17/11/2014

DIÁLOGOS COM O SENHOR DEUS (5)

«Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?» *

«Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.» **

Mas, Senhor, Tu sabes que depois de todos aqueles problemas porque passei, fiquei praticamente sem nada! E sabes também que de algum modo ainda tento dar alguma coisa do pouco que me ficou e vou conseguindo ganhar, que, reconheço, é apesar de tudo bem mais do que o que muitos têm!

Eu sei que tu já não tens esses bens, que também já não tens essa tal posição social que esses bens te davam, que vives com o que tens e que ainda partilhas alguma coisa daquilo que possuis, mas meu filho, continuas agarrado ao que tiveste, de tal modo que colocas em tudo isso, numa qualquer possibilidade da recuperação de tudo o que possuíste, a tua felicidade no futuro!

Mas, Senhor, é errado sonhar com voltar a ter aquilo que já tive?

Não, meu filho, não é errado! Mas ganhas alguma coisa em sonhar assim? Afinal em que acreditas tu? Acreditas que são os bens do mundo que te levam à felicidade, à vida eterna, ou que esse caminho é seguires-me com a vida que Eu te dou - agora - e encho do meu amor, aceitando o teu dia-a-dia no trabalho que coloco nas tuas mãos?

Mas sabes, Senhor, por vezes tenho medo do futuro, tenho medo de ficar sem o pouco que ainda tenho, tenho medo de não saber como fazer, de não saber como viver!

Alguma vez te faltei? Alguma vez te faltei naquilo que é realmente importante na tua vida? Alguma vez não me sentiste ao teu lado? Até mesmo naqueles momentos de secura, não acreditaste sempre que Eu estava ali contigo, embora não Me sentisses?

Não, Senhor, sempre acreditei que estavas comigo em todos os momentos, embora por vezes me sentisse só!

Lembras-te quando tudo aconteceu, como sentiste o teu mundo desmoronar-se? Lembras-te como Me procuraste em cada momento, em cada palavra, em cada sinal, em cada celebração? Lembras-te que Me procuravas, mais procurando o meu amor para alcançares a paz, a aceitação de tudo, do que para pedires o retrocesso do que tinha acontecido? Naquela altura querias sentir apenas o meu amor, a minha presença junto de ti. Porque é que agora não te chega o meu amor?

É que tenho medo, Senhor! Ou será orgulho e vaidade? Ou será tudo misturado? Parece-me que aquilo que tinha era meu por direito, que fazia parte tão importante da minha vida que me é impossível separar-me de tudo, nem que seja mesmo só sonhando!

Não vês, meu filho, que todos aqueles bens são perecíveis, são efémeros? Não percebes que te entregas agora muito mais a Mim do que naquele tempo? Podes por acaso comprar nem que seja um pouco da vida eterna com aqueles bens? O que te falta? Falta-te amor? Falta-te a família? Faltam-te amigos verdadeiros? Falta-te algo verdadeiramente imprescindível na tua vida? Não me tens a Mim sempre junto de ti e entregando-me a ti e por ti na Eucaristia?

Vai, repousa no meu amor, confia em Mim, recorda o teu passado como algo de muito bom que te dei, mas confia agora apenas no futuro que em ti coloco, em tudo o que te dou, e … «depois, vem e segue-me.»

  *Mc 10,17
** Mc 10, 21


Marinha Grande, 13 de Novembro de 2014
Joaquim Mexia Alves


“Remeditado” e reescrito com base num texto de 2012
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Ev. Diário, Coment L. esp. (História de uma alma)

Tempo comum XXXIII Semana

Evangelho: Lc 18 35-43

35 Sucedeu que, aproximando-se eles de Jericó, estava sentado à beira da estrada um cego a pedir esmola. 36 Ouvindo a multidão que passava, perguntou que era aquilo. 37 Disseram-lhe que era Jesus Nazareno que passava. 38 Então ele clamou: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim!». 39 Os que iam adiante repreendiam-no para que se calasse. Porém, ele, cada vez gritava mais: «Filho de David, tem piedade de mim!». 40 Jesus, parando, mandou que Lho trouxessem. Quando ele chegou, interrogou-o: 41 «Que queres que te faça?». Ele respondeu: «Senhor, que eu veja». 42 Jesus disse-lhe: «Vê; a tua fé te salvou». 43 Imediatamente, recuperou a vista, e foi-O seguindo, glorificando a Deus. Todo o povo, vendo isto, deu louvores a Deus.
Comentário

Detenhamo-nos um pouco no frenesim das nossas vidas e pensemos:
“Se o Senhor Se dirigisse a mim e dissesse: Tu… que queres que te faça?”

