Cristo que passa 31 a 33
31
Ainda não há muito tempo,
tive oportunidade de admirar um baixo-relevo em mármore, que representa a cena
da adoração de Deus Menino pelos Reis Magos.
Emoldurando esse
baixo-relevo, havia outros: quatro anjos, cada um com seu símbolo - um diadema,
o mundo coroado pela cruz, uma espada e um ceptro.
Deste modo, utilizando
símbolos bem conhecidos, ilustrava-se plasticamente o acontecimento que hoje
comemoramos: uns homens sábios - reis, segundo a tradição - prostram-se diante
do Menino, depois de perguntar em Jerusalém: Onde está o rei dos judeus que
acaba de nascer?
Também eu, instado por
esta pergunta, contemplo agora Jesus, deitado numa manjedoura, num lugar que só
é próprio para os animais.
Onde está, Senhor, a tua
realeza: o diadema, a espada, o ceptro? Pertencem-lhe e não os quer; reina
envolto em panos.
É um rei inerme, que se
nos apresenta indefeso; é uma criança. Como não havemos de recordar aquelas
palavras do Apóstolo: aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo.
Nosso Senhor encarnou para
nos manifestar a vontade do Pai.
E começa a instruir-nos
estando ainda no berço. Jesus Cristo procura-nos - com uma vocação, que é
vocação para a santidade -, a fim de consumarmos com Ele a Redenção.
Considerai o seu primeiro
ensinamento: temos de co-redimir à custa de triunfar, não sobre o próximo, mas
sobre nós mesmos.
Tal como Cristo,
precisamos de nos aniquilar, de sentir-nos servidores dos outros para os
conduzir a Deus.
Onde está o nosso Rei?
Não será que Jesus quer
reinar, antes de mais, no coração, no teu coração?
Por isso se fez menino:
quem é capaz de ter o coração fechado para uma criança?
Onde está o nosso Rei?
Onde está o Cristo que o
Espírito Santo procura formar na nossa alma?
Cristo não pode estar na
soberba, que nos separa de Deus, nem na falta de caridade, que nos isola dos
homens.
Aí não podemos encontrar
Cristo, mas apenas a solidão.
No dia da Epifania,
prostrados aos pés de Jesus Menino, diante de um Rei que não ostenta sinais
externos de realeza, podeis dizer-lhe: Senhor, expulsa a soberba da minha vida,
subjuga o meu amor-próprio, esta minha vontade de afirmação pessoal e de
imposição da minha vontade aos outros.
Faz com que o fundamento
da minha personalidade seja a identificação contigo.
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O caminho da fé
Não é fácil esta meta da
identificação com Cristo.
Mas também não é difícil,
se vivemos de acordo com os ensinamentos do Senhor, isto é, se recorrermos
diariamente à sua Palavra, se impregnarmos a nossa vida da realidade
sacramental - a Eucaristia - que Ele nos deixou como alimento, porque o caminho
do cristão é andadeiro, como diz uma antiga canção da minha terra.
Tal como os Reis Magos,
descobrimos uma estrela que é luz, rumo certo no céu da nossa alma.
Vimos a sua estrela no
Oriente e viemos adorá-lo.
Também nós vivemos esta
experiência.
Também nós sentimos que,
pouco a pouco, se acendia na nossa alma uma luz nova: o desejo de ser cristãos
em plenitude, o desejo, por assim dizer, de tomar Deus a sério.
Se cada um de nós
começasse agora a contar em voz alta o processo interior da sua vocação
sobrenatural, não poderíamos deixar de pensar que tudo isso foi divino.
Agradeçamos, pois, a Deus
Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo e a Santa Maria - por cuja intercessão
chegam até nós todas as bênçãos do Céu - este dom, que, a par da fé, é o maior
que o Senhor pode conceder a uma criatura: a firme determinação de alcançar a
plenitude da caridade, com a convicção de que também é necessária, e não apenas
possível, a santidade no meio dos afazeres profissionais, sociais...
Considerai a delicadeza
com que o Senhor nos dirige este convite. Exprime-se com palavras humanas, como
um apaixonado: Eu chamei-te pelo teu nome... tu és meu.
Deus - que é a Beleza, a
Sabedoria, a Grandeza - anuncia-nos que somos seus, que fomos escolhidos como
objecto do seu amor infinito. É precisa uma vida forte de fé para não
desvirtuar esta maravilha que a Providência depõe nas nossas mãos, uma fé como
a dos Reis Magos, que nos leva a ter a certeza de que nem o deserto, nem a tormenta,
nem a tranquilidade do oásis nos impedirão de chegar à meta do presépio eterno:
a vida definitiva com Deus.
