Tempo comum Semana X
São Barnabé - Apóstolo
Evangelho: Mt 10,
7-13
7 Ide, e anunciai que está
próximo o Reino dos Céus. 8 «Curai os enfermos, ressuscitai os
mortos, limpai os leprosos, lançai fora os demónios. Dai de graça o que de
graça recebestes. 9 Não leveis nos vossos cintos nem ouro, nem
prata, nem dinheiro, 10 nem alforge para o caminho, nem duas
túnicas, nem sandálias, nem bordão; porque o operário tem direito ao seu
alimento. 11 «Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes,
informai-vos de quem há nela digno de vos receber, e ficai aí até que vos
retireis. 12 Ao entrardes na casa, saudai-a, dizendo: “A paz seja
nesta casa”. 13 Se aquela casa for digna, descerá sobre ela a vossa
paz; se não for digna, a vossa paz tornará para vós.
Comentário:
Fala-se constantemente de paz, justamente por ela não
estar, como deveria, instalada no mundo.
A paz verdadeira, a única que nos deve interessar, é a
paz de Cristo.
A paz que os homens almejam não é a conseguida com a
imposição, à força quer seja à mesa de negociações quer alcançada no campo de
batalha. Para ter paz é preciso, antes de mais, estar pronto, disponível para
ceder sem hesitação naquilo que, em nós, não passa de capricho ou teimosia.
Enquanto o não fizermos é inútil perseguir a paz porque,
não a tendo em nós mesmos, jamais a alcançaremos.
(ama, comentário
sobre Mt 10, 7-15, 2012.06.11)
Leitura espiritual
Temas
A
PACIÊNCIA
INTRODUÇÃO
O
HOMEM NA CALÇADA
O
homem estava ali, perto de nós – de mim e de um meu amigo –, na mesma calçada,
a uns vinte metros de distância. Era um sessentão de estatura mediana e puxava
para gordo. Chamava a atenção porque gesticulava com invulgar veemência. Dava
para perceber, mesmo de longe, que se lhe contraíam as feições. De súbito,
elevou fortemente a voz, e então chegou até nós uma frase perfeitamente
audível:
–
Tenha santa paciência!
Nada
havíamos captado, nem eu nem o meu amigo, da agitada conversação anterior. Mas uma
certeza nos ficava: aquele homem acabava de perder a paciência, que devotamente
invocava como “santa”.
Era
evidente que o homem gordo não tinha gostado de alguma coisa de que lhe falara
o seu interlocutor. E o pedido de que tivesse santa paciência – explodido num
desabafo – fora sem dúvida provocado por uma contrariedade: o outro afirmara,
narrara ou defendera algo que o tinha aborrecido, que o tinha contrariado.
Sempre são as contrariedades que nos fazem perder a paciência. Como é lógico,
nunca nos impacientamos quando tudo nos sorri e se amolda aos nossos desejos.
Se
prestarmos atenção, poderemos observar que, na nossa linguagem comum, a perda
da paciência anda sempre associada a alguma coisa difícil de aceitar, de
aturar, de “engolir”, de sofrer:
“Haja
paciência para aguentar isso”, “Aquilo já está saturando as paciências”, “É
dose...”, dizemos.
E
é claro que, com isso, estamos falando de algo desagradável, que nos aborreceu;
quase sempre, de uma pessoa ou de uma situação que nos vem contrariando ou
incomodando desde há um certo tempo. Perante a adversidade instantânea (como a
agressão verbal de um motorista – “domingueiro!” – que passa por nós em alta
velocidade), não caímos propriamente na impaciência, mas – como veremos logo –
na ira.
TRÊS
CONTRARIEDADES E DUAS REACÇÕES
Se
pensarmos um pouco, analisando o que se passa connosco, perceberemos que
costumamos padecer de três tipos de contrariedades e que, em face delas, temos
dois tipos de reacções.
Existem
as contrariedades provocadas pelos outros: eles têm aqueles modos desagradáveis
de falar, de olhar ou não olhar, de retrucar ou não responder, de esquecer ou
estar lembrando-nos certas coisas a toda a hora, de dirigir carro – dirigir? –,
de se atrasar, de impor...
