Leitura espiritual
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A Cidade de Deus |
Vol. 1
CAPÍTULO
V
Costume
geral dos inimigos de devastarem as cidades vencidas. Parecer de César.
Como
escreve Salústio, historiador de notável fidelidade, já o próprio César fez
notar esse costume ao expor perante o Senado o seu parecer sobre os conjurados:
Donzelas e jovens são raptados; meninos são
arrancados dos braços dos pais; mães sofrendo os caprichos dos vencedores; templos
e casas saqueados; praticam-se morticínios e incêndios. Finalmente, armas,
cadáveres, sangue e lamentos por toda a parte. [i]
Se
não se tivesse aqui referido aos lugares sagrados, seríamos levados a crer que
os inimigos costumavam poupar as moradas dos deuses. E mais: este tratamento
não o recebiam os templos romanos das hostes estrangeiras, mas de Catilina e
dos seus partidários, nobilíssimos senadores e cidadãos romanos. Claro que se
tratava de homens perdidos e parricidas da sua pátria.
CAPÍTULO
VI
Nem
os próprios Romanos vez alguma
pouparam
os vencidos que se refugiavam
nos
templos das cidades conquistadas.
Para
que há-de a nossa exposição estender-se a múltiplos povos que entre si se
guerrearam sem pouparem em parte alguma os vencidos refugiados nas moradas dos
deuses?
Vejamos
os próprios Romanos; recordemo-los, insisto, e examinemo-los a esses mesmos
cuja principal glória, diz-se, foi a de
poupar
os vencidos e domar os soberbos. [ii]
Digam-nos
que templos costumavam exceptuar para deixarem em liberdade os que lá se
refugiavam quando saqueavam tantas e tão grandes cidades, assaltadas e tomadas
para estenderem os seus domínios. Será que assim tenham procedido sem o
consignarem os historiadores das suas gestas? Mas como é que silenciaram sinais
de tão elevada piedade homens que procuravam com todo o empenho registar feitos
dignos de louvor? Conta-se que o ilustre
romano Marco Marcelo, conquistador da bela cidade de Siracusa, chorou antes de
a arruinar e que, antes do sangue dela, correram as lágrimas dele. Tem até o
cuidado de respeitar o pudor que, mesmo num inimigo, se devia respeitar. De
facto, antes de, como vencedor, ordenar o assalto da cidade, publicou um édito
proibindo que se exercesse violência corporal sobre quem quer que fosse livre. Porém,
a cidade foi arrasada, como acontece nas guerras, e em parte nenhuma lemos
qualquer decreto em que este general tão casto e clemente tenha ordenado que deixassem
ileso todo aquele que tivesse procurado refúgio neste ou naquele templo. Não se
iria silenciar este facto, caso ele tivesse ocorrido, quando se não esconderam
as suas lágrimas ou a ordem de em nada se ofender a pudicícia.
Fábio,
que destruiu Tarento, foi louvado por se ter abstido de pilhar os ídolos. O seu
secretário consultou-o para saber o que devia fazer de tantas imagens
capturadas dos deuses — e ele temperou até a sua clemência com um gracejo.
Perguntou como eram as imagens, — e tendo-se-lhe respondido que eram muitas e
de grande tamanho e que até estavam armadas, ele replicou: «deixemos aos Tarentinos
os seus irados deuses». Se, pois, os historiadores romanos não puderam deixar
no silêncio nem o pranto de um nem o riso do outro, nem a casta piedade do
primeiro nem a jovial moderação do último, — como é que iriam então deixar de
consignar que eles pouparam fosse quem fosse por amor fosse de que deuses fosse
chegando a proibir que fossem atacados ou reduzidos ao cativeiro os refugiados
nos templos?
CAPÍTULO
VII
As
crueldades cometidas na destruição
de
Roma são o resultado dos hábitos de
guerra;
ao passo que a clemência
então
verificada resulta do poder do nome
de
Cristo.
