LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis)
SEGUNDA PARTE
CAPITULO 13
Os
sagrados estigmas
1. O angélico Francisco
não tinha por hábito descansar enquanto estivesse à procura do bem, mas, como
os espíritos angélicos na escada de Jacob, ou subia até Deus ou descia até ao
próximo.
O tempo que lhe fora
concedido para obter méritos aprendera, Francisco a dividi-lo prudentemente:
uma parte destinava às fadigas apostólicas em beneficio do próximo e outra à tranquilidade
e aos êxtases da contemplação.
Depois de trabalhar pela
salvação dos outros, de modo variado segundo as exigências de tempo e lugar,
afastava-se das multidões e de seu tumulto, procurava na solidão um lugar tranquilo
para pensar no Senhor em plena liberdade de espírito e sacudir a poeira que pudesse
aderir à alma durante sua passagem entre os homens.
Após múltiplos trabalhos,
enfim, Francisco foi conduzido pela divina Providência, dois anos antes da
morte, até ao eremitério muito alto chamado monte Alverne.
Tinha começado, segundo
seu costume, o jejum quaresmal em honra de São Miguel, quando começou a
sentir-se inundado de extraordinária suavidade na contemplação, aceso da mais
viva chama de desejos celestes, cumulado das mais copiosas graças do céu.
Elevava-se àquelas alturas
não como um importuno perscrutador da majestade excelsa, que deveria ser
esmagado por sua glória (cf. Pr 25,27), mas como servo fiel e
prudente que procurava indagar a vontade de seu Deus, à qual desejava conformar-se
totalmente.
2. Por revelação divina,
teve a sua alma conhecimento de que, abrindo o livro dos santos Evangelhos,
Jesus Cristo lhe manifestaria de que modo deveria agir para ser mais agradável
a Deus em si e em todas as coisas.
Com fervorosa oração, pois,
se preveniu e depois mandou um dos seus companheiros, homem devoto e de grande
santidade, tomar o livro dos Evangelhos e abri-lo três vezes em honra da
Santíssima Trindade.
E como todas as vezes que
se abriu o livro ocorreram as páginas em que se fala da paixão de Cristo, logo
compreendeu Francisco que, da mesma forma como havia imitado a Cristo nos
principais actos da sua vida, assim também devia conformar-se com ele nos
sofrimentos e dores da paixão, antes de abandonar esta vida mortal.
Não se intimidou.
Muito pelo contrário,
embora esgotado pelas austeridades e pela cruz do Senhor que ele levara até aí,
sentiu-se animado de um novo vigor para submeter-se a esse martírio.
O incêndio do amor triunfava
em belas chamas de fogo: rios d’água não poderiam extinguir uma caridade tão
intensa (cf. Ct 8;6-7).
3. Assim transportado em
Deus pelo desejo de seráfico ardor e transformado, por compaixão, naquele que,
em seu excesso de amor, quis ser crucificado, rezava um dia num lado do monte,
estando próxima a festa da Exaltação da Santa Cruz; e eis que ele viu descer do
alto do céu um serafim de seis asas brilhantes como fogo.
Num rápido voo chegou ele
ao lugar onde estava o homem de Deus, e apareceu então um personagem entre as
asas: era um homem crucificado, com as mãos e os pés estendidos e presos a uma
cruz.
Duas asas se erguiam por
cima da sua cabeça, duas outras desdobradas para o voo e as duas outras
cobriam-lhe o corpo.
Essa aparição fez
Francisco mergulhar num profundo êxtase, enquanto em seu coração sentia um gozo
extraordinário mesclado com certa dor.
Porque, em primeiro lugar,
via-se inundado de alegria com aquele admirável espectáculo, no qual se
gloriava de contemplar a Cristo sob a forma de um serafim, mas ao mesmo tempo a
vista da cruz atravessava sua alma com a espada de uma dor compassiva.
Era grande, a sua
admiração diante de semelhante visão, pois não ignorava que os sofrimentos da
paixão eram incompatíveis com a imortalidade dos espíritos celestes.
Veio então a conhecer por
revelação divina que essa visão lhe havia sido providencialmente apresentada
para que, como amante de Cristo, compreendesse que devia transformar-se
totalmente nele, não tanto pelo martírio corporal quanto pelas chamas de amor
de seu espírito.
