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A Cidade Deus |
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CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO XVIII
Contra os que negam, a propósito dos milagres cumpridos para a instrução do
povo de Deus, que se deva crer nos livros da Igreja.
Haverá alguém que diga que esses milagres são falsos, que nunca se realizaram,
que mais não são que escritos com mentiras? Se alguém pretende com isto dizer
que, em tais assuntos, absolutamente nenhum escrito é digno de crença, também
pode dizer que nenhum deus cuidou dos mortais. Com efeito, que esses deuses não
conseguiram convencer os homens a prestarem-lhes culto senão operando obras
maravilhosas, atesta-o a história das nações cujos deuses souberam
manifestar-se mais prodigiosos do que úteis. Por isso, nesta obra, de que já
temos em mãos o décimo livro, não procuram os refutar os que negam todo
o poder divino ou sustentam que este se não ocupa das coisas humanas;
dirigimo-nos aos que antepõem os seus deuses ao nosso Deus, fundador da santa e
gloriosíssima Cidade, ignorando que o mesmo é fundador invisível e imutável deste
Mundo visível e mutável e dispensador veríssimo desta vida feliz que vem dele e
não das coisas
que criou.
Diz, com efeito, o seu fidelíssimo profeta:
Para mim o estar unido a Deus é que é bom '.
Discute-se entre os filósofos qual o último bem para a aquisição do qual devem
tender todos os nossos deveres, profeta não disse: «para mim é bom abundar em
riquezas distinguido pela púrpura e pelo ceptro ou sobressair pelo diadema»;
nem, com o se não envergonharam de dizer alguns filósofos: «o meu bem é o prazer
do corpo»; ou melhor, com o parece que disseram os melhores: «o meu bem é a
virtude da minha alma». O que ele disse, foi:
Para mim o estar unido a
Deus é que é bom '.
Quem isto lhe ensinara foi Aquele que é o único digno das honras
do sacrifício, com o os seus santos anjos nos advertiram, confirmando-o com
milagres. Por isso, Ele próprio se tornara sacrifício d’Aquele cujo fogo
inteligível o tinha arrebatado e abrasado e para Quem o impelia o santo desejo
de um incorpóreo abraço.
Se, pois, os adoradores duma multidão de deuses (seja qual for a opinião que
deles tenham ) acreditam nos milagres feitos por esses deuses ou dão crédito à
história das coisas profanas ou aos livros mágicos, ou, o que lhes parece mais
honesto, aos livros teúrgicos — porque se recusam a crer nos factos testemunhados pelas Escrituras cuja autoridade é
tanto maior quanto mais acima de todos está Aquele unicamente a Quem elas
prescrevem que se ofereçam sacrifícios?
CAPÍTULO XIX
Motivo por que se deve, segundo a verdadeira religião, oferecer um
sacrifício visível ao único Deus invisível e verdadeiro.
Julgam alguns que esses sacrifícios visíveis convêm aos outros deuses, mas que
ao Deus invisível, maior e melhor, convêm sacrifícios invisíveis, maiores e
melhores, tais como as homenagens de uma alma pura e de um a boa vontade. Não
há dúvida que estes ignoram que os sacrifícios visíveis são sinais dos
invisíveis, com o as palavras pronunciadas são sinais das coisas.
Por isso é que, assim como nas nossas preces e nos nossos louvores dirigimos os
sinais das nossas palavras àquele a quem oferecem os em nosso coração as
próprias realidades que significamos, — assim também, ao oferecermos um
sacrifício, sabemos que o sacrifício visível não deve ser oferecido senão
Àquele para quem nós devemos ser, no nosso coração, o sacrifício invisível. E
então que os anjos e as virtudes superiores, cuja bondade e piedade mais
aumentam o seu poderio, nos concedem os seus favores e partilham da nossa
alegria. E se a eles mesmos quisermos oferecê-los, eles não os aceitam de bom
agrado e, quando são enviados aos homens de forma que se note a sua presença,
negam-se terminantemente a aceitá-los. Há disto exemplos nas Sagradas
Escrituras: alguns julgaram que deviam prestar aos anjos pela adoração e pelo
sacrifício a honra que apenas a Deus é devida; foram disso impedidos por
admoestação deles, que ordenaram os tributassem apenas Aquele a quem sabem
serem devidos.
Os santos homens de Deus imitaram os santos anjos: Paulo e Barnabé, em
Licaónia, por terem realizado uma cura miraculosa, foram tomados por deuses. Os
licaónicos quiseram imolar-lhes vítimas. Mas na sua humilde piedade repeliram
essa honra e anunciaram-lhes o Deus em Quem deviam acreditar. E, se os
espíritos embusteiros orgulhosamente os exigem para si próprios, é unicamente
porque sabem que eles são devidos ao verdadeiro Deus. Porque, na verdade, não é
no fedor dos cadáveres que se comprazem, como pensam alguns e o diz Porfírio,
mas sim nas honras divinas. Aliás, desses fedores têm eles grande abundância
por toda a parte e, se mais quisessem, eles próprios a si mesmo os poderiam
fornecer. Portanto, os espíritos que se arrogam a divindade deleitam-se, não
com o fumo dos corpos mas com a alma do suplicante sobre a qual dominarão
depois de o terem enganado e escravizado; e, assim, vedam -lhe o caminho que
conduz ao verdadeiro Deus para que ele, homem, não seja sacrifício de Deus,
quando sacrifica em honra de outrem em vez de sacrificar a Deus.
