LEGENDA MAIOR
(Vida de São Francisco de Assis)
CAPITULO 4
6. Muitos, inflamados pelo
ardor de sua pregação, impunham-se a nova regra de penitência de acordo com a
fórmula aperfeiçoada pelo homem de Deus que decidiu chamar esse género de vida
“Ordem dos Frades da Penitência”. E não havendo outro caminho possível para
todos os que buscam o céu a não ser o caminho da penitência, admitem-se nela os
clérigos e os leigos, os solteiros e os casados. Os inúmeros milagres
realizados por alguns deles provam bem qual o mérito que tiveram aos olhos de
Deus. Houve também donzelas que optaram pela castidade perpétua, entre as quais
Clara, virgem amantíssima de Deus, primeiro rebento do jardim, perfumada como
branca flor primaveril, esplêndida como estrela fulgurante. Gloriosa agora no
céu, é justamente venerada na terra pela Igreja, ela que foi, em Cristo, a
filha do Pai São Francisco, pobrezinho, e a mãe das damas pobres.
7. Também houve um grande
número de homens que, movidos não só por devoção, mas também inflamados do
desejo da perfeição de Cristo, abandonavam toda vaidade mundana e seguiam
Francisco.
Crescendo e multiplicando-se
dia após dia, espalharam-se em pouco tempo até aos confins da terra.
Realmente a santa pobreza,
único viático que levavam consigo nas suas viagens, os tornava prontos para
toda obediência, fortes para enfrentar as fadigas e sempre dispostos a partir
em missão.
Nada possuíam deste mundo
e a nada se apegavam.
Nada, pois, temiam perder.
Estavam livres dos
cuidados, sem ansiedades que os perturbassem ou lhes causassem preocupações e
os distraíssem.
Os seus corações viviam na
paz e olhavam o futuro dia após dia, sem se preocuparem com abrigo para a
noite.
Em diversas partes do
mundo sucedia-lhes ser cobertos de injúrias como pessoas desprezíveis e
desconhecidas; mas o amor do Evangelho os tornara tão pacientes, que eles
mesmos procuravam os lugares em que sabiam que seriam per seguidos e evitavam
aqueles em que a santidade deles era conhecida e haviam encontrado honra e simpatia.
A pobreza que suportavam
era para eles como riqueza e abundância, e segundo a palavra do profeta tinham
prazer “não nas coisas grandes, mas nas pequenas” (Eclo 29,30).
Certa vez, alguns irmãos
chegados às terras dos pagãos encontraram um sarraceno que, movido de
compaixão, lhes ofereceu dinheiro necessário para comprarem o que comer, mas
eles recusaram aceitar o dinheiro.
Ficou admirado, porque via
que nada tinham.
Percebeu então que era por
amor a Deus que eles se haviam feito mendigos e recusavam dinheiro.
Sentiu-se tão atraído por
eles, que se ofereceu para dar-lhes o suprimento necessário, enquanto lhe restasse
alguma fortuna.
Preciosa e inestimável
pobreza, poder admirável que soube converter em tão grande ternura e compaixão
um coração bárbaro e feroz!
Por conseguinte, é um
crime monstruoso e detestável que um cristão pisoteie e despreze essa pérola
preciosa que teve em tão grande estima um infeliz sarraceno.
8. Nesse tempo, um
religioso da Ordem dos Crucíferos, chamado Morico, encontrava-se numa
hospedaria próxima à cidade de Assis, vítima de enfermidade tão grave e
prolongada, que os médicos esperavam para muito breve a sua morte.
Vendo-se nesse estado,
enviou o enfermo uma pessoa que em seu nome pedisse com instância a Francisco
se dignasse rogar por ele ao Senhor.
Ouviu o santo afavelmente
essa súplica e recolhendo umas migalhas de pão, amassou-as com um pouco de
azeite tomado da lâmpada que ardia diante do altar da Santíssima Virgem, formou
com essa massa um preparado inteiramente novo e o enviou ao doente através dos
seus religiosos, dizendo-lhes ao mesmo tempo:
“Ide, levai este remédio
ao nosso irmão Morico e dizei-lhe que estou certo de que por meio dele a
virtude omnipotente de Cristo não só lhe devolverá inteiramente a saúde, mas
também, convertendo-o em esforçado guerreiro, fará que venha muito cedo a
engrossar as fileiras de nosso exército”.
