A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
CAPÍTULO XXVI
Toda a natureza e toda a forma no Universo criado é obra exclusiva de Deus.
Efectivamente, há a forma de que se reveste exteriormente a matéria corpórea —
como fazem os oleiros, os artífices e os operários que pintam e esculpem
figuras que reproduzem corpos animados. Mas há outra forma cuja eficiência
causal é interior, provém da secreta e misteriosa vontade de um a natureza viva
e inteligente que, sem ser feita, produz as formas naturais dos corpos e as próprias
almas dos vivos.
A primeira forma — a exterior — está ao alcance de qualquer artífice. Mas a
outra só se pode atribuir a um artífice, ao Deus Criador que fez o Mundo e os
anjos sem ter necessidade nem de outros anjos nem de outro Mundo.
Foi, de facto, desta virtude divina e por assim dizer efectiva, que tudo fez
sem ser feita, que o Céu e o Sol receberam a sua rotundidade quando foi criado
o Mundo; foi a esta mesma virtude divina e efectiva, que tudo fez sem ser
feita, que o olho como o pomo devem a sua forma redonda;
dela provêm todas as outras formas naturais que vemos formar-se em tudo quanto
nasce, não sob uma acção exterior, mas pelo poder íntimo do criador que disse:
Eu encho o céu e a terra, [i]
e cuja sabedoria é
a que atinge duma extremidade à outra com força e tudo dispõe com
suavidade. [ii]
Na realidade, não sei que espécie de serviços prestaram os anjos — os primeiros
a serem feitos — ao Criador ao fazer os outros seres. Nem me atrevo a
atribuir-lhes um poder que eles talvez não tenham. Nem devo negar-lhes o poder que
têm. Reservo, porém , para Deus a formação de todas as naturezas e a obra da
criação, pela qual obra elas se tornaram plenamente no que são — embora nela
colaborem também os anjos conscientes e gratos por também a Ele deverem o ser.
De facto, não dizemos que os agricultores são os criadores dos frutos quando
lemos:
Nem o que planta é coisa alguma, nem o que rega — mas sim o que faz crescer: Deus, [iii]
mas nem da própria terra o dizemos, apesar de parecer a mãe universal e fecunda
que promove a eclosão dos gérmenes e fixa as raízes ao solo; lemos ainda:
Deus dá-lhe o corpo que lhe apraz e a cada uma das
sementes o corpo que lhe é próprio. [iv]
Também não devemos chamar à mulher criadora da sua descendência: Criador é antes
Aquele que disse a um dos seus servos:
Antes de te formar no útero, eu te conheci. [v]
E embora os diversos estados de alma de um a mulher grávida possam afectar o
feto de certas disposições — como Jacob com varas estriadas obtinha dos seus
gados crias de cores diferentes —, todavia, dessa natureza gerada a mãe é tão
impropriam ente criadora como de si própria. Quaisquer que sejam as causas
corpóreas ou seminais que actuam na geração graças ao concurso dos anjos, dos homens,
de quaisquer seres vivos, ou pela união de marido e mulher;
qualquer que seja o poder exercido pelos desejos ou emoções da alma materna,
para marcar com certos traços ou com certas cores o débil e tenro fruto da
concepção,
— essas próprias naturezas,
susceptíveis de serem impressionadas, conforme o seu género, desta ou daquela maneira,
são obra exclusiva de Deus Supremo. O seu segredo pode penetrar o Universo com
a sua incorruptível presença, fazendo com que exista tudo o que de qualquer maneira é, na medida em que é. Porque sem a acção de Deus, este ser não seria
este ou aquele, nem sequer poderia ser.
E por isso, portanto, que não atribuímos a fundação de Roma ou de Alexandria
nem aos pedreiros nem aos arquitectos (embora tenham sido os artífices que
imprimiram às coisas corporais as suas formas exteriores) mas sim aos reis por
cuja vontade, decisão e ordens elas foram construídas. Dizemos que uma foi
fundada por Rómulo e a outra por Alexandre. Por maioria de razão devemos dizer
que só Deus é o autor das naturezas,
Ele que nada produz de uma matéria que Ele próprio não tenha produzido;
Ele que não tem outros obreiros que não sejam os obreiros que criou;
e, se retirasse das suas obras o seu poder, a que chamarei «fabricador», elas
entrariam no nada onde estavam antes de terem sido feitas. Digo «antes», não na
ordem do tempo, mas na da eternidade. Quem é, na realidade, o criador dos
tempos senão Aquele que fez seres cujos movimentos faziam correr os tempos?
CAPÍTULO XXVII
Opinião dos platónicos: os anjos foram, na realidade, criados por Deus, mas
são eles os criadores dos corpos humanos.
Platão atribui a criação dos outros seres animados aos deuses inferiores,
feitos, por sua vez, pelo Deus Supremo. Todavia, d’Este recebem a parte imortal
à qual aqueles acrescentam a parte mortal. Não quis fazê-los criadores das
nossas almas, mas dos nossos corpos. Pois bem — segundo Porfírio — a alma para
se purificar deve evitar todo o corpo. Pensa, como o seu Platão e os outros
platónicos, que aqueles que viveram nos excessos e na luxúria devem, para
expiar as suas faltas, voltar a corpos mortais, mesmo de animais — diz Platão —
ou só de homens — diz Porfírio. Daí a consequência: estes deuses, que eles
pretendem que adoremos como nossos pais e criadores, mais não são que autores
dos nossos grilhões ou das nossas prisões. Longe de serem nossos criadores, são
nossos carcereiros que nos carregam de pesadas cadeias e nos encerram em
dolorosos ergástulos. Deixem -se, pois, os platónicos de apresentar os corpos
com o um castigo com que ameaçam as almas, ou então não exaltem o culto desses
deuses que nos exortam a fugir e a evitar com todas as nossas forças o corpo
que eles nos deram. Tanto um a coisa como a outra são totalmente falsas. Efectivamente,
nem as almas expiam as suas penas com o seu regresso a esta vida, nem há outro
criador dos seres animados, no Céu e na Terra, que não seja o que fez o Céu e a
Terra. Realmente, se a única razão de viver num corpo é a de sofrer um castigo,
porque é que Platão diz que este Mundo não poderá atingir a sua plena beleza, a
sua plena perfeição, a não ser que se encha de toda a espécie de seres vivos
mortais e imortais? Mas se a nossa criação, mesmo numa condição mortal, é um
benefício divino, como é que será um castigo voltar para esses corpos, isto é, para
esses benefícios divinos? E se Deus, como tantas vezes recorda Platão, possui
na sua inteligência eterna todas as formas tanto dos seres vivos como do Mundo
inteiro, porque não há-de ser Ele a tudo criar? Acaso não quis ser o artífice
de certas obras quando a sua inteligência afável e digna de inefáveis louvores
tinha toda a arte requerida para as fazer todas?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[ii] Sab. de
Salomão, VIII, 1.