CAPÍTULO XX
Do verdadeiro e supremo sacrifício cumprido pelo próprio Mediador de Deus e
dos homens.
Por isso o verdadeiro Mediador, que, ao tomar a forma de escravo, se tornou
mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus-Cristo, sob a forma de Deus,
aceita o sacrifício com o Pai, com o qual é um só Deus; mas, sob a forma de
escravo, preferiu ser sacrifício a aceitá-lo, para que ninguém aproveitasse
esta oportunidade para sacrificar a qualquer criatura. É por isto que Ele é
sacerdote: é Ele quem oferece, é Ele a oblação. Desta realidade quis que seja
sacramento quotidiano o sacrifício da Igreja que, sendo corpo da mesma cabeça,
aprendeu a oferecer-se a si própria por intermédio d’Ele. Sinais variados e
múltiplos deste verdadeiro sacrifício eram os antigos sacrifícios dos santos,
sendo eles figura deste único sacrifício, como se, por muitas palavras, se
expressasse uma só realidade para ser bem ponderada sem causar enfado. Comeste
supremo e autêntico sacrifício cessaram todos os falsos sacrifícios.
CAPÍTULO XXI
Do grau de poder concedido aos demónios tendo em vista a glorificação, pela
paciência dos seus sofrimentos, dos santos que venceram os espíritos aéreos,
não os apaziguando, mas permanecendo fiéis a Deus.
Em tempos limitados e previamente fixados foi mesmo permitido aos demónios um
poder que lhes permite incitar os homens que eles dominam e neles fomentar
tiranicamente ódios contra a Cidade de Deus. Aceitam os sacrifícios de quem
lhos oferece; reclamam-nos de quem já a isso está disposto; chegam a
extorqui-los violentamente pela perseguição daqueles que a isso se recusam.
Todavia, a sua conduta, longe de ser nociva à Igreja, é-lhe antes proveitosa
porque completa o número de mártires; e a estes a Cidade de Deus tem-nos por
cidadãos tanto mais gloriosos e ilustres quanto mais valentemente lutaram até
ao sangue contra o pecado da impiedade.
Se a linguagem habitual da Igreja o permitisse, chamar-lhes-íamos, com mais
propriedade, os nossos heróis. De facto, este nome, diz-se, provém de Juno,
porque Juno em Grego chama-se “IIpa — donde não sei qual dos seus filhos, segundo
as fábulas dos gregos, teria tomado o nome Herói. O sentido místico
desta fábula era o de que a Juno tinha sido atribuído o domínio do ar, morada,
como eles pretendem, dos demónios e dos heróis, e designam por este nome as
almas dos defuntos decerto mérito. Mas é num sentido contrário que os nossos
mártires seriam amados heróis se, como disse, o permitisse o uso da linguagem
eclesiástica: não porque vivessem no ar na companhia dos demónios, mas porque
venceram os próprios demónios, potências do ar, e neles a própria Juno — seja
qual for o seu significado — tão justamente apresentada pelos poetas como
inimiga da virtude e ciosa dos homens fortes que aspiram ao Céu. Mas de novo
Vergílio sucumbe perante ela e cede desastradamente, depois do que ela diz na
Eneida:
Por Eneias sou vencida.[i]
O próprio Eneias recebe de Heleno este conselho como que religioso:
Oferece de boa vontade os
teus votos a Juno e com súplices oferendas vence a poderosa soberana [ii].
Segundo esta opinião, que não emite como sua mas como vinda de outros, Porfírio
diz que deus bom ou bom génio não virá a um homem se o mau não for antes
apaziguado: como se as divindades más fossem mais fortes do que as boas — pois
que as más impedem a assistência das boas; elas não deixam o lugar senão depois
de terem sido apaziguadas e, contra a sua oposição, as boas não podem ser
úteis; mas as más podem causar mal sem que as boas lhes possam resistir!
Não é este o caminho da verdadeira e verdadeiramente santa religião; não foi
assim que os nossos mártires triunfaram de Juno, isto é, das potências aéreas
invejosas das virtudes dos santos. Os nossos heróis, se nos é permitido usar
deste nom e, triunfaram de Hera por virtudes divinas e de forma nenhuma por
«súplices oferendas». Cipião foi mais a propósito cognominado «O Africano» ao
triunfar da África pelo seu valor do que se tivesse aplacado os seus inimigos
com dávidas para o pouparem.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i]
Vergílio, Eneida, VII, 310.
[ii]
Vergílio, Eneida, III, 438-439.