Capítulo VIII
A VOCAÇÃO
Vocações para uma
consagração especial
274.
Se partirmos da convicção de que o Espírito continua a suscitar vocações para o
sacerdócio e a vida religiosa, podemos «voltar a lançar as redes» em nome do
Senhor, com toda a confiança.
Podemos
- e devemos - ter a coragem de dizer a cada jovem que se interrogue quanto à
possibilidade de seguir este caminho.
275.
Algumas vezes fiz esta proposta a jovens que me responderam quase em tom de
zombaria:
«Não!
Verdadeiramente não me sinto inclinado para esse lado».
E
todavia, anos depois, alguns deles estavam no Seminário.
O
Senhor não pode falhar na sua promessa de não deixar a Igreja privada dos
pastores, sem os quais não poderia viver nem desempenhar a sua missão.
E,
se alguns sacerdotes não dão bom testemunho, não é por isso que o Senhor
deixará de chamar.
Pelo
contrário, redobra a aposta, porque não cessa de cuidar da sua amada Igreja.
276.
No discernimento duma vocação, não se deve excluir a possibilidade de
consagrar-se a Deus no sacerdócio, na vida religiosa ou em outras formas de
consagração.
Porquê
excluí-lo?
Podes
ter a certeza de que, se reconheceres uma chamada de Deus e a seguires, será
isso que dará plenitude à tua vida.
277.
Jesus caminha no meio de nós, como fazia na Galileia.
Passa
pelas nossas estradas, detém-Se e fixa-nos nos olhos, sem pressa.
A
sua chamada é atraente, fascinante.
Mas,
hoje, a ansiedade e a velocidade de tantos estímulos que nos bombardeiam fazem
com que não haja lugar para aquele silêncio interior onde se percebe o olhar de
Jesus e se ouve a sua chamada. Entretanto receberás muitas propostas bem
confeccionadas, que parecem belas e intensas, mas com o passar do tempo,
deixar-te-ão simplesmente vazio, cansado e sozinho.
Não
deixes que isto te aconteça, porque o turbilhão deste mundo arrasta-te numa
corrida sem sentido, sem orientação, nem objectivos claros, e deste modo se
malograrão muitos dos teus esforços.
Procura,
antes, aqueles espaços de calma e silêncio que te permitam reflectir, rezar,
ver melhor o mundo ao teu redor e então sim, juntamente com Jesus, poderás
reconhecer qual é a tua vocação nesta terra.
Capítulo IX
O DISCERNIMENTO
Permiti-me
retomar algumas daquelas reflexões, aplicando-as ao discernimento da vocação
própria no mundo.
279.
Lembro que todos, mas «especialmente os jovens, estão sujeitos a um zapping constante.
É
possível navegar simultaneamente em duas ou três telas e interagir, ao mesmo
tempo, em diferentes cenários virtuais.
Sem
a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetes
à mercê das tendências da ocasião»[i].
E
«isto revela-se particularmente importante, quando aparece uma novidade na
própria vida, sendo necessário então discernir se é o vinho novo que vem de
Deus ou uma novidade enganadora do espírito do mundo ou do espírito maligno»[ii].
280.
Este discernimento, «embora inclua a razão e a prudência, supera-as, porque se
trata de entrever o mistério daquele projecto, único e irrepetível, que Deus
tem para cada um (…).
Está
em jogo o sentido da minha vida diante do Pai, que me conhece e ama, aquele
sentido verdadeiro para o qual posso orientar a minha existência e que ninguém
conhece melhor do que Ele»[iii].
281.
Neste contexto, situa-se a formação da consciência, que permite ao
discernimento crescer em profundidade e fidelidade a Deus: «Formar a
consciência requer o caminho da vida inteira, no qual se aprende a cultivar os
mesmos sentimentos de Jesus Cristo, assumindo os critérios das suas opções e as
intenções da sua actividade (cf. Flp 2, 5)»[iv].
282.
