LIVRO
VIII
Aborda
o terceiro género de Teologia, chamada natural, e trata da questão dos deuses a
essa teologia ligados — isto é, se o culto desses deuses tem interesse para se
conseguir a vida bem-aventurada que surgirá depois da morte. A discussão
travar-se-á com os platónicos porque estes estão muito acima dos outros
filósofos e estão mais próximos da verdade da fé cristã. Antes de tudo,
refutam-se aqui Apuleio e todos os que pretendem que se deve prestar culto aos
demónios como mediadores e intérpretes entre os deuses e os homens;
demonstra-se que esses demónios estão sujeitos aos vícios e introduziram o que
os homens honrados e prudentes reprovam e condenam, ou seja: as sacrílegas
ficções dos poetas, os ludíbrios teatrais, os malefícios e os crimes das artes
mágicas. Averiguado que eles favorecem e se comprazem com tudo isto, conclui-se
que de modo nenhum se podem conciliar os homens com os deuses bons.
CAPÍTULO I
É com os filósofos que
professam a mais elevada doutrina que se deve discutir a questão da teologia
natural.
Precisamos
agora de uma muito maior atenção do que a exigida para a explicação e solução
dos problemas dos livros anteriores. É que, de facto, ao tratarmos da chamada
teologia natural, temos que lidar, não com quaisquer homens (pois já não se
trata da teologia fabulosa ou civil, isto é, a do teatro e a da cidade, das
quais uma exalta ostensivamente os crimes dos deuses e a outra põe a descoberto
os seus mais criminosos desejos, desejos, portanto, mais de demónios maléficos
do que de deuses), mas é com filósofos que devemos discutir, com aqueles cujo
nome proclama o amor da sabedoria.
Ora
se a Sabedoria é Deus por quem tudo foi feito, como o demonstraram a autoridade
divina e a verdade, verdadeiro filósofo é o que ama a Deus. Mas porque a
própria coisa assim chamada não existe em todos os que se gabam deste nome
(realmente nem todo aquele que se diz filósofo é por isso amigo da verdadeira
sabedoria), certamente que, de entre todos aqueles cujas opiniões e escritos
podemos conhecer, teremos que escolher aqueles com quem se pode dignamente
tratar desta questão. Aliás, nesta obra não pretendo refutar todas as opiniões
de todos os filósofos, mas apenas as que se referem à teologia, palavra grega
com que queremos significar o pensamento ou palavra acerca da divindade; e
mesmo assim, não a opinião de todos, mas apenas a dos que, admitindo embora a
existência de Deus e a sua solicitude para com os homens, julgam todavia que o
culto de um Deus único e imutável é insuficiente para se obter a
bem-aventurança depois da morte e crêem que por isso é preciso adorar uma
multidão de deuses, criados, aliás, e instituídos pelo único e verdadeiro Deus.
A
opinião destes filósofos marca já um grande progresso sobre a de Varrão na
aproximação da verdade. Realmente este soube desenvolver a teologia natural
apenas até aos limites deste mundo ou da sua alma: aqueles, porém, confessam um
Deus que ultrapassa toda a natureza da alma; um Deus que fez não apenas este
mundo visível, a que tantas vezes chamamos o céu e a terra, mas também toda a
alma sem excepção; um Deus que concede a felicidade à alma dotada de razão e de
inteligência, como é o caso da alma humana, fazendo-a participar da sua luz
imutável e incorpórea.
Estes
filósofos chamam-se platónicos, nome que deriva de Platão, seu mestre. Ninguém
o ignora por muito que tenha ouvido falar destes assuntos. Vou, portanto, a
propósito de Platão, tratar sumariamente do que me parece necessário à presente
discussão, mencionando primeiramente os que o precederam neste género de
estudos.
CAPÍTULO II
As duas escolas filosóficas
— a itálica e a jónica — e os seus fundadores.
No
que respeita às letras gregas, cuja língua é considerada como a de maior lustre
entre as nações, a tradição dá-nos a conhecer duas escolas de filósofos: uma,
denominada itálica, desta parte da Itália a que outrora se dava o nome de
Grande Grécia, e a outra, a jónica, da parte a que ainda hoje se dá o nome de
Grécia.
A
escola itálica teve por fundador Pitágoras de Samos de quem provém também,
segundo se conta, o nome da filosofia. Efectivamente antes dele chamavam-se
sábios aqueles que de certo modo sobressaíam dos demais por uma conduta digna
de louvor; mas ele, interrogado acerca da sua profissão, respondeu que era um
filósofo, isto é, um estudante ou amigo da sabedoria. É que lhe parecia
demasiado pretensioso chamar-se sábio a si próprio.
A
escola jónica teve por chefe Tales de Mileto, um dos chamados sete sábios. Os
outros seis distinguiram-se pelo seu género de vida e por certas regras
próprias para assegurarem uma boa conduta. Tales, na mira de suscitar
sucessores, elevou-se acima de todos aprofundando a natureza das coisas e
reduzindo as suas pesquisas a escrito. O que lhe valeu maior admiração foi ter
conseguido captar as leis da astronomia e predizer os eclipses do Sol e da Lua.