Qual seria a nossa resposta? Talvez: “Senhor… deixa-me pensar um pouco… preciso de tanta coisa…”
Esta resposta que denota, desde logo, que não sabemos bem o que precisamos ou, melhor, o que efectivamente nos faz falta, talvez seja mais comum que o que possamos imaginar!

Cá por mim, penso, que o melhor… muito melhor, seria responder-Lhe:

“Tu, Senhor, que sabes tudo, sabes muito o bem o que preciso!”

(AMA, Comentário sobre Lc 18, 35-43, 2013.11.18)

Leitura espiritual



HISTÓRIA DE UMA ALMA

Santa Teresinha do Menino Jesus

MANUSCRITO ENDEREÇADO A MADRE MARIA DE GONZAGA

…/5

Nem sempre pratiquei a caridade com tais enlevos de alegria, mas no início da minha vida religiosa quis Jesus que eu sentisse como é bom vê-la na alma das suas esposas. Por isso, quando levava minha Irmã São Pedro, fazia-o com tanto amor que me teria sido impossível fazer melhor, mesmo que tivesse levado o próprio Jesus. A prática da caridade não foi sempre tão suave para mim, como vos dizia há pouco, Madre querida. Para prová-lo, vou relatar alguns pequenos combates que, certamente, vos farão sorrir. Por muito tempo, na oração da noite, sentava-me em frente de uma irmã que tinha uma mania estranha e, penso... muitas luzes, pois raramente usava livro. Eis como o percebia: Logo que essa irmã chegava, punha-se a fazer um estranho barulhinho semelhante ao que se faria esfregando duas conchas um contra a outra. Só eu percebia, pois tenho ouvido muito bom (às vezes, um pouco demais). Impossível dizer-vos, Madre, como esse ruído me incomodava. Tinha muita vontade de olhar a autora que, por certo, não se dava conta do seu cacoete; era a única maneira de avisá-la, mas no fundo do coração sentia que mais valia sofrer isso por amor a Deus e não magoar a irmã. Ficava quieta, procurava unir-me a Deus, esquecer esse ruído... tudo inútil. Sentia o suor inundar-me e ficava obrigada a uma oração de sofrimento. Embora sofrendo, procurava fazê-lo não com irritação, mas com paz e alegria, pelo menos no íntimo da minha alma. Procurei gostar do barulhinho tão desagradável. Em vez de procurar não ouvi-lo, coisa que me era impossível, pus-me a prestar atenção nele como se fosse um concerto maravilhoso e minha oração toda, que não era de quietude, consistia em oferecer esse concerto a Jesus.

Em outra ocasião, estava na lavandaria diante de uma irmã que me jogava água suja no rosto toda vez que levantava a roupa na tábua de bater. Meu primeiro movimento foi de recuar enxugando o rosto, a fim de mostrar à irmã que me aspergia que me prestaria serviço ficando quieta. Mas pensei logo que seria tolice recusar tesouros oferecidos tão generosamente. Evitei demonstrar minha luta. Esforcei-me por desejar receber muita água suja, de sorte que, no final, passara a gostar desse novo gênero de aspersão e prometi a mim mesma voltar a esse feliz lugar onde se recebiam tantos tesouros.

Madre querida, estais vendo que sou uma alma muito pequena que só pode oferecer a Deus coisas muito pequenas. Assim mesmo, acontece-me com frequência deixar escapar esses pequenos sacrifícios que dão tanta paz e tranquilidade à alma. Isso não me desanima, suporto ter um pouco menos de paz e procuro ser mais vigilante na ocasião seguinte.

