EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
GAUDETE ET EXSULTATE
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE A CHAMADA À
SANTIDADE
NO MUNDO ACTUAL
Capítulo III
À LUZ DO MESTRE
68. As riquezas não te dão segurança alguma. Mais ainda: quando o
coração se sente rico, fica tão satisfeito de si mesmo que não tem espaço para
a Palavra de Deus, para amar os irmãos, nem para gozar das coisas mais
importantes da vida. Deste modo priva-se dos bens maiores. Por isso, Jesus
chama felizes os pobres em espírito, que têm o coração pobre, onde pode entrar
o Senhor com a sua incessante novidade.
69. Esta pobreza de espírito está intimamente ligada à «santa
indiferença» proposta por Santo Inácio de Loyola, na qual alcançamos uma
estupenda liberdade interior: «É necessário tornar-nos indiferentes face a todas
as coisas criadas (em tudo aquilo que seja permitido à liberdade do nosso livre
arbítrio, e não lhe esteja proibido), de tal modo que, por nós mesmos, não
queiramos mais a saúde do que a doença, mais a riqueza do que a pobreza, mais a
honra do que a desonra, mais uma vida longa do que curta, e assim em tudo o
resto». [i]
70. Lucas não fala duma pobreza «em espírito», mas simplesmente de
ser «pobre» (cf. Lc 6, 20), convidando-nos assim a uma vida
também austera e essencial. Desta forma, chama-nos a compartilhar a vida dos
mais necessitados, a vida que levaram os Apóstolos e, em última análise, a
configurar-nos a Jesus, que, «sendo rico, Se fez pobre» (2 Cor 8,
9).
Ser pobre no coração: isto é santidade.
71. É uma frase forte, neste mundo que, desde o início, é um lugar
de inimizade, onde se litiga por todo o lado, onde há ódio em toda a parte,
onde constantemente classificamos os outros pelas suas ideias, os seus costumes
e até a sua forma de falar ou vestir. Em suma, é o reino do orgulho e da
vaidade, onde cada um se julga no direito de elevar-se acima dos outros. Embora
pareça impossível, Jesus propõe outro estilo: a mansidão. É o que praticava com
os seus discípulos, e contemplamos na sua entrada em Jerusalém: «aí vem o teu
Rei, ao teu encontro, manso e montado num jumentinho» (Mt 21, 5;
cf. Zc 9, 9).
72. Disse Ele: «Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de
coração e encontrareis descanso para o vosso espírito» (Mt 11, 29).
Se vivemos tensos, arrogantes diante dos outros, acabamos cansados e exaustos.
Mas, quando olhamos os seus limites e defeitos com ternura e mansidão, sem nos
sentirmos superiores, podemos dar-lhes uma mão e evitamos de gastar energias em
lamentações inúteis. Para Santa Teresa de Lisieux, «a caridade perfeita
consiste em suportar os defeitos dos outros, em não se escandalizar com as suas
fraquezas». [ii]
73. Paulo designa a mansidão como fruto do Espírito Santo
(cf. Gal 5, 23). E, se alguma vez nos preocuparem as más acções
do irmão, propõe que o abordemos para corrigi-lo, mas «com espírito de
mansidão, [lembrando-nos:] e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a
ser tentado» (Gal 6, 1)». Mesmo quando alguém defende a sua fé e as
suas convicções, deve fazê-lo com mansidão (cf. 1 Ped 3, 16),
e os próprios adversários devem ser tratados com mansidão (cf. 2 Tm 2,
25). Na Igreja, erramos muitas vezes por não ter acolhido este apelo da Palavra
divina.
74. A mansidão é outra expressão da pobreza interior, de quem
deposita a sua confiança apenas em Deus. De facto, na Bíblia, usa-se muitas
vezes a mesma palavra anawin para se referir aos pobres e aos
mansos. Alguém poderia objectar: «Mas, se eu for assim manso, pensarão que sou
insensato, estúpido ou frágil». Talvez seja assim, mas deixemos que os outros
pensem isso. É melhor sermos sempre mansos, porque assim se realizarão as
nossas maiores aspirações: os mansos «possuirão a terra», isto é, verão as
promessas de Deus cumpridas na sua vida. Porque os mansos, independentemente do
que possam sugerir as circunstâncias, esperam no Senhor, e aqueles que esperam
no Senhor possuirão a terra e gozarão de imensa paz (cf. Sal 37/36,
9.11). Ao mesmo tempo, o Senhor confia neles: «é nos humildes de coração
contrito que os meus olhos se fixam, pois escutam a minha palavra com respeito»
(Is 66, 2).