Ao desaparecer aquela visão,
deixou no coração de Francisco um ardor admirável e imprimiu em seu corpo uma
imagem não menos maravilhosa, pois no mesmo instante começaram a aparecer nas
suas mãos e pés os sinais dos cravos, iguais em tudo ao que antes havia visto
na imagem do serafim crucificado.
E assim era na verdade,
porque as suas mãos e pés estavam atravessados no meio por grossos cravos, cuja
cabeça aparecia na parte interior das mãos e superior dos pés, ficando as
pontas aparecendo do outro lado.
A cabeça dos cravos era
redonda e negra; as pontas, bastante longas e afiadas e com evidentes sinais de
haver sido retorcidas, resultando daí que os cravos sobressaíam do resto da
carne.
De igual modo, no lado
direito do corpo do santo aparecia, como formada por uma lança, uma cicatriz vermelha,
da qual brotava às vezes tanto sangue que chegava a umedecer a túnica e as
roupas internas.
4. Era impossível esconder
por muito tempo aos irmãos com quem vivia os estigmas impressos de modo tão
visível; o servo de Cristo compreendia essa realidade, mas temia que se
divulgasse desse modo o segredo do Senhor, e a sua alma ficou numa angustiosa
incerteza, não sabendo se devia manifestar ou ocultar a visão que tivera.
Chamou, então, a alguns de
seus irmãos, e falando-lhes em termos gerais, propôs-lhes sua dúvida e
pediu-lhes conselho.
Um deles, chamado
Iluminado, compreendendo que algo extraordinário Francisco teria visto, pois se
notava nele certa admiração e confusão, disse-lhe:
“Caríssimo irmão, deves
saber que te são revelados algumas vezes certos segredos divinos não só para
teu benefício como também para proveito dos outros. Deves temer, portanto, que,
se ocultas as graças que recebeste para utilidade de teus semelhantes, sejas
julgado digno de repreensão como defraudador dos talentos recebidos”.
Ao ouvir essas palavras,
ficou o santo comovido, pois costumava dizer: “Meu segredo é para mim!”
Então julgou não sem temor
que deveria referir detalhadamente a visão que tivera, acrescentando que aquele
que lhe aparecera várias vezes lhe revelou algumas coisas que jamais daria a
conhecer a mortal algum enquanto vivesse.
Devemos, pois, supor que
essas palavras do serafim em cruz são tão profundas e misteriosas que fazem
parte daquelas de que o Apóstolo afirma: “Não é permitido aos homens
repeti-las”.
5. Dessa forma o
verdadeiro amor de Cristo transformara o amante na própria imagem do amado.
Completaram-se então os quarenta
dias que ele se propusera passar na solidão e chegou a solenidade do arcanjo
São Miguel.
Por isso Francisco desceu
do monte trazendo em si a imagem do Crucificado, não porém esculpida em tábuas
de pedra ou de madeira por mão de algum artífice, mas marcada na sua carne pelo
dedo de Deus vivo.
Sabendo que “é coisa boa
esconder o segredo do rei” (Tb 12,7), ele, sabedor do real segredo,
ocultava o mais possível aqueles sinais sagrados.
Cabe, porém, a Deus
revelar para a própria glória os prodígios que ele realiza e por isso o próprio
Deus que imprimira aqueles sinais ocultamente, os tornou conhecidos através dos
milagres, a fim de que a força oculta e maravilhosa daqueles estigmas se
revelasse claramente pelos sinais.
6. Na província de Rieti,
grassava uma epidemia gravíssima que exterminava os bois e ovelhas, sem
possibilidade de remédio.
Mas um homem temente a
Deus certa noite teve uma visão, em que lhe exortavam a que se dirigisse às
pressas ao eremitério dos irmãos, onde então morava o servo de Deus, pegasse a
água com que Francisco se havia lavado e aspergisse com ela todos os animais.
De manhã cedo foi aquele homem ao eremitério e às escondidas obteve dos irmãos
a água, aspergiu com ela os animais doentes.
Que maravilha!.
Apenas a água chegava a
tocá-los, estes, que pelo rigor da doença se achavam prostrados quase sem vida
em terra, recobravam o antigo vigor, levantavam-se no mesmo instante e como se nenhum
mal os afectasse, corriam rápidos a matar a fome nos campos.
A força extraordinária
daquela água que tocara as chagas de Francisco fez com que cessasse a praga e
desaparecesse do gado a epidemia.
(cont
São Boaventura
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portuguesa por AMA