Por
conseguinte, todas as devastações, chacinas, pilhagens, incêndios e tormentos,
que se cometeram na recente catástrofe de Roma foram produto dos hábitos de
guerra. O que porém de insólito ali ocorreu, ou seja, que, mudando o rumo dos
acontecimentos de uma forma insuspeitada, a crueldade dos bárbaros se tenha
tornado branda até ao ponto de estabelecer que, por escolha, o público enchesse
as basílicas mais amplas, onde ninguém seria ferido, donde ninguém seria
arrancado, para onde eram levados muitos que deviam ser libertados pelos
misericordiosos bárbaros, donde não seriam retirados por inimigos cruéis os que
tinham que ser reduzidos ao cativeiro — quem não vê que tudo isto deve ser
atribuído ao nome de Cristo, ao cristianismo, é cego; quem o vê mas não o
louva, é ingrato; quem se mostra contrário ao que louva, é insensato. É
impossível alguém de perfeito juízo atribuir isto à ferocidade dos bárbaros.
Quem encheu de terror as mentes ferocíssimas e sanguinárias, quem os foi
refreando e miraculosamente os abrandou, foi Aquele que, muito tempo antes,
pelo profeta havia dito:
Castigarei
com uma vergasta as suas iniquidades, e à chicotada as suas culpas; todavia,
não lhes retirarei a minha misericórdia. [iii]
CAPÍTULO
VIII
Quase
sempre as graças e as desgraças
são
comuns a bons e maus.
Alguém
dirá: porque é que esta divina misericórdia até aos ímpios e injustos se
estende? Será porque, julgamos nós, quem a concede é Aquele que
faz
levantar o Sol todos os dias sobre os bons e sobre os
maus e chover sobre os
justos e os injustos? [iv]
É
certo que alguns haverá que, disto se apercebendo, pela penitência se hão-de
corrigir da sua impiedade; outros haverá, porém, que, como diz o Apóstolo,
desprezando
as
riquezas de bondade e de tolerância de Deus [v],
estão
armazenando
de
acordo com a dureza do seu coração e conforme o seu coração impenitente [vi]
estão
armazenando, repito,
para
si castigos para o dia do castigo e da manifestação do juízo de Deus que a cada
um retribuirá segundo as suas obras [vii].
Contudo,
a paciência de Deus chama os maus à penitência e o açoite de Deus aos bons
ensina a paciência. Da mesma forma, a misericórdia de Deus rodeia os bons para os
animar, e a sua severidade castiga os maus para os corrigir. Aprouve à divina
Providência dispor para a outra vida, para os bons, de bens de que os pecadores
não gozarão, e para os ímpios, de males que não atormentarão os justos. Quis,
porém, que estes bens e males temporais fossem comuns a todos, para que nem
sejam procurados ansiosamente os bens que vemos também na posse dos maus, nem sejam
evitados, como qualquer coisa de vergonhoso, os males de que também padecem
frequentemente os bons.
O
que agora mais interessa é saber qual o uso que fazemos, quer das situações
prósperas, quer das adversas. Efectivamente, o homem bom nem se envaidece com
os bens temporais, nem se deixa abater com os males. Pelo contrário, o homem
mau sofre na infelicidade, porque se corrompe na felicidade. Mas é na
distribuição de bens e de males que Deus mais vezes patenteia a sua
intervenção. De facto, se ele desde já castigasse qualquer pecado com penas
manifestas, julgar-se-ia que nada reserva para o último juízo. E, pelo
contrário, se desde já deixasse impunes todos os pecados, julgar-se-ia que a
Providência divina não existe. O mesmo se passa com as coisas prósperas: se Deus
não as concedesse com toda a largueza a quem lhas pede, diríamos que tal não
está no seu poder; e, se as concedesse a todos os que lhas pedem, julgaríamos
que só se deve servir, na mira de tais recompensas, e servir assim, em vez de
nos tornar santos, tornar-nos-ia mais ambiciosos, mais avaros.