Ah! o Senhor é tão bom para mim que me é impossível temê-lo. Deu-me sempre o que desejei, ou melhor, fez-me desejar o que queria dar-me. Foi assim que, pouco antes de começar minha provação contra a fé, dizia a mim mesma: Francamente, não tenho grandes provações exteriores e, para tê-Ias no interior, seria preciso Deus mudar a minha via. Não creio que Ele o faça, mas não posso viver sempre assim no repouso'... portanto, que meio Jesus irá encontrar para me provar? A resposta não demorou e mostrou-me que Aquele que amo não está desprovido de meios. Sem alterar minha via, mandou-me a prova que devia misturar amargura salutar em todas as minhas alegrias. Não é só quando quer me provar que Jesus me manda um pressentimento e o desejo. Há muito, tinha um desejo totalmente irrealizável, o de ter um irmão sacerdote. Pensei muitas vezes que se meus irmãozinhos não tivessem ido para o Céu teria tido a felicidade de vê-los subir ao altar; mas, como Deus os escolheu para fazer deles anjinhos, não podia mais esperar ver meu sonho realizar-se. Eis que não só Jesus concedeu-me o favor pedido, mas uniu-me, pelos laços da alma, a dois dos seus apóstolos que passaram a ser meus irmãos... Quero, Madre querida, relatar-vos minuciosamente como Jesus atendeu a meu desejo e até o ultrapassou, pois eu desejava apenas um irmão sacerdote que, todo dia, pensasse em mim no santo altar.

Foi nossa Santa Madre Teresa que me mandou, a título de buquê de festa, em 1895, meu primeiro irmãozinho. Estava na lavandaria, muito atarefada com meu trabalho, quando Madre Inês de Jesus, puxando-me à parte, leu uma carta que acabava de receber. Tratava-se de um jovem seminarista inspirado, dizia ele, por santa Teresa, e que vinha pedir uma irmã que se dedicasse especialmente à salvação da alma dele e o ajudasse com suas orações e sacrifícios quando missionário, a fim de salvar muitas almas. Prometia lembrar-se sempre dela, que passaria a ser sua irmã, quando pudesse oferecer o Santo Sacrifício. Madre Inês de Jesus disse que queria fosse eu a irmã desse futuro missionário.

Madre, seria impossível descrever a minha felicidade. Meu desejo atendido de modo inesperado fez nascer em meu coração uma alegria que chamarei de infantil, pois preciso remontar aos tempos da minha infância para encontrar a lembrança dessas alegrias tão vivas que a alma se sente pequena demais para conter. Nunca mais, durante muitos anos, tinha provado esse tipo de felicidade. Sentia que, nesse aspecto, minha alma permanecera nova; era como se tivessem tocado, pela primeira vez, cordas musicais até então deixadas no esquecimento.

Tinha consciência das obrigações que me impunha, por isso pus logo mãos à obra procurando redobrar meu fervor. É preciso admitir que, inicialmente, não tive consolações para estimular meu zelo. Depois de ter escrito uma gentil cartinha cheia de coração e nobres sentimentos, a fim de agradecer a madre Inês de Jesus, meu irmãozinho só voltou a se manifestar em Julho, a bem da verdade enviou a sua carta em Novembro para comunicar que se alistava no exército. Foi a vós, Madre querida, que o Senhor reservou completar a obra iniciada. Sem dúvida, é pela oração e pelo sacrifício que se pode ajudar os missionários. Mas, às vezes, quando agrada a Jesus unir duas almas para a sua glória, Ele permite que, de vez em quando, elas possam comunicar os pensamentos e estimular-se mutuamente a amar mais a Deus. Porém, para isso, é preciso uma autorização expressa da superiora, pois creio que, sem essa, a correspondência faria mais mal que bem; se não ao missionário, pelo menos à carmelita que, pelo seu gênero de vida, está continuamente levada a ensimesmar-se. Em vez de uni-la a Deus, essa correspondência que teria solicitado, embora esporádica, ocuparia seu espírito. Imaginando realizar mundos e fundos, só procuraria, a pretexto de zelo, uma distracção inútil. Para mim, essa situação não difere das demais: sinto que minhas cartas só produzirão algum bem se forem escritas por obediência e se eu sentir mais repugnância que prazer ao escrevê-las. Quando falo com uma noviça, procuro fazê-lo mortificando-me; evito perguntar para satisfazer a minha curiosidade. Se ela inicia um assunto interessante e passa de repente, sem concluir o primeiro, a outro que me aborrece, evito lembrar-lhe o assunto que deixou de lado, pois parece-me que não se pode fazer bem algum quando se procura a si mesmo.

