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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO XXI
Acerca da ciência e da vontade eternas e imutáveis de Deus, em conformidade
com as quais sempre lhe agradaram as obras que fez, tanto antes com o depois de
as fazer.
Que se deve, na verdade, entender por esta frase repetida a propósito de tudo
Deus viu que isso era bom,[i]
senão a aprovação da obra realizada em conformidade com a arte que é a
Sabedoria de Deus? Certamente que Deus não esperou acabar a sua obra para saber
que ela era boa. Pelo contrário — nada teria feito se lhe fosse desconhecido.
Para Ele, portanto, ver que a sua obra é boa — e se a não tivesse visto antes
de a criar não a teria feito — não é aprender, mas ensinar-nos que é boa. E
certo que Platão se atreveu a dizer que Deus exultou de alegria depois de ter
acabado o Universo. Não era, todavia, tão louco que acreditasse que Deus com a
novidade da sua obra se tornara mais feliz. Quis assim mostrar que esta obra,
um a vez realizada, agradou ao seu artífice, tal qual como lhe tinha agradado
no seu projecto antes de ser realizada. Não é que mude a ciência de Deus e
opere nela de forma diferente o que ainda não é, o que já é e o que foi. Em
Deus não há, como em nós, a previsão do futuro, a visão do presente e a
recordação do passado, é totalmente diferente a sua m aneira de conhecer,
ultrapassando, muito acima e de muito longe, os nossos hábitos mentais. Ele vê
com um olhar absolutamente imutável, sem levar o seu pensamento de um objecto
para outro. Por conseguinte, o que se passa no tempo compreende, certam ente,
não só acontecimentos futuros que ainda não são, mas também presentes que já
são e passados que já não são. Mas Ele abarca-os a todos na sua estável e
sempiterna presença. Não os vê de forma diferente com os olhos do espírito pois
não é com posto de corpo e alma. Nem agora de forma diferente de antes ou
depois. Diferentemente do nosso, na verdade, o conhecimento que Ele tem dos
três tempos — presente, passado e futuro — não está sujeito a mudança porque
nele não há vicissitude nem sombra de mudança2.[ii]
A sua atenção não passa de um
pensamento para outro pensamento, mas ao seu olhar incorpóreo tudo o que sabe
está simultaneamente presente. É que ele conhece os tempos sem qualquer
representação temporal, assim como move o que está sujeito ao tempo sem sofrer
qualquer movimento temporal.
Ele viu, pois, que a sua obra era
boa precisamente quando viu que era bom realizá-la. E o facto de a ver, uma vez
realizada, não dobrou nem aumentou a sua ciência com o se fosse menos sábio
antes de criar o que veria; porque as suas obras não alcançariam toda a sua
perfeição se não tivesse actuado por uma ciência de tal forma perfeita que a
nenhuma delas nada poderia acrescer.
É por isso que, para nos ensinar que é o autor da luz, bastava dizer Deus fez
a luz. E para nos ensinar, não apenas que a fez, mas também por que meio,
bastaria anunciá-lo assim:
E disse Deus: Faça-se a luz e a luz fez-se.[iii]
Porque assim saberíamos que Deus fez a luz e que a fez pelo seu Verbo. Mas com o há três coisas a respeito das criaturas, dignas de
serem conhecidas, que tinha de nos ensinar — quem a fez, por que meio a fez e
porque a fez acrescenta:
E disse Deus: Faça-se a luz e a luz fez-se. E viu Deusque a luz
era boa.[iv]
Se, portanto, perguntamos — quem a fez? Foi Deus; se perguntamos — por
que meio a fez? Disse: Faça-se, e ela fez-se; se perguntam os — porque a
fez? Porque é boa. Ora, não há autor mais perfeito do que Deus, nem arte
mais eficaz do que o Verbo de Deus, nem causa melhor do que esta: o bem foi
criado por um Deus bom! E o próprio Platão — quer porque o leu, quer, talvez,
porque o aprendeu dos que o leram, quer porque o seu génio tão penetrante o
levou a perceber pela sua inteligência as perfeições invisíveis de Deus através
das realidades visíveis, quer porque o aprendeu dos que assim as tinham visto —
considera justíssima esta razão da criação do mundo: que as obras sejam feitas
por um Deus bom.