Lá
porque é assim — que os bons e maus sofrem as mesmas provas — nem por isso
vamos negar a distinção entre uns e outros porque distinto não é o que uns e
outros sofrem. Mantém-se, na realidade, a diferença dos que sofrem, mesmo na
semelhança dos sofrimentos. Ainda que estejam a sofrer do mesmo tormento, a
virtude e o vício não se identificam. Assim, sob um só fogo, o ouro rebrilha e
a palha fumega; sob o mesmo trilho, a palha tritura-se e o grão limpa-se; assim
como a água ruça não se confunde com o azeite embora saiam espremidos da mesma
prensa, — o único e mesmo golpe, caindo sobre os bons, põe-nos à prova,
purifica-os, afina-os e condena, arrasa, extermina os maus. Daí que, na mesma
aflição: — os maus abominam a Deus e blasfemam, e os bons dirigem-Lhe as suas
súplicas e louvam-No. O que mais interessa não é o que se sofre, mas como o
sofre cada um. Agitados com o mesmo movimento — a imundícia exala um fedor
insuportável, e o unguento, um suave perfume [viii].
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Rapi
virgines, pueros, divelli liberos a parentum complexu, matres familiarum pati
quae victoribus conlibuisset, fana atque domos spoliari, caedem incendia fieri:
postremo armis cadaveribus cruore atque luctu omnia compleri. Salústio, De
Conjuratione Catilinae, LI, 9.
[ii]
Parcere
subjectis et debellare superbos.
Vergílio,
Eneida, VI, 853.
[iii]
Visitabo
in virga iniquitates eorum et in flagellis peccata eorurn; misericordiatn autem
meam non dispergam ab eis.
Salmo
LXXXVIII, 33-34.
[iv]
Cotidie
facit oriri solem suum super bonos et malos, et pluit super justos et injustos.
Mat.,
V, 45.
[v]
Divitias
bonitatis et longanimitatis Dei.
Rom.
II, 4.
[vi]
Secundum duritiam cordis sui et cor impaenitens.
Rom.,
II, 5.
[vii]
Sibi
iram in die irae revelationis justi judicii Dei, qui reddet unicuique secundum
apera ejus.
Rom.,
II, 5-6.
[viii]
Distribuição
dos bens temporais.
Deus
faz brilhar o sol e faz chover sobre os bons e sobre os maus.
Mais
que isso: parece preferir os maus aos bons na distribuição desses e demais bens
materiais.
É
esta uma situação que sempre na vida dos homens, através de todas as gerações,
vem sendo posta com angústia e escândalo. Já os Judeus sobre ela meditavam no
Eclesiástico e em Job.
Santo
Agostinho apresenta várias soluções que, no fim de contas, se vêm a unificar:
Esses
bens são concedidos mesmo aos santos — para que se não pense que não são bons
esses bens: são bens, embora de valor inferior aos bens do espírito, à virtude.
São
também concedidos aos maus — para que os santos não pensem que são os bens
supremos. Em relação a outros, são bens de inferior categoria, que até aos maus
podem ser concedidos — e por isso os bons não devem ter apego a eles e por
causa deles perder de vista os bens não temporais.
Concedem-se
aos maus, porque não são tão maus que não mereçam qualquer recompensa por algum
bem que pratiquem. Concedem-se aos bons, para que não percam a coragem em se
converterem com receio de os perderem.
Na
desolação e adversidade, a divina Providência não deixa o justo sem a
consolação desses bens, não vá ele esmorecer; na prosperidade prova-o,
retirando-lhos, não vá com eles corromper-se, mas a felicidade dos maus
detentores desses bens é aparente: o remorso rói-lhes a alma. Não há motivo
para os invejar.
Os
bens temporais são concedidos a todos — aos maus, porque é a sua paga por algum
bem que façam; aos bons, para que não receiem a conversão sem eles. Se, porém,
fossem concedidos só aos bons, julgar-se-ia que só por eles se tomariam bons.
Se fossem concedidos só aos maus, os bons não se converteriam, porque receariam
perder o que afinal não deixa de ser um bem.
Se
não fossem retirados senão aos bons — os débeis não se converteriam aos bens
mais altos, com receio de perder os bens da Terra; se não fossem retirados
senão aos maus, julgar-se-ia que nisso e só nisso consistiria toda a sua pena.
Sobre o assunto, v. R. Jolivet, Le probl.
Du mal chez S. Augustin (in Arch. de
Phil. VII, 2, 1930); G. Philips, La
raison d’Etre du mal, d’après Saint Augustin, Louvain, 1927.