A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRQ XIV
CAPÍTULO V
Tolera-se melhor a teoria dos platónicos do que a dos maniqueus acerca da
natureza do corpo e da alma. Mas também se deve rejeitá-la por atribuir à
natureza da carne
a causa de todos os vícios.
Não há, portanto, necessidade de, com injúria para o Criador, acusar dos nossos
vícios e pecados a natureza da carne que, no seu género e na sua ordem, é boa.
O que não é bom é deixar o Criador — que é bom — e viver em conformidade com o
criado — bom também —, quer se opte por viver em conformidade com a carne, em conformidade com a alma ou em
conformidade com o homem todo, formado de alma e de carne (tanto se pode
designá-lo só com o nome de alma como com o nome de carne). Realmente, quem
considera a natureza humana como o bem supremo e acusa a natureza da carne como
um mal, — não há dúvida de que aprecia isto com a vacuidade humana e não com a
verdade divina. E certo que os platónicos não são tão insensatos com o os
maniqueus que detestam os corpos terrenos com o se fossem maus por natureza;
afirmam, de facto, que todos os elementos deste mundo visível e tangível e as
suas qualidades tem Deus por autor; todavia, entendem que estes órgãos feitos
de terra e estes membros, que têm que morrer, impressionam as almas ao ponto de
nelas fazerem nascer as doenças que são os desejos e os tem ores quer do prazer quer da tristeza.
Estas quatro «perturbações» como lhes ama Cícero, ou «paixões», segundo muitos
traduzem do 8rego, compreendem todas as más propensões dos costumes humanos.
Mas se assim é, porque é que, em Vergílio, Eneias ao saber, nos infernos, de
seu pai, que as almas voltarão aos seus corpos, exclama admirado desta opinião:
Ó pai, dever-se-á pensar que daqui as almas sobem ao Céu.
E de novo voltarão aos pesados corpos?
Donde vem a esses infortunados um tão funesto desejo de luz?[i]
Será então sob a influência destes órgãos de terra e destes membros que têm de
morrer que as almas, cuja pureza é tão vigorosamente proclamada, sentirão ainda
um tão funesto desejo? Não diz que estão purificadas de todas as suas máculas
corpóreas quando começam a desejar o regresso aos corpos? Donde se conclui:
mesmo que se
verificasse — o que é total ente infundado — que as almas indo e vindo em
alternativa incessante, passariam da purificação à contam inacção, seria falso
afirmar que todas as agitações culpáveis e viciosas da alma têm a sua origem
nos corpos terrestres. Porque, segundo os próprios platónicos, este «desejo
funesto», com o diz o ilustre poeta, vem tão pouco do corpo que aparece na alma
purificada de toda a mácula corporal, liberta de todo o corpo para a obrigar a
reentrar no corpo. Desta forma, segundo a sua própria confissão, não é só sob a
influência da carne que a alma experimenta o desejo, o temor, o prazer, a dor —
é também dela própria que pode proceder a agitação destes
impulsos.
CAPÍTULO VI
Valor da vontade humana por cujo juízo são tidos por bons ou maus os afectos
da alma.
O que, porém, interessa é saber com o é a vontade do homem: porque, se ela é
perversa, perversos serão os seus movimentos; mas se é recta, não serão
culpáveis, mas serão até louváveis. E que a vontade está em todos os
movimentos, ou melhor, todos eles mais não são que vontades. Realmente, que é o
desejo ou a alegria senão a vontade que consente no que queremos? Que é o temor ou a tristeza senão a vontade que
nos desvia do que recusamos? Chama-se desejo quando no desejo estamos de acordo
com o que queremos. Também quando a nossa recusa recai sobre o que não
desejaríamos experimentar, esta forma de vontade chama-se medo; e, quando recai sobre o que experimentam os a
nosso pesar, esta forma de vontade é a tristeza. Em suma: a vontade do homem é
atraída ou repelida conforme a diversidade dos objectos que procura ou evita e
assim se muda ou transforma nestes diferentes afectos. Por isso o homem que
vive, não em conformidade com o homem, mas em conformidade com Deus, tem de amar a Deus. E como ninguém é m au por natureza, mas por vício, o que vive em
conformidade com Deus deve ter para com os maus um perfeito ódio, sem, todavia,
odiar o homem por causa do vício nem amar o vício por causa do homem: deve
apenas odiar o vício e amar o homem. Assim, uma vez curado o vício, tudo o que
ele deve amar permanecerá e nada permanecerá do que deve odiar.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Vergílio, Eneida, VI, 799-721.