Madre querida, dou-me conta de que nunca vou corrigir-me. Eis-me, mais um vez, muito longe do meu assunto, com todas as minhas digressões. Desculpai-me, peço, e permiti que recomece na próxima oportunidade, pois não consigo fazer diferente!... Agi como Deus, que não se cansa de me ouvir quando lhe conto simplesmente minhas penas e minhas alegrias, como se Ele não as conhecesse... Vós também, Madre, conheceis há muito o que penso e todos os acontecimentos um pouco memoráveis da minha vida. Não conseguiria informar-vos de nenhuma coisa nova. Não posso impedir o riso ao pensar que vos relato escrupulosamente tantas coisas que sabeis tão bem quanto eu. Enfim, Madre querida, obedeço-vos. E se, agora, não encontrais interesse na leitura destas páginas, talvez possam distrair-vos na vossa velhice e servir depois para acender o fogo. Não terei perdido meu tempo... Mas estou brincando de falar como criança. Não creiais, Madre, que procuro saber qual a utilidade que meu pobre trabalho possa ter. Faço-o por obediência e isso me é suficiente. Não sentiria nenhuma mágoa se o queimásseis diante dos meus olhos, sem o terdes lido.

Chegou o momento de voltar a falar dos meus irmãos que ocupam, agora, tanto espaço em minha vida. No ano passado, em fins de maio, lembro-me de que mandastes chamar-me antes de irmos ao refeitório. O coração batia-me forte quando fui ao vosso encontro, Madre querida. Cismava no que podíeis ter para me dizer, pois era a primeira vez que mandáveis chamar-me dessa forma. Depois de convidar-me a sentar, eis a proposta que me fizestes: "Quereis encarregar-vos dos interesses espirituais de um missionário que deve ser ordenado sacerdote e partir brevemente?", e, Madre, lestes para mim a carta desse jovem padre, a fim de que eu soubesse exactamente o que ele pedia. Meu primeiro sentimento foi de alegria, logo substituído pelo temor. Expliquei, Madre querida, que, tendo já oferecido meus pobres méritos para um futuro apóstolo, acreditava não poder fazê-lo às intenções de outro e que, aliás, havia muitas irmãs melhores do que eu que poderiam responder ao desejo dele. Todas as minhas objecções foram inúteis, respondestes que é possível ter diversos irmãos. Perguntei, então, se a obediência poderia duplicar meus méritos. Respondestes afirmativamente, dizendo muitas coisas que me fizeram ver que era preciso aceitar sem receio um novo irmão. No fundo, Madre, pensava igual a vós e, até, sendo que "o zelo de uma carmelita deve abranger o mundo", espero, com a graça divina, ser útil a mais de dois missionários, e não poderia esquecer de rezar por todos, sem deixar de lado os simples padres cuja missão é, às vezes, tão difícil de cumprir quanto a dos apóstolos pregando para infiéis. Enfim, quero ser filha da Igreja como o era nossa Madre santa Teresa e rezar nas intenções do nosso Santo Padre, o Papa, sabendo que as intenções dele abrangem o universo. Eis a meta geral da minha vida, mas isso não me teria impedido de rezar e unir-me especialmente às obras dos meus anjinhos queridos se tivessem sido sacerdotes. Bem! eis como me uni espiritualmente aos apóstolos que Jesus me deu como irmãos: tudo o que me pertence pertence a cada um deles, sinto muito bem que Deus é bom demais para fazer partilhas, é tão rico que dá sem medida tudo o que peço a Ele... Mas não penseis, Madre, que eu me perco em longas enumerações.