Reagir com humilde mansidão: isto é santidade.
75. O mundo propõe-nos o contrário: o entretenimento, o prazer, a
distracção, o divertimento. E diz-nos que isto é que torna boa a vida. O
mundano ignora, olha para o lado, quando há problemas de doença ou aflição na
família ou ao seu redor. O mundo não quer chorar: prefere ignorar as situações
dolorosas, cobri-las, escondê-las. Gastam-se muitas energias para escapar das
situações onde está presente o sofrimento, julgando que é possível dissimular a
realidade, onde nunca, nunca, pode faltar a cruz.
76. A pessoa que, vendo as coisas como realmente estão, se deixa
trespassar pela aflição e chora no seu coração, é capaz de alcançar as
profundezas da vida e ser autenticamente feliz. [iii] Esta pessoa é
consolada, mas com a consolação de Jesus e não com a do mundo. Assim pode ter a
coragem de compartilhar o sofrimento alheio, e deixa de fugir das situações
dolorosas. Desta forma, descobre que a vida tem sentido socorrendo o outro na
sua aflição, compreendendo a angústia alheia, aliviando os outros. Esta pessoa
sente que o outro é carne da sua carne, não teme aproximar-se até tocar a sua
ferida, compadece-se até sentir que as distâncias são superadas. Assim, é
possível acolher aquela exortação de São Paulo: «Chorai com os que choram» (Rm 12,
15).
Saber chorar com os outros: isto é santidade.
77. «Fome e sede» são experiências muito intensas, porque
correspondem a necessidades primárias e têm a ver com o instinto de
sobrevivência. Há pessoas que, com esta mesma intensidade, aspiram pela justiça
e buscam-na com um desejo assim forte. Jesus diz que elas serão saciadas, porque
a justiça, mais cedo ou mais tarde, chega e nós podemos colaborar para o tornar
possível, embora nem sempre vejamos os resultados deste compromisso.
78. Mas a justiça, que Jesus propõe, não é como a que o mundo
procura, uma justiça muitas vezes manchada por interesses mesquinhos,
manipulada para um lado ou para outro. A realidade mostra-nos como é fácil
entrar nas súcias da corrupção, fazer parte dessa política diária do «dou para
que me deem», onde tudo é negócio. E quantas pessoas sofrem por causa das
injustiças, quantos ficam assistindo, impotentes, como outros se revezam para
repartir o bolo da vida. Alguns desistem de lutar pela verdadeira justiça, e
optam por subir para o carro do vencedor. Isto não tem nada a ver com a fome e
sede de justiça que Jesus louva.
79. Esta justiça começa por se tornar realidade na vida de cada
um, sendo justo nas próprias decisões, e depois manifesta-se na busca da
justiça para os pobres e vulneráveis. É verdade que a palavra «justiça» pode
ser sinónimo de fidelidade à vontade de Deus com toda a nossa vida, mas, se lhe
dermos um sentido muito geral, esquecemo-nos que se manifesta especialmente na
justiça com os inermes: «procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei
justiça aos órfãos, defendei as viúvas» (Is 1, 17).
Buscar a justiça com fome e sede: isto é santidade.
80. A misericórdia tem dois aspetos: é dar, ajudar, servir os
outros, mas também perdoar, compreender. Mateus resume-o numa regra de ouro: «o
que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles» (7, 12). O
Catecismo lembra-nos que esta lei se deve aplicar «a todos os casos», [iv] especialmente
quando alguém «se vê confrontado com situações que tornam o juízo moral menos
seguro e a decisão difícil». [v]
81. Dar e perdoar é tentar reproduzir na nossa vida um pequeno
reflexo da perfeição de Deus, que dá e perdoa superabundantemente. Por esta
razão, no Evangelho de Lucas, já não encontramos «sede perfeitos» (Mt 5,
48), mas «sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis
e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis
perdoados. Dai e ser-vos-á dado» (6, 36-38). E depois Lucas acrescenta algo que
não deveríamos transcurar: «a medida que usardes com os outros será usada
convosco» (6, 38). A medida que usarmos para compreender e perdoar será
aplicada a nós para nos perdoar. A medida que aplicarmos para dar, será
aplicada a nós no céu para nos recompensar. Não nos convém esquecê-lo.
