A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO X
À vida dos mortais mais se lhe deve chamar morte do que vida.
Desde o momento em que cada um começa a viver neste corpo destinado a morrer,
nenhum acto pratica que o não encaminhe para a morte. Efectivamente, a sua mobilidade
durante todo o tempo de vida (se é que se lhe pode chamar vida), mais não é que
caminhar para a morte. Ninguém existe que não esteja, após um ano, mais próximo
dela do que o estava um ano antes, que não esteja amanhã mais perto do que está
hoje, hoje mais do que ontem, daqui a pouco mais do que agora e agora mais do
que há pouco. Porque o tempo que se vive é tirado da duração da vida e, como o
que resta diminui de dia para dia, o tempo desta vida outra coisa não é senão
uma corrida para a morte: durante esta corrida a ninguém é permitido parar um
instante que seja nem retardar por pouco que seja a sua marcha — mas todos são
impelidos pelo mesmo movimento, nenhum avança a passo desigual. Realmente, nem
aquele cuja vida foi mais curta passou o seu dia mais rapidamente do que aquele
cuja vida foi mais longa; mas, ao passo que tempos iguais eram tirados de forma
igual a ambos, um tinha um fim mais próximo e o outro um mais afastado, sem que
a sua corrida diferisse de velocidade. É que um a coisa é percorrer mais
caminho e outra caminhar mais devagar. Para o que leva mais tempo a chegar à morte
a marcha não é mais lenta: o caminho é mais comprido. De resto, se cada um começa
a morrer, isto é, a estar na morte, desde que a morte, ou seja, a supressão da
vida, começa a realizar-se nele (porque uma vez suprimida a vida, já se estará
depois da morte e não na morte), segue-se que está na morte desde que começa a
estar neste corpo. Que outra coisa se passa em cada dia, em cada hora, em cada
momento até que a morte, que se estava processando, seja dada por concluída e
se inicie o «tempo depois da morte» o qual, enquanto a vida se ia esvaindo,
pertencia ao âmbito da morte? Nunca, portanto, o homem está na vida desde que
está neste corpo — que mais morre do que vive — se não pode estar ao mesmo tempo
na vida e na morte. Ou antes, não está ele ao mesmo tempo na vida e na morte:
na vida porque goza dela até toda ela ser suprimida, na morte porque já se está
morto quando a vida se esvai? Se já não está na vida, que é que lhe é tirado
até que seja completa a sua supressão? Se não está na morte, que é então a
supressão da vida? Quando a vida toda abandonar o corpo, não haverá, realmente,
outra razão para dizer que este já está «depois da morte» senão esta: é que já
a morte existe quando a vida abandona o corpo. Com efeito, se depois da supressão
da vida se não está «na morte» mas «depois da morte» — quando é que se estará
então «na morte» senão no momento da supressão?
CAPÍTULO XI
Poderá alguém estar ao mesmo tempo vivo e morto?
Se é absurdo dizer que o homem antes de chegar à morte já lá está (como é que
dela se irá aproximando durante a vida se já lá estava?), sobretudo porque é muito
estranho considerá-lo ao mesmo tempo vivo e a morrer, sendo certo que não se
pode simultaneamente dormir e estar acordado, — põe-se a questão: quando é que está a morrer? É que, na
verdade, antes de a morte chegar, não se está a morrer, mas a viver; depois de
a morte ter chegado, o homem estará morto e não a morrer. Num caso está ainda
«antes» da morte, no outro caso está «depois» da morte. Então quando é que se
está «na» morte? E quando se diz que se está a morrer; pois a estes três momentos — «antes», «em» e
«depois» — correspondem estes três estados: vivo, a morrer e morto. Quando
estará, pois, o homem a morrer ou na morte — de maneira que não esteja nem
vivo, isto é, «antes da morte», nem morto, isto é, «depois da morte», mas a
morrer, isto é, «na morte»? Realmente, o homem, formado de corpo e de alma,
está, sem a menor dúvida, vivo: está ainda «antes de morto» e não «na morte».
Mas quando a alma se separar, retirando ao corpo toda a sensibilidade, o homem
estará «depois da morte» e dir-se-á que está morto. Perece, pois, entre o momento
em que está a morrer e o momento de «estar na morte» — porque, se vive ainda,
está «antes da morte»; se deixou de viver, está já «depois da morte»; nunca, portanto, se está a morrer,
isto é, «na morte».