Depois que passei a ter dois irmãos e minhas irmãzinhas as noviças, se eu quisesse pedir para cada alma o que ela necessita e pormenorizá-lo, os dias seriam curtos demais e recearia muito esquecer alguma coisa importante. Para as almas simples, não são necessários meios complicados. Como sou uma delas, certa manhã, durante minha acção de graças, Jesus deu-me um meio simples de cumprir minha missão. Fez-me compreender a seguinte palavra dos Cânticos: "Atraí-me, corramos ao odor de vossos perfumes". Ó Jesus, nem é necessário dizer: atraindo-me, atraí as almas que amo. Essa simples palavra: "Atraí-me", é suficiente. Compreendo-o, Senhor, quando uma alma se deixou cativar pelo odor inebriante dos vossos perfumes, não conseguiria mais correr sozinha; todas as almas que ela ama são arrastadas por ela. Isso se dá sem coação, sem esforço; é consequência natural da sua atracão por vós. Assim como uma torrente que se lança com impetuosidade no oceano arrasta atrás de si tudo o que encontrou -na sua passagem, assim, ó meu Jesus, a alma que mergulha no oceano sem margens do vosso amor arrasta consigo todos os tesouros que possui... Sabeis, Senhor, não tenho outros tesouros senão as almas que vos dignastes unir à minha; fostes vós que me confiastes esses tesouros, por isso ouso tomar de empréstimo as palavras que dirigistes ao Pai celeste na última noite que passastes na terra, viajante e mortal. Jesus, meu Bem-Amado, não sei quando acabará meu exílio... mais de uma tarde me verá cantar ainda no exílio as vossas misericórdias, mas, enfim, para mim também, chegará a última noite"''. Gostaria, então, de poder dizer-vos: "Eu glorifiquei-vos na terra, consumando a obra que me destes a fazer. Manifestei o vosso nome aos homens que me destes, separando-os do mundo. Eram vossos e os destes a mim; eles guardaram a vossa palavra. Sabem agora que tudo quanto me destes vem de vós, porque eu lhes transmiti as palavras que vós me comunicastes, e eles receberam-nas, e conheceram verdadeiramente que eu saí de vós e creram que vós me enviastes. Por eles é que eu rogo; não é pelo mundo que rogo, é por aqueles que me destes, porque são vossos. Já não estou no mundo, ao passo que eles ficam no mundo, enquanto eu vou para vós. Pai santo, guardai por causa do vosso nome os que me destes. Mas agora vou para vós e digo estas coisas estando ainda no mundo para que tenham em si a plenitude da minha alegria. Não peço que os tireis do mundo, mas que os guardeis do mal. Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. Não rogo só por eles, mas também por aqueles que vão crer em vós, por meio da vossa palavra.

"ó Pai, que onde eu estiver, os que me destes estejam também comigo, e que o mundo conheça que vós os amastes como amastes a mim".

Eis, Senhor, o que queria repetir para vós antes de voar para os vossos braços. Talvez seja temeridade. Mas há algum tempo permitis que seja audaciosa convosco. Como o pai do filho pródigo, falando para seu filho primogénito, dissestes-me: "Tudo o que é meu é teu". Portanto, vossas palavras são minhas e posso servir-me delas para atrair sobre as almas, que me são unidas, os favores do Pai celeste. Mas, Senhor, quando digo que onde eu estiver desejo que os que me destes também estejam, não pretendo que não possam alcançar uma glória muito mais elevada que aquela que vos agradar conceder-me. Apenas quero que sejamos todos reunidos no vosso belo Céu. Sabeis, Deus meu, nunca desejei nada senão amar-vos, não almejo outra glória. Vosso amor preservou-me desde a minha infância, cresceu comigo e, agora, é um abismo cuja profundeza não posso avaliar. O amor atrai o amor, por isso, meu Jesus, o meu se lança para vós, queria encher o abismo que o atrai, mas ai! não é nem uma gota de orvalho perdida no oceano!... Para amar-vos como me amais, preciso tomar de empréstimo o vosso próprio amor, só então encontro o repouso. Ó meu Jesus, talvez seja uma ilusão, mas parece-me que não podeis encher uma alma com mais amor do que o que me destes. É por isso que ouso pedir-vos para amar os que me destes como amastes a mim mesma. Um dia, no Céu, se eu descobrir que os amais mais do que a mim, regozijar-me-ei, reconhecendo desde agora que essas almas merecem muito mais que a minha o vosso amor. Mas na terra não posso conceber amor maior que aquele que vos dignastes prodigalizar-me gratuitamente, sem mérito algum da minha parte.

