A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIV
CAPITULO IX
Perturbações da alma cujos rectos movimentos se encontram na alma dos
justos.
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Mão experimentar a dor enquanto estamos neste lugar de miséria, obtém-se, como
sentiu e disse um escritor deste século:
Obtém-se muito caro — pelo preço da crueldade da alma e da insensibilidade do
corpo.
Por isso o que os gregos lhe chamam (que, se pudesse ser, em latim se chamaria impossibilitas = impassibilidade) _ com a
condição de termos de a considerar (na alma e não no corpo) como uma vida livre
de todo o sentimento oposto à razão e perturbador do espírito — é, com certeza,
um coisa boa e desejável, mas não é desta vida. É a voz, não de quaisquer
homens, mas dos mais eminentes em piedade, em justiça e em santidade que diz:
Se dissermos que estamos sem pecado, iludimo-nos a nós próprios e
a verdade não está em nós.[i]
Essa impassibilidade só deixará de existir, portanto, quando no homem deixar de
haver pecado. Porém, agora já se vive bastante bem, vivendo sem pecado — e quem
julgar que está sem pecado consegue, não viver sem pecado, mas viver sem
perdão.
Mas se é ao estado de alma sem afecto algum que se chama impassibilidade quem
não terá esta insensibilidade pelo pior dos vícios? Pode dizer-se com razão que
a perfeita beatitude não conhecerá o aguilhão do temor nem o da tristeza. Mas
quem ousaria afirmar, sem de todo se afastar da verdade, que o amor e a alegria
serão dela banidos? E se a impassibilidade é o estado em que nenhum medo
apavora e nenhum a dor nos oprime, com certeza que é preciso excluí-los desta
vida se quisermos viver rectamente, isto é com o a Deus apraz; mas temos
simplesmente que esperar pela vida eterna e bem -aventurada que nos foi
prometida.
Esse temor de que fala o apóstolo João:
Não há temor na caridade — a caridade afasta o temor porque o
temor supõe um castigo e o que teme não é perfeito na caridade,[ii]
— esse temor não é do género daquele que fazia com que o apóstolo Paulo temesse
que os Coríntios se deixassem seduzir pela astúcia da serpente. Este temor é
próprio da caridade; mais ainda: só a caridade é que o tem. Mas aquele é um
temor que não existe na caridade, do qual é o próprio apóstolo Paulo a dizer:
Não recebeste um espirito de escravidão para estardes ainda no
temor.[iii]
Mas aquele temor casto que permanece no «século do século», se permanece mesmo
no século futuro (realmente, com o é que se pode de outra m aneira «permanecer
no século do século?»), não é o que treme perante o mal que pode surgir, mas o
que se firma (tenens) num bem que se não pode perder. Quando o amor do
bem obtido é imutável, sem sombra de dúvida que o receio de evitar o mal exclui,
se assim se pode dizer, toda a inquietação. Com o nome de «temor casto»
designa-se a vontade de que temos necessidade para repudiarmos o pecado, de
maneira que o evitarem os, não com a inquietação da fraqueza exposta ao pecado,
mas com a tranquilidade da caridade. Ou então, nenhum género de temor é
possível na certíssima segurança das alegrias eternas e bem-aventuradas, o que
se disse:
O casto temor do Senhor ficará para sempre (in saeculum saeculi), [iv]
equivale a isto que também foi dito:
A paciência do pobre jamais (in aeternum) perecerá.[v]
Não é que a própria paciência tenha de ser eterna, ela que não é necessária a
não ser onde há males a suportar — mas será eterna a meta onde se chega pela
paciência. Assim talvez se diga que o «amor casto» permanece no «século do
século» porque permanecerá aquilo a que o próprio temor conduz.
Sendo assim, com o há que levar um a vida recta para se chegar à vida
bem-aventurada, todos estes afectos são rectos numa vida recta e perversos numa
vida perversa. Mas a vida bem-aventurada e eterna possuirá um amor e uma
alegria, não apenas rectos, mas também certos: sem temor e sem dor. Assim já de
certo modo aparece o que devem ser, nesta peregrinação, os cidadãos da Cidade
de Deus, vivendo como ao espírito apraz, não como apraz à carne, isto é, com o
apraz a Deus e não com o apraz ao homem — e o que serão um dia na imortalidade
para que caminham.
Mas a cidade, isto é, a sociedade dos ímpios que vivem como aos homens apraz e
não com o apraz a Deus, que professam doutrinas humanas e demoníacas no próprio
culto das falsas divindades com desprezo da verdadeira divindade — essa cidade
é atormentada por aqueles afectos como outras tantas doenças e paixões. E se
alguns desses cidadãos parecem dominar e regrar, por assim dizer, tais afectos da alma,
tornam-se tão soberbos e tão arrogantes na sua impiedade que se incham tanto
mais quanto menos sofrem. E se outros na sua vaidade, tanto mais monstruosa quanto
mais rara, se tomam de amores pela sua própria impassibilidade ao ponto de se
não deixarem como ver nem excitar nem inclinar pelo menor sentimento, perdem toda a humanidade sem
atingirem a verdadeira tranquilidade. Efectivamente, porque é duro, nem por
isso é correcto, nem, porque é insensível, é por isso sadio.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)