Esta formação implica deixar-se transformar por Cristo e, ao mesmo tempo, uma
«prática habitual do bem, verificada no exame de consciência: um exercício no
qual não se trata apenas de identificar os pecados, mas também de reconhecer a
obra de Deus na própria experiência diária, nas vicissitudes da história e das
culturas onde se está inserido, no testemunho de muitos outros homens e mulheres
que nos precederam ou acompanham com a sua sabedoria.
Tudo
isto ajuda a crescer na virtude da prudência, articulando a orientação global
da existência com as opções concretas, na consciência serena dos próprios dons
e limites»[v].
Como discernir a
tua vocação
283.
Uma expressão do discernimento é o esforço por reconhecer a própria vocação.
É
uma tarefa que requer espaços de solidão e silêncio, porque se trata duma
decisão muito pessoal que mais ninguém pode tomar no nosso lugar.
«Embora
o Senhor nos fale de muitos e variados modos durante o nosso trabalho, através
dos outros e a todo o momento, não é possível prescindir do silêncio da oração
prolongada para perceber melhor aquela linguagem, para interpretar o
significado real das inspirações que julgamos ter recebido, para acalmar
ansiedades e recompor o conjunto da própria vida à luz de Deus»[vi].
284.
Este silêncio não é uma forma de isolamento, pois devemos lembrar-nos de que «o
discernimento orante exige partir da predisposição para escutar: o Senhor, os
outros, a própria realidade que não cessa de nos interpelar de novas maneiras.
Somente
quem está disposto a escutar é que tem a liberdade de renunciar ao seu ponto de
vista parcial e insuficiente (…).
Desta
forma, está realmente disponível para acolher uma chamada que quebra as suas
seguranças, mas leva-o a uma vida melhor, porque não é suficiente que tudo
corra bem, que tudo esteja tranquilo.
Pode
acontecer que Deus nos esteja oferecendo algo mais e, na nossa cómoda
distracção, não o reconheçamos»[vii].
285.
Quando se trata de discernir a própria vocação, há várias perguntas que é
preciso colocar-se.
Não
se deve começar por questionar onde se poderia ganhar mais dinheiro, onde se
poderia obter mais fama e prestígio social, mas também não se deveria começar
perguntando que tarefas nos dariam mais prazer.
Para
não se enganar, é preciso mudar de perspectiva, perguntando: Conheço-me a mim
mesmo, além das aparências ou das minhas sensações?
Sei
o que alegra ou entristece o meu coração?
Quais
são os meus pontos fortes e as minhas fragilidades?
E,
logo a seguir, vêm outras perguntas:
Como
posso servir melhor e ser mais útil ao mundo e à Igreja?
Qual
é o meu lugar nesta terra?
Que
poderia eu oferecer à sociedade?
E
surgem imediatamente outras muito realistas:
Tenho
as capacidades necessárias para prestar este serviço?
Em
caso negativo, poderei adquiri-las e desenvolvê-las?
286.
Estas questões devem-se colocar não tanto em relação a si mesmo e às próprias
inclinações, mas em relação aos outros, em ordem a eles, para que o
discernimento enquadre a própria vida referida aos outros.
Por
isso, quero lembrar qual é a grande questão:
«Muitas
vezes, na vida, perdemos tempo a questionar-nos: “Quem sou eu?” E podes
passar a vida inteira a questionar-te, procurando saber quem és. Mas a pergunta
que te deves colocar é esta: “Para quem sou eu?”»[viii]
És
para Deus, sem dúvida alguma; mas Ele quis que fosses também para os outros, e
colocou em ti muitas qualidades, inclinações, dons e carismas que não são para
ti, mas para os outros.
Franciscus
Revisão da versão
portuguesa por AMA
Notas
[ii] Ibid., 168.
[iii] Ibid., 170.
[iv] DF108.
[v] Ibid., 108.
[vii] Ibid., 172.
[viii] Francisco, Discurso na
Vigília de Oração de preparação para a XXXIV Jornada Mundial da
Juventude (Roma – Basílica de Santa Maria Maior 8 de Abril de 2017): AAS 109
(2017), 447.