Madre querida, enfim, volto para vós, toda espantada pelo que acabo de escrever, pois não era minha intenção. Mas, como está escrito, tem de ficar. Antes de voltar à história dos meus irmãos, quero vos dizer, Madre, que não aplico a eles, mas às minhas irmãzinhas, as primeiras palavras tomadas de empréstimo ao Evangelho: Comuniquei-lhes as palavras que me comunicastes etc., pois não me sinto capaz de instruir os missionários, felizmente não sou bastante orgulhosa ainda para tanto! Nem teria sido capaz de dar alguns conselhos às minhas irmãs, se vós, Madre, que representais Deus para mim, não me tivésseis dado graça para isso.

Ao contrário, era nos vossos filhos espirituais, meus irmãos, que eu pensava ao escrever essas palavras de Jesus e as que seguem: "Não vos peço para retirá-los do mundo... rogo ainda para os que acreditarão em vós pelo que ouvirão dizer". Como, de facto, não poderia rezar pelas almas que salvarão em suas missões longínquas pelo sofrimento e pela pregação?

Madre, creio ser necessário dar-vos mais algumas explicações referentes à passagem do Cântico dos Cânticos: "Atraí-me, corramos". O que disse me parece pouco compreensível. "Ninguém", disse Jesus, "pode vir a mim, se meu Pai que me enviou não o atrair". Depois, por meio de parábolas sublimes e, muitas vezes, sem mesmo usar desse meio tão familiar ao povo, Ele nos ensina que basta bater para que se abra, procurar para encontrar e estender humildemente a mão para receber o que se pede... Acrescenta que tudo o que se pedir a seu Pai, em seu nome, Ele o concede. É por isso sem dúvida que o Espírito Santo, antes do nascimento de Jesus, ditou essa oração profética: Atraí-me, corramos.

O que é pedir para ser atraído, senão unir-se de maneira íntima ao objecto que cativa o coração? Se o fogo e o ferro tivessem raciocínio, que este último dissesse ao outro: Atraí -me, não provaria que deseja identificar-se com o fogo de maneira que o penetre e o impregne da sua ardente substância e passe a fazer um só com ele? Madre querida, eis a minha oração: peço a Jesus que me atraia às chamas do seu amor, que me una tão estreitamente a Ele, que seja Ele quem viva e aja em mim. Sinto que quanto mais o fogo do amor abrasar meu coração, mais repetirei: "Atraí-me". Mais as almas se aproximarem de mim (pobres pequenos escombros de ferro inúteis, se eu fosse afastada do braseiro divino), mais rápido correrão em direção ao odor dos perfumes do seu Bem-amado, pois uma alma abrasada de amor não pode permanecer inactiva. Sem dúvida, como santa Madalena, fica aos pés de Jesus, escuta suas palavras suaves e calorosas. Parecendo nada dar, dá muito mais que Marta, que se atormenta a respeito de muitas coisas e gostaria que sua irmã a imitasse. Não são os afazeres de Marta que Jesus censura, esses trabalhos, sua divina Mãe submeteu-se humildemente a eles a vida toda, pois cabia a ela preparar as refeições da Sagrada Família. É apenas a inquietação de sua dedicada anfitriã que Ele quer corrigir. Todos os santos compreenderam isso e, mais particularmente, talvez, os que iluminaram o universo com a doutrina evangélica. Não foi na oração que os santos Paulo, Agostinho, João da Cruz, Tomás de Aquino, Francisco, Domingos e tantos outros ilustres amigos de Deus foram encontrar essa ciência divina que encanta os maiores gênios? Um cientista disse: "Dêem-me uma alavanca, um ponto de apoio, e levantarei o mundo". O que Arquimedes não conseguiu obter, porque seu pedido não foi feito a Deus e era feito só do ponto de vista material, os santos o obtiveram em toda a sua plenitude. O Todo-Poderoso deu-lhes como ponto de apoio: Ele próprio e só Ele. Como alavanca: a oração que abrasa pelo fogo do amor. Foi com isso que ergueram o mundo. É com isso que os santos que ainda militam o erguem. Até o final dos séculos, será com isso também que os santos que vierem haverão de erguê-lo.