CAPÍTULO XXII
Dos que desprezam alguns dos seres do Universo, bem feitos pelo criador bom,
e julgam que algumas naturezas são más.
Todavia, certos hereges não admitem esta causa, isto é, a bondade de Deus, que
explica a criação dos seres bons, esta causa, repito, tão justa e tão
conveniente que, considerada com cuidado e religiosamente m editada, põe termo a
toda a controvérsia acerca da origem do mundo. E não a admitem porque há muitas
coisas, tais como o fogo, o frio, os animais ferozes e outras deste teor que, quando se lhes faz oposição, ferem a pobre e frágil mortalidade desta carne, aliás, fruto de um justo castigo. Não reparam — quão cheias de vigor
estão essas coisas na sua natureza e nos seus lugares próprios,
— em que bela ordem estão dispostas,
— que beleza conferem por suas
proporções a todo o Universo como à sua com uma república,
— ou ainda que vantagens a nós próprios proporcionam se delas soubermos fazer
um uso inteligente e apropriado: os próprios venenos, nocivos se tomados
inconsideradamente, transformam-se em medicamentos salutares se aplicados com
critério. Pelo contrário, mesmo as coisas com que nos deleitamos, como o
alimento, a bebida e esta luz, tornam-se nocivas se usadas imoderada e
inoportunamente. Por isso, nos adverte a Divina Providência para que não
inculpemos à toa as coisas, mas indaguemos diligentemente a utilidade delas; e,
quando falhar o nosso engenho ou a nossa debilidade, pensemos antes que essa
utilidade está oculta como os segredos que dificilmente podemos descobrir. Porque o próprio segredo desta utilidade é uma provação para
a nossa humildade ou uma mortificação para o nosso orgulho, pois uma natureza
jamais é um mal e esta palavra mais não designa que uma privação de bem. Mas da
Terra até ao Céu, do visível até ao invisível, há bens — uns superiores aos
outros: tinham de ser desiguais para todos existirem. Mas Deus, que é um tão
grande artífice nas coisas grandes, não o é menos nas pequenas, as quais se não
devem medir pela sua grandeza (que é nula), mas segundo a sabedoria do seu
autor. Assim, se se raspa um a só sobrancelha da face do homem, ao seu corpo
bem pouco se tira mas quanto se tira à sua beleza! — porque esta não consiste
no tamanho mas na semelhança e proporção dos membros.
Não é muito de admirar, com certeza, que aqueles que crêem na existência de um
a natureza má, proveniente de e propagada por algum princípio contrário, se
recusem a ver na bondade de Deus, autor dos seres bons, a causa da criação —
preferindo crer que Deus foi levado a criar esta grande mole do Mundo pela
extrema necessidade de repelir o mal que contra ele se levantava. E para o
reprimir e superar, misturou ao mal a sua natureza boa, e esta, assim poluída
da mais vergonhosa forma e oprimida pela mais cruel servidão, apenas pelo preço
de pesados esforços consegue Deus purificá-la e libertá-la, não inteiramente,
porém: mas a parte que não pôde ser purificada desta contaminação tornar-se-á
envoltório e liame do inimigo vencido e aprisionado. Não teriam assim perdido o
juízo os maniqueus, ou melhor, não teriam assim caído em delírio, se
considerassem a natureza de Deus como ela é na realidade: imutável e
absolutamente incorruptível, nada lhe podendo ser nocivo; e se a respeito da
alma (que por sua vontade pode decair, pode corromper-se pelo pecado e ser
assim privada da luz da verdade imutável), a considerassem com sentido cristão,
não como uma parte de Deus nem da natureza de Deus, mas sim com o criada por
ele, imensamente inferior ao seu Criador.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i]
Gen., I, 4-10-12-18-21-25-30.