Pensou que a água é o princípio das coisas donde provêm todos os elementos do
mundo, o próprio mundo e o que nele se produz. Mas a esta actividade que a
consideração do mundo nos faz ver tão admirável, não prepôs ele qualquer
princípio proveniente da inteligência divina.
Anaximandro,
um dos seus auditores, sucedeu-lhe e modificou a sua concepção da natureza.
Para este não é duma só coisa, — como a água para Tales —, que tudo provém; mas
cada coisa nasce dos seus princípios próprios. Estes princípios próprios de
cada coisa são, crê ele, em número infinito e geram inúmeros mundo há com tudo
o que nele aparece. Ainda segundo a sua opinião, estes mundos ora se dissolvem
ora renascem, conforme o tempo que cada um pode durar. Também ele não reconhece
à inteligência divina nenhuma interferência nas actividades da natureza.
Deixou
como sucessor Anaxímenes que atribuiu ao ar infinito todas as causas dos seres.
Não negou os deuses, nem deixou de a eles se referir; todavia não julgou que
tivessem feito o ar, mas, antes, eles é que provêm do ar.
Pelo
contrário Anaxágoras, auditor de Anaxímenes, julgou que todos os seres que
vemos tiveram por autor um espirito divino e afirmou que ele os tirou de uma
matéria infinita, constituída por partículas semelhantes entre si. Cada um dos
seres era feito das suas partículas próprias, mas sob a acção do espírito
divino.
Diógenes,
outro auditor de Anaximandro, afirmou, também ele, que o ar era a matéria de
que todos os seres eram feitos; mas que o ar era dotado duma inteligência
divina sem a qual dele nada se pode fazer.
A
Anaxágoras sucede seu auditor Arquelau. Também este pensou que todas as coisas
são constituídas por partículas semelhantes entre si, mas entendia que todas
elas se mantinham coesas graças a uma inteligência que movia os corpos eternos,
isto é, as referidas partículas, unindo-as e separando-as.
Diz-se
que teve por discípulo Sócrates, mestre de Platão; foi em consideração a este
mestre que resumi todas estas doutrinas.
CAPÍTULO III
Doutrina de Sócrates.
Segundo
a tradição, Sócrates foi o primeiro a orientar toda a filosofia para a reforma
e a disciplina dos costumes, ao passo que todos os seus antecessores tinham
consagrado os maiores esforços a aprofundar as coisas físicas, isto é, as
coisas da natureza. Porque terá ele procedido assim? Terá ele pretendido,
dominado pelo tédio das coisas obscuras e incertas, descobrir algo de claro e
certo, necessário para a vida feliz, a cuja única consecução parece encaminhado
o cuidado e o trabalho de todos os filósofos? Ou será, como suspeitam alguns
mais benevolentemente, que ele não queria que espíritos manchados pelas paixões
terrenas tivessem a veleidade de aspirar às coisas divinas? Não me parece que
seja possível pôr a claro esta questão. Às vezes notava que se afadigavam na
investigação das causas das coisas, quando, segundo pensava, essas causas
apenas residem, como primeiras e supremas, unicamente na vontade de um único e
soberano Deus. Daí que, ainda segundo a sua opinião, só é possível captá-las
com uma inteligência purificada. E por isso é que ele julgava que era necessário
insistir na obrigação de purificar a vida com hábitos; assim é que a alma,
aliviada do fardo das paixões degradantes, se poderia elevar pelo seu natural
vigor para as verdades eternas e contemplar com uma inteligência pura a
substância da incorpórea e imutável luz onde vivem firmes as causas de todas as
naturezas criadas.
Consta
que, ora confessando a sua ignorância, ora dissimulando o seu saber, castigou e
venceu, com o maravilhoso encanto da sua dialéctica e a extrema finura da sua
graça, a loucura dos ignorantes que pretendiam saber alguma coisa, mesmo em
questões morais, às quais parecia que tinha ele dedicado toda a sua atenção.
Deste modo atraiu sobre si inimizades e, incriminado por acusação caluniosa,
foi condenado à morte. Mais tarde, porém, essa mesma Atenas que publicamente o
declarara culpado, também publicamente por ele pôs luto; e a indignação do povo
voltou-se contra os dois acusadores com tamanha violência que um deles morreu
às mãos da multidão e o outro só escapou ao castigo pelo exílio voluntário e
perpétuo.
A
fama de tão preclara vida e da sua morte valeu a Sócrates ter deixado numerosos
discípulos que, à porfia, tomaram o gosto pelo estudo dos problemas morais em
que se trata do soberano bem que pode tomar o homem feliz. Mas porque nas
lucubrações de Sócrates não aparece tudo muito claro, dada a sua maneira de
tratar as questões, isto é, afirmando-as ou negando-as, cada um dos seus
discípulos tomou o que mais lhe aprouve, estabelecendo, como melhor lhe
pareceu, qual o fim último. Mas chama- -se fim último ao que toma feliz quem o
consegue. É acerca desse fim que os Socráticos (facto dificilmente de acreditar
por se tratar de discípulos do mesmo e único mestre) têm concepções tão
divergentes que alguns, como Aristipo, puseram o bem supremo na voluptuosidade;
outros, como Antístenes, na virtude; e houve ainda muitos outros que emitiram
opiniões que seria muito demorado a todas enumerar.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)