Madre querida, quero falar-vos agora do que entendo por odor dos perfumes do Bem-amado. Como Jesus voltou ao Céu, só posso segui-Lo pelas pistas que deixou. Como são luminosas essas pistas, como são perfumadas! Basta lançar o olhar nos santos Evangelhos, que logo respiro os perfumes da vida de Jesus e sei a que lado me dirigir.... Não para o primeiro lugar que vou, mas para o último. Em vez de avançar com o fariseu, repito, cheia de confiança, a humilde oração do publicano e, sobretudo, imito o comportamento de Madalena, seu espantoso, ou melhor, seu amoroso atrevimento, que encanta o Coração de Jesus, conquista o meu. Sinto-o. Mesmo que eu tivesse na consciência todos os pecados que se possa cometer, iria, com o coração dilacerado pelo arrependimento, lançar-me nos braços de Jesus, pois sei o quanto ama o filho pródigo que volta para Ele. Não é porque Deus, na sua obsequiosa misericórdia, preservou minha alma do pecado mortal que me elevo para Ele pela confiança e pelo amor.



Temas para meditar - 274


Humildade


Encontro, algures na minha natureza, alguma coisa que me diz que não há nada no mundo que seja desprovido de sentido, e muito menos o sofrimento. Essa qualquer coisa, escondida no mais fundo de mim, como um tesouro num campo, é a humildade. É a última coisa que me resta, e a melhor (...). Ela veio-me de dentro de mim mesmo e sei que veio no bom momento. Não teria podido vir mais cedo nem mais tarde. Se alguém me tivesse falado dela, tê-la-ia rejeitado. Se ma tivessem oferecido, tê-la-ia rejeitado (...). É a única coisa que contém os elementos da vida, de uma vida nova (...). Entre todas as coisas ela é a mais estranha (...). É somente quando perdemos todas as coisas que sabemos que a possuímos.

(oscar wilde, in "De Profundis")

Deus não perde batalhas

Se tiveres caído, levanta-te com mais esperança! Só o amor-próprio não entende que o erro, quando se rectifica, ajuda a conhecer-nos e a humilhar-nos. (Sulco, 724)

Para a frente, aconteça o que acontecer! Bem agarrado ao braço do Senhor, considera que Deus não perde batalhas. Se, por qualquer motivo, te afastas d'Ele, reage com a humildade de começar e de recomeçar; de fazer de filho pródigo todos os dias, inclusive repetidamente nas vinte e quatro horas do dia; de reconciliar o teu coração contrito na Confissão, verdadeiro milagre do Amor de Deus. Neste Sacramento maravilhoso, o Senhor limpa a tua alma e inunda-te de alegria e de força para não desanimares na tua luta e para voltares de novo sem cansaço a Deus, mesmo quando tudo te pareça obscuro. Além disso, a Mãe de Deus, que é também nossa Mãe, protege-te com a sua solicitude maternal e dá-te confiança no teu caminhar.

A sagrada Escritura adverte que até o justo cai sete vezes. Sempre que leio estas palavras, a minha alma estremece com um forte abalo de amor e de dor. Uma vez mais, vem o Senhor ao nosso encontro, com essa advertência divina, para nos falar da sua misericórdia, da sua ternura, da sua clemência, que nunca acabam. Estai seguros: Deus não quer as nossas misérias, mas não as desconhece e conta precisamente com essas debilidades para que nos façamos santos. (...)


Prostro-me diante de Deus e exponho-lhe claramente a minha situação. Logo tenho a segurança da sua assistência e oiço no fundo do meu coração o que ele me repete devagar: meus es tu! Sabia – e sei – como és; para a frente! (Amigos de Deus, nn. 214–215)

Tratado do verbo encarnado 32

Questão 5: Da assunção das partes da natureza humana

Em seguida devemos tratar da assunção das partes da natureza humana.

E nesta questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se o Filho de Deus assumiu um verdadeiro corpo.
Art. 2 — Se Cristo tinha um corpo carnal ou terrestre ou celeste.
Art. 3 — Se o Filho de Deus assumiu a alma.
Art. 4 — Se o Filho de Deus assumiu o entendimento humano ou intelecto.

Art. 1 — Se o Filho de Deus assumiu um verdadeiro corpo.