Mal o enfermo provou
daquele antídoto, feito sob inspiração divina, levantou-se completamente
curado, sentindo-se tão revigorado por Deus na alma e no corpo que, tendo
ingressado na Ordem de Francisco, nela perseverou por muitos anos levando uma
vida de muita penitência: suas vestes eram apenas uma túnica pobre e consumida
pelo uso, sob a qual levou por muito tempo um áspero cilício, colado à carne;
comia apenas alimentos crus, ervas, legumes e frutas; não se sabe que tenha
provado algum dia pão e vinho. Apesar disso, sempre viveu são e robusto e sem
achaques de espécie alguma.
9. Cresciam cada dia mais
em mérito os pobrezinhos de Cristo, e a fama de que gozavam se espalhou como um
perfume, atraindo de todos os pontos da terra homens que queriam conhecer nosso
bem-aventurado Pai. E até mesmo um poeta mundano, outrora coroado pelo
imperador e apelidado posteriormente “Rei das Canções”, desejou conhecer esse
homem de Deus, de cujo desprezo pelo mundo todos falavam.
Encontrou-o, por acaso,
pregando num mosteiro de São Severino, e ali a mão do Senhor pousou sobre ele:
viu Francisco, pregador da cruz de Cristo, atravessado por duas espadas
brilhantes e postas em forma de cruz; uma delas descia da cabeça aos pés e a
outra se dirigia, penetrando pelo peito, desde a extremidade de uma mão até a
da outra.
O poeta não conhecia
Francisco pessoalmente, mas percebeu que a pessoa que lhe aparecia naquele
milagre não poderia ser outra.
Ficou estupefacto ante
aquela visão que Deus lhe mostrava e imediatamente resolveu encetar uma vida
mais santa; a palavra do santo levou-o à compunção, como se uma espada
espiritual saindo de sua boca o tivesse traspassado.
Por isso, desprezando
todas as pompas e vaidades do mundo, uniu-se a Francisco e abraçou resolutamente
seu género de vida, professando a Regra da Ordem. E como o Seráfico Pai muito
se alegrou ao vê-lo convertido das iniquidades do mundo à tranquila paz de que
gozam os verdadeiros discípulos de Cristo, quis que na Ordem fosse conhecido
com o nome de Frei Pacífico.
Muito santo se tornou
Pacífico mais tarde; e antes de ir à França, em que foi o primeiro ministro
provincial, foi agraciado por Deus com uma visão.
Um grande tau apareceu
várias vezes na testa de Francisco, iluminando e adornando maravilhosamente a
sua face com singular variedade de cores. E na verdade o santo nutria grande
veneração e afecto pelo sinal tau. E mesmo o recomendava muitas vezes por
palavras e o escrevia de próprio punho sobre as cartas que enviava, como se a sua
missão consistisse, conforme a palavra do profeta, em “marcar com um tau a
fronte dos homens que gemem e choram” (Ez 9,4), convertidos sinceramente
a Cristo.
10. Com o passar dos anos
e crescendo o número dos irmãos, o solícito pastor começou a reuni-los no local
chamado Santa Maria da Porciúncula para o capítulo geral, a fim de repartir
entre eles, por sorte, a terra ou propriedade de sua pobreza e dar a cada qual
a porção que a obediência determinasse.
Mais de cinco mil irmãos
aí se reuniram e faltava tudo nesse lugar. Mas Deus, em sua bondade, veio-lhes
em socorro, concedendo-lhes o suficiente para as forças do corpo e a alegria do
espírito.
Aos capítulos provinciais
Francisco não podia assistir pessoalmente, mas a sua presença era marcada por
directivas solícitas, oração contínua e com sua bênção eficaz. E às vezes
mesmo, por virtude do poder de Deus, ele aparecia visivelmente.