Da mesma forma, no decorrer do tempo procura-se o presente sem que seja
possível encontrá-lo, porque a passagem do futuro ao passado é sem duração. [i] Não parece que, depois deste raciocínio, se tem de negar a morte
corporal? Se há morte — onde é que ela está que em ninguém pode ela estar e
ninguém nela pode estar? Se se vive — ela ainda lá não está; se se está antes da morte, não se está na morte; se se
deixou de viver — já lá não está porque se está «depois da morte» e não «na morte».
Mas se não há morte nem «antes» nem «depois», a que propósito dizer «antes da morte»
e «depois da morte»? Se não há morte, tudo o que se está a dizer é falho de
sentido. Oxalá tivéssemos vivido bem no Paraíso para que morte não houvesse realmente! Mas no presente não som ente ela existe mas até é ela tão penosa que
ninguém a pode explicar com palavras nem com raciocínio algum se pode evitar!
Tem os, portanto, de falar com o é costume falar-se (não podemos fazê-lo de
outra m aneira) e digamos «antes da morte» no sentido de «antes que a morte
aconteça», como está escrito:
Não louves ninguém antes da sua morte.[ii]
Digamos também, quando ela aparecer: «Depois da morte deste ou daquele,
aconteceu isto ou aquilo». Falemos também do tempo presente com o nos for
possível, por exemplo: «Este moribundo fez o seu testamento», «o moribundo deixou
isto ou aquilo a este ou àquele», se bem que não o poderia fazer sem estar vivo
e o fez «antes» e não «na» morte. Falemos ainda como fala a Sagrada Escritura
que não hesita em declarar que os mortos, também eles, não estão «depois» mas
«na» morte. Daí o seguinte:
Porque não há ninguém na morte que se recorde de ti.[iii]
De facto, até que revivam, com razão se diz que estão na morte, com o se diz
que se está no sono até que se acorde. Embora chamem os adormecidos aos que
estão no sono, não podemos, porém, chamar moribundos aos que já estão mortos. Não
estão, claro está, a morrer (da morte corporal, que é da que estamos a tratar)
os que já estão separados dos corpos. Mas é isso, com o já se disse, que
nenhuma linguagem pode explicar: como é que se pode dizer que os moribundos
vivem ou os que estão já mortos, «depois» da morte estão «na» morte?
Efectivamente, com o é que eles estão «depois» da morte se
estão «na» na morte? Sobretudo não podendo chamar-se-lhes moribundos com o
chamam os adormecidos aos que estão no sono e enfermos aos que estão na
enfermidade, doridos aos que estão na dor, vivos aos que estão na vida. Mas
dizemos que os mortos antes da ressurreição estão na morte, sem, todavia, lhes
chamamos moribundos.
Julgo que surgiu com oportuna conveniência (e não devido a habilidade humana,
mas a disposição divina) a impossibilidade em que se vêem os gramáticos de
conjugarem em latim o verbo morior (morro) conforme as regras por que se
conjugam outros que tais. Assim, da palavra oritur (nasce) vem o
pretérito ortus est (nasceu), e todos os verbos semelhantes se conjugam
da mesma maneira com particípios pretéritos. Mas a respeito de moritur (morre),
se se perguntar pelo pretérito, é costume responder-se mortuus (morreu),
dobrando o u. E diz-se mortuus (morto), como se diz fatuus (fátuo),
arduus, (árduo), conspicuus (conspíquo) e outras palavras
semelhantes que não indicam tempo passado, mas, como nomes que são, se declinam
sem indicarem tempo. Mas, no caso presente, para conjugar, digamos assim, o que
se não pode conjugar, usa-se de um nome como particípio pretérito. Bom é
que se não possa conjugar este verbo tal com o também não pode conjugar-se a
acção que ele significa. Todavia, ajudados pela graça do nosso Redentor,
podemos, no que respeita à segunda morte, pelo menos decliná-la. Mais
temível que a primeira, é ela o pior de todos os males porque não consiste na separação
da alma e do corpo, mas antes na união de ambos para a pena eterna. Aí, pelo
contrário, os homens não estarão nem «antes» nem «depois» da morte, mas sempre
«na» morte — e isto nunca «a viver», nunca já mortos, mas sempre «a morrer».
Nunca, na verdade, haverá para o homem pior desgraça na morte do que chegar
onde a própria morte não será morte!
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Confissões,
LXI, Cap. XVI, 18-20.