|
Navegando pela minha cidade
|
Agora que acabo
agora começo. Porque a vida é um permanente recomeçar; e porque quando assim
não é vive-se na escuridão. Na mesma escuridão da noite sem lua e sem estrelas se
um dia o Sol não voltasse a nascer depois do último ocaso. E quanto maior a
escuridão maior é a necessidade de luz.
Luz para vermos
a terra dos homens; luz para vermos os homens: os que vivem na luz e os que não
a conseguem ver. Luz que ilumine as cavernas escuras do meu coração onde –
quando o consinto – rastejam vermes pegajosos; cheios de peçonha e sem olhos
porque odeiam a luz.
Agora que acabo
agora começo. Levanto ferro e voltarei a navegar pelas ruas da minha cidade
melhor iluminada. Mar adentro com rumo certo porque a estrela da manhã será o
meu sextante; a minha bússola; o meu GPS.
Das tormentas
farei boas esperanças e nas calmarias estarei mais atento ao vento que sopra invisível
sobre a superfície das águas. Porque não há tempestade que não se acalme nem
bonança que sempre dure.
Agora que acabo
agora começo. Renasço do cansaço porque só descansarei quando morrer. O
contrário seria viver morto. Morto vivo na escuridão de sepulcro por fora caiado de branco e por dentro cheio
de imundície.
Naveguei por
mais de cinquenta mares feitos ruas da minha cidade durante quase um ano e meio
neste oceano imenso da blogosfera. Oceano de milhares e milhares de vozes que
querem ser ouvidas, simplesmente porque existem. Porque é esse o nosso drama, o
de não nos ouvirmos uns aos outros; o de procurarmos desesperadamente alguém que
nos oiça.
Começo porque
quero ouvir melhor apesar da escuridão e do ruído imenso de tantas vozes a
zunir; a murmurar; a gritar; a rir e a chorar na fria e cósmica imensidão do world wide wireless onde - é meu intimo convencimento - quase todos lêem,
vêem e ouvem numa corrida desenfreada em busca de qualquer coisa que não está
lá. Como se fosse uma corrida louca ao ouro enterrado no fim do arco-íris ou a medieval
e obsessiva demanda do Santo Graal.
Agora que acabo
agora começo. Não numa inutilidade de trabalho supliciante de Sísifo, mas na
construção permanente de uma ponte para a outra margem. Ponte sólida e
transcendente onde os outros tenham o direito de passar em primeiro lugar. De
passar à minha frente.
Ponte de
sentido único onde cabem todos os silêncios porque tudo tem sentido à luz da
Luz. Ponte farol; ponte porto; ponte cais; ponte ancora; ponte amarra; ponte
estiva; ponte cidade.
Ponte de romana
solidez feita do invisível quotidiano e da liturgia das horas; ponte pedonal em
que todos os passos contam uma história de amor; ponte suspensa feita de cordas
sobre o precipício do mistério da vida; ponte veneziana de desejos e suspiros
impossíveis de dizer; ponte de carne humana e de silêncios divinos oferecida em
holocausto perpétuo.
“Silêncio, porto
do navio. Silêncio em Deus, porto de todos os navios.”
Agora que acabo
agora começo.
Afonso Cabral
Nota de ama:
Meu caro Afonso:
Já fechei a boca que tinha aberta desde a primeira frase!
Excedeste-te a ti próprio, meu caro Afonso, na beleza e
profundidade do teu escrito.
Filosofia pura? Sim porque a filosofia é a correcta
avaliação do que se é e do que se faz e, claro, do que existe.
Donde, descobri, és um Filósofo!
Como te parece que posso aceitar esta 'despedida'?
Dir-te-ei simplesmente: Muito mal... aceito muito mal
mas, ao mesmo tempo, com uma enormíssima esperança que 'revejas' o 'caso'
e, filosoficamente decidas que não é definitiva a decisão.
Para bem de todos: meu, evidentemente, de NUNC COEPI e os
seus fiéis leitores, e de ti próprio que te privas de um gozo legítimo que te
dá escrever e privas outros do gozo de lerem o que escreves.
Por isso, e com a grafia do restaurante de Santo Tirso,
te digo: 'Ká Te Espero'!
Um abraço amigo e grato
2015.04.30