,
mas não poderão vencê-la.
Talvez nestes dez livros não tenhamos respondido a tudo o que alguns esperavam
de nós. Julgamos, porém, ter satisfeito, na medida em que o verdadeiro Deus e
Senhor se dignou ajudar-nos, os desejos de outros, refutando as contradições
dos ímpios que preferem os seus deuses ao criador da Cidade Santa que é o
objecto do nosso estudo.
Destes dez livros, os cinco primeiros foram escritos contra aqueles que julgam
que os deuses devem ser adorados para se alcançarem os bens desta vida; os
cinco seguintes contra aqueles para quem o culto dos deuses deve ser praticado
na m ira da vida que há-de vir após a morte.
E agora, como prometemos no livro primeiro, acerca das duas cidades que neste
século, com o dissemos, estão ligadas e misturadas uma na outra, irei expor,
com a ajuda de Deus, o que creio dever dizer a respeito da origem, desenvolvimento
e desenlace que lhes são próprios.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i]
Porfírio, De regressu animae, 1º
livro (?).
[vi]
Isaías, II, 2 e sss.