Um dia, por exemplo,
quando o glorioso confessor de Cristo, António, estava pregando aos irmãos no
capítulo de Arles acerca do título da cruz: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”,
certo religioso de virtude comprovada, de nome Monaldo, movido por instinto
interior e divino, dirigiu os olhos para a porta da sala onde se celebrava o
capítulo, e cheio de admiração viu ali, com os olhos corporais, o seráfico Pai,
que, elevado no ar e de mãos estendidas em forma de cruz, abençoava seus religiosos.
Todos experimentaram
naquela ocasião tanta e tão extraordinária consolação de espírito, que em seu
interior não lhes foi possível duvidar da real presença do seráfico Pai,
confirmando-se depois nesta crença não só pelos sinais evidentes que haviam
observado, como também pelo testemunho que verbalmente lhes deu o próprio
santo. Devemos admitir que a mesma força omnipotente de Deus que permitiu
outrora ao santo bispo Ambrósio assistir aos funerais do glorioso Martinho, para
que venerasse com piedoso afecto aquele santo pontífice, essa mesma providência
quis igualmente que seu servo Francisco estivesse presente à pregação de Santo
António, grande arauto do Evangelho, para que aprovasse a verdade daquela doutrina,
sobretudo no que se refere à cruz de Cristo, cujo ministro e embaixador fora
constituído.
11. Quando a Ordem se
expandiu, Francisco julgou ter chegado o momento de obter a confirmação em
carácter definitivo pelo Papa Honório, sucessor de Inocêncio, da forma de vida
aprovada por este último. Deus então, para instruí-lo, fez-lhe a seguinte
revelação: parecia-lhe ter ajuntado do chão minúsculas migalhas de pão e ele devia
distribui-las a seus irmãos esfaimados que se comprimiam em grande número à sua
volta. Como hesitasse em distribuir tão pequenas migalhas que lhe poderiam ter
escapado das mãos, disse-lhe uma voz do céu: “Francisco, com todas essas
migalhas faze uma hóstia e poderás dar de comer a todos os que o desejarem”.
Ele assim fez, mas todos aqueles que a recebiam sem devoção ou a tratavam sem consideração
apareciam claramente marcados de uma lepra que os consumia. De manhã, contou o
santo tudo isso aos seus companheiros, triste por não saber penetrar o
mistério. Mas no dia seguinte à noite enquanto, privando-se do sono, ele continuava
a orar, ouviu a mesma voz lhe dizer do alto do céu: “Francisco, as migalhas que
viste na última noite são as palavras do Evangelho, a hóstia representa a Regra
e a lepra o pecado”.
Querendo, pois, reduzir a
uma forma mais sucinta, conforme o sentido da visão anterior, a Regra escrita
antes com abundância de palavras tomadas ao Evangelho, movido por inspiração
divina, subiu com dois companheiros ao cume de um monte e aí, havendo-se
entregue durante vários dias a um jejum rigoroso a pão e água, fez escrever uma
nova Regra conforme o Espírito Santo lhe ia ditando. Mas aconteceu que, ao descer
do monte, Francisco entregou aquela Regra a seu vigário, com encargo de a
guardar; e como este, depois de alguns dias, afirmasse que a havia perdido por
descuido, o santo voltou novamente à solidão do monte e a escreveu pela segunda
vez de modo inteiramente igual à primeira, como se o próprio Deus a houvesse
ditado palavra por palavra. Depois disso, conseguiu logo, como desejava, que o
mencionado Papa Honório III lhe confirmasse solenemente a Regra, no oitavo ano
de seu pontificado. Exortando mais tarde fervorosamente a seus filhos à fiel
observância da referida Regra, garantia-lhes que ele nada havia colocado nela
que fosse de sua reflexão pessoal, antes tudo o que continha escrevera conforme
o próprio Senhor lhe havia revelado. E para que assim constasse com mais
certeza para testemunho divino, passados alguns dias, foram impressas em seu
corpo pelo dedo do Deus vivo as chagas de Cristo, como se fossem elas uma bula
do Sumo Pontífice, Cristo Jesus, em confirmação absoluta da Regra e recomendação
eficaz de seu autor, como se dirá depois ao descrevermos mais amplamente as
virtudes do santo.
São Boaventura
(cont)
(Revisão
da versão portuguesa por AMA)