O primeiro discute-se assim. — Parece que o Filho de Deus não assumiu um verdadeiro corpo.

1. — Pois, diz o Apóstolo, que ele se fez semelhante aos homens. Ora, o que verdadeiramente existe não existe por semelhança. Logo, o Filho de Deus não assumiu um verdadeiro corpo.

2. Demais. — A assunção do corpo em nada contrariava à dignidade da divindade, assim, como diz Leão Papa, nem a glorificação destruiu a natureza inferior, nem a assunção diminuiu a superior. Ora, a dignidade de Deus exige que seja totalmente separado do corpo. Logo, parece que, pela assunção, Deus não se uniu a um corpo.

3. Demais. — Os sinais devem responder aos assinalados. Ora, as aparições do Antigo Testamento, que foram os sinais e as figuras da aparição de Cristo, não eram realmente de natureza corpórea, mas construíam visões imaginárias, como o adverte a Escritura: Vi o Senhor sentado, etc. Logo, parece que também a aparição do Filho de Deus no mundo não foi a de um corpo real, mas só em figura.

Mas, em contrário, diz Agostinho, se o corpo de Cristo foi um fantasma, Cristo enganou, e enganou-se, não é a verdade. Ora, Cristo é a verdade. Logo, o seu corpo não foi fantasma. E assim, é claro que assumiu um verdadeiro corpo.

Como foi dito, o Filho de Deus não nasceu putativamente, quase com um corpo figurado, mas, com um verdadeiro corpo. E disto podemos dar três razões. — A primeira é deduzida da natureza humana, à qual é próprio ter um corpo. Suposto, pois, pelo que já dissemos, que era conveniente o Filho de Deus assumir a natureza humana, resulta, como consequência, que teve um verdadeiro corpo. — A segunda razão pode ser deduzida do que se realizou no mistério da Encarnação. Pois, se o corpo de Cristo não era real mas fantástico, também consequentemente não padeceu uma verdadeira morte, nem nada do que dele narram os Evangelistas realmente praticou, mas só na aparência. Donde também resultaria que não operou a verdadeira salvação do género humano, pois, há-de o efeito proporcionar-se à causa. — A terceira razão pode ser concluída da dignidade própria da Pessoa assumente, a qual, sendo a verdade, não lhe era decente existir qualquer ficção na sua obra. Por isso, o próprio Senhor se dignou excluir esse erro quando os discípulos, conturbados e aterrados, julgavam ver um espírito e não um corpo verdadeiro. Por isso, ofereceu-se para que o apalpassem, dizendo: Apalpai e vede, que um espírito não tem carne nem ossos, como vós vedes que eu tenho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A referida semelhança exprime a verdade da natureza humana em Cristo, ao modo pelo qual todos os que têm verdadeiramente a natureza humana se consideram semelhantes, pela espécie. Mas não se entende por ela uma semelhança fantástica. E para evidenciá-lo o Apóstolo acrescenta — Feito obediente até à morte e morte de cruz, o que não poderia ser, se a semelhança fosse somente em imagem.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Pelo facto do Filho de Deus ter assumido um corpo real em nada se lhe diminuiu a dignidade. Por isso diz Agostinho: Abateu-se a si mesmo, tomando a forma de servo, para que se tornasse servo, mas não perdeu a plenitude da forma de Deus. Pois o Filho de Deus não assumiu um corpo real para que se fizesse a forma do corpo, o que repugna à divina simplicidade e pureza, pois tal seria assumir um corpo na unidade de natureza, o que é impossível, como do sobredito se colhe. Mas, salva a distinção da natureza, assumiu um corpo na unidade da pessoa.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A figura deve corresponder à realidade quanto à semelhança e não quanto à verdade própria dessa realidade, pois, se a semelhança o fosse em tudo, já não seria um sinal, mas a própria realidade, como diz Damasceno. Logo, era conveniente que as aparições do Antigo Testamento fossem só aparências, quase figuras, mas a aparição do Filho de Deus no mundo seria segundo a verdade do corpo, quase uma realidade figurada pelas anteriores figuras. Donde o dizer o Apóstolo: Que são sombra das coisas vindouras, mas o corpo é de Cristo.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.