82. Jesus não diz «felizes os que planeiam vingança», mas chama
felizes aqueles que perdoam e o fazem «setenta vezes sete» (Mt18, 22). É
necessário pensar que todos nós somos uma multidão de perdoados. Todos nós
fomos olhados com compaixão divina. Se nos aproximarmos sinceramente do Senhor
e ouvirmos com atenção, possivelmente uma vez ou outra escutaremos esta
repreensão: «não devias também ter piedade do teu companheiro como Eu tive de
ti?» (Mt 18, 33).
Olhar e agir com misericórdia: isto é santidade.
83. Esta bem-aventurança diz respeito a quem tem um coração
simples, puro, sem imundície, pois um coração que sabe amar não deixa entrar na
sua vida algo que atente contra esse amor, algo que o enfraqueça ou coloque em
risco. Na Bíblia, o coração significa as nossas verdadeiras intenções, o que
realmente buscamos e desejamos, para além do que aparentamos: «O homem vê as
aparências, mas o Senhor olha o coração» (1 Sam 16, 7). Ele procura
falar-nos ao coração (cf. Os 2, 16) e nele deseja gravar a sua
Lei (cf. Jer 31, 33). Em última análise, quer dar-nos um
coração novo (cf. Ez 36, 26).
84. «Vela com todo o cuidado sobre o teu coração» (Prv 4,
23). Nada de manchado pela falsidade tem valor real para o Senhor. Ele «foge da
duplicidade, afasta-Se dos pensamentos insensatos» (Sab 1, 5). O
Pai, que «vê no oculto» (Mt 6, 6), reconhece o que não é limpo, ou
seja, o que não é sincero, mas só casca e aparência; e de igual modo também o
Filho sabe o que há em cada ser humano (cf. Jo 2, 25).
85. É verdade que não há amor sem obras de amor, mas esta
bem-aventurança lembra-nos que o Senhor espera uma dedicação ao irmão que brote
do coração, pois «ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu
corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me vale» (1 Cor 13,
3). Também vemos, no Evangelho de Mateus, que é «o que provém do coração (…)
que torna o homem impuro» (15, 18), porque de lá procedem os homicídios, os
roubos, os falsos testemunhos (cf. 15, 19). Nas intenções do coração, têm
origem os desejos e as decisões mais profundas que efectivamente nos movem.
86. Quando o coração ama a Deus e ao próximo (cf. Mt 22,
36-40), quando isto é a sua verdadeira intenção e não palavras vazias, então
esse coração é puro e pode ver a Deus. São Paulo lembra, em pleno hino da
caridade, que «vemos como num espelho, de maneira confusa» (1 Cor 13,
12), mas, à medida que reinar verdadeiramente o amor, tornar-nos-emos capazes
de ver «face a face» (1 Cor 13, 12). Jesus promete que as pessoas
de coração puro «verão a Deus».
Manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor: isto é
santidade.
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[i]
Exercícios Espirituais, 23d (Roma 61984), 58-59.
[ii]
Manuscrito C, 12r: Opere Complete (Roma 1997), 247.
[iii]
Desde os tempos patrísticos, a Igreja valoriza o
dom das lágrimas, como consta na sugestiva oração « ad petendam
compunctionem cordis – para pedir o arrependimento do coração»: «Ó
Deus omnipotente e mansíssimo, que, fizestes surgir da rocha uma fonte de água
viva para o povo sedento, fazei brotar da dureza do nosso coração lágrimas de
arrependimento, para podermos chorar os nossos pecados e obter, por vossa misericórdia,
a sua remissão» ( Missale Romanum, ed. typ. 1962, p. 922).