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Caminho de fé é caminho de
sacrifício.
A vocação cristã não nos
tira do nosso lugar, mas exige que abandonemos tudo o que estorva a vontade de
Deus.
A luz que se acende na
nossa alma é apenas o começo; temos de segui-la, se queremos que se torne
estrela e depois sol. Enquanto os Magos estavam na Pérsia - escreve S. João
Crisóstomo - não viam senão uma estrela, mas quando abandonaram a pátria viram
o próprio sol da justiça.
Pode dizer-se que não
teriam continuado a ver a estrela se tivessem permanecido no seu país.
Apressemo-nos, pois, nós
também; e embora todos no-lo impeçam, corramos para casa desse Menino.
Firmeza na vocação
Vimos a sua estrela no
Oriente e viemos adorá-lo.
Ao ouvir isto, o Rei
Herodes ficou perturbado, e com ele toda a cidade de Jerusalém.
Esta cena continua a
repetir-se nos nossos dias.
Perante a grandeza de
Deus, perante a decisão - seriamente humana e profundamente cristã - de viver
de modo coerente com a fé, há quem fique desconcertado, e mesmo quem se
escandalize, sem nada entender.
Dir-se-ia que não admitem
a existência de outra realidade para além dos seus acanhados horizontes
terrenos.
Em face das manifestações
de generosidade que observam no comportamento dos que ouviram o chamamento do
Senhor, sorriem com displicência, assustam-se, ou então - em casos que parecem
verdadeiramente patológicos - obstinam-se em pôr obstáculos à santa determinação
tomada por uma consciência com plena liberdade.
Já várias vezes tive
oportunidade de assistir a essa espécie de mobilização geral contra quem se
decide a dedicar toda a sua vida ao serviço de Deus e do próximo.
Há pessoas que estão
convencidas que o Senhor não pode escolher quem quer que seja sem lhes pedir
primeiro autorização a eles; e de que o homem não tem inteira liberdade para
aceitar ou recusar o Amor.
Para quem pensa desse
modo, a vida sobrenatural de cada alma é algo de secundário; julgam que se lhe
deve prestar atenção, mas só depois de satisfeitos os pequenos comodismos e os
egoísmos humanos.
Se fosse assim, que seria
do cristianismo?
As palavras de Jesus,
cheias de amor e ao mesmo tempo de exigência, são só para ouvir, ou para ouvir
e pôr em prática?
Ora Ele disse: sede
perfeita, como o vosso Pai celestial é perfeita.
Nosso Senhor dirige-se a
todos os homens, para que venham ao seu encontro, para que sejam santos.
Não chama só os Reis
Magos, que eram sábios e poderosos; antes disso tinha enviado aos pastores de
Belém, não simplesmente uma estrela, mas um dos seus anjos.
Mas tanto uns como outros
- os pobres e os ricos, os sábios e os menos sábios - têm de fomentar na sua
alma a disposição de humildade que permite ouvir a voz de Deus.
Considerai o caso de
Herodes.
É um poderoso da terra e
tem oportunidade de recorrer à colaboração dos sábios: convocando todos os
príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de
nascer o Messias.
O poder e a ciência não o
levam ao conhecimento de Deus.
Para o seu coração
empedernido, o poder e a ciência são instrumentos da maldade: o desejo inútil
de aniquilar Deus, o desprezo pela vida de um punhado de crianças inocentes.
Prossigamos na leitura do
Santo Evangelho.
Eles responderam: - em
Belém de Judá, porque assim está escrito pelo Profeta: E tu, Belém, terra de
Judá, não és por certo a mínima entre as principais cidades de Judá, pois de ti
sairá um chefe que há-de comandar Israel, meu povo.
Não nos podem passar
despercebidas estas manifestações da misericórdia divina: quem veio redimir o
mundo nasce numa aldeia ignorada.
Na verdade, Deus não faz
acepção de pessoas, como nos repete a Escritura com insistência.
Ao convidar uma alma para
uma vida de plena coerência com a fé, não toma em conta a fortuna, a nobreza de
família, os altos graus de ciência.
A vocação precede todos os
possíveis méritos: a estrela que tinham visto no Oriente, ia adiante deles até
que, ao chegar sobre o lugar onde estava o Menino, parou.
A vocação está antes de
tudo; Deus ama-nos antes de que saibamos sequer dirigir-nos a Ele e infunde em
nós o amor com que podemos corresponder-lhe.
A bondade paternal de Deus
vem ao nosso encontro.
Nosso Senhor não se limita
a ser justo; vai muito mais além: é misericordioso.
Não espera que nos
dirijamos a Ele; antecipa-se, manifestando por nós, de modo inequívoco, amor de
pai.
(continua)