Existem
depois as contrariedades procedentes de nós mesmos: “Não me aguento, voltei a
deixar a chave de casa no escritório!”, “Por que sempre gaguejo ao falar na
sala de aula?”, “Não consigo contar uma piada que faça rir a ninguém!” E, por
último, as que decorrem das circunstâncias: “Já faz sete meses que estou sem
emprego!”, “Desde que apanhei aquela bronquite, nunca mais deixei de tossir!”, “Justamente
quando fui tirar férias, veio aquela frente fria estacionária e não parou mais
de chover!”
De
facto, quase todas as contrariedades se enquadram em algum desses três
capítulos.
Ora,
ao lado dessas três espécies de contrariedades, existem, como mencionávamos
acima, dois modos diferentes, ainda que muito “aparentados”, de reagir. Vale a
pena focalizá-los.
O
primeiro modo é a impaciência. É preciso dizer desde já que a impaciência, em
si mesma, na sua essência mais íntima, consiste em não saber sofrer.
Precisamente a palavra paciência deriva do verbo latino pati, que significa
padecer. Por isso, a virtude da paciência é a capacidade de padecer dignamente,
a arte de sofrer bem, e mais concretamente a paciência cristã é a virtude que nos
dá, com a graça divina, a capacidade de sofrer, de suportar as contrariedades e
a dor – especialmente quando se prolongam – com fé, esperança e amor.
Uma
vez esclarecido isto, pode também ficar claro que a irritação, a brusquidão, a
raiva ou a cólera não fazem parte, propriamente falando, da impaciência – ainda
que muitas vezes a acompanhem –, mas da ira. É bem verdade que a ira – a que
nos referiremos daqui a instantes – e a impaciência convivem muitas vezes no
nosso dia-a-dia como duas irmãs siamesas. Mas é útil não perder de vista, na
leitura destas páginas dedicadas à paciência, que a impaciência se dá – mesmo que
não se faça acompanhar de nenhuma emoção ou explosão – simplesmente quando não
sabemos aceitar ou aceitamos de má vontade aquilo que nos contraria ou nos faz
sofrer.
A
impaciência é rica em apresentações. Pode-se manifestar quer no nosso interior,
quer externamente, de maneiras muito variadas. Com muita frequência, aflora em
forma de queixas internas (quando a pessoa se lamenta no íntimo, sentindo-se vítima),
ou de reclamações ásperas ou lamurientas com os outros, ou de cobranças
insistentes, ou de suspiros lastimosos, ou de trejeitos e desabafos reveladores
de cansaços morais (“Já não suporto mais! Cheguei ao limite! Isto é superior às
minhas forças!”). Também são frutos da impaciência os comentários de desânimo e
os olhares de tristeza... É interessante saber que um dos principais efeitos da
paciência, mencionado por São Tomás de Aquino, é expulsar a tristeza do coração.
A
IRA É DIFERENTE
Ao
lado da impaciência, um segundo modo de reagir perante as contrariedades é a
ira, a irritação já acima mencionada como assídua parceira da impaciência.
Quando alguém se deixa levar pela ira, é porque perdeu – repentinamente ou por
acumulação de contrariedades – o controlo emocional. A pessoa irada não tem
mais autodomínio e extravasa a sua revolta por meio do grito (os terríveis
gritos das mães desgovernadas!), do safanão, da injúria, do palavrão (abra-se o
ouvido no meio do trânsito de uma grande cidade), do comentário ofensivo e
grosseiro, da “cortada” (fecha a cara, levanta-se da mesa e vai-se embora sem
acabar de jantar) ou da violência: desde dar um pontapé num objecto ou fechar
uma porta com estrondo, até sacar o revólver e disparar.
Assim
é a ira. Parente próxima, irmã siamesa até – dizíamos – da impaciência, mas
diferente dela. Não é inútil, pois, repisar que a impaciência é,
essencialmente, a incapacidade de sofrer, de sofrer “com classe”, dignamente,
como um filho de Deus.
Importa
insistir nisto porque é muito comum, hoje em dia, considerar como modelos de paciência
comportamentos mansos (sem ira nenhuma) que, na realidade, são exemplos da mais
perversa impaciência. Refiro-me, por exemplo, ao caso, tristemente trivial, de
casais que se separam, após poucos ou muitos anos de matrimónio e, fazendo
alarde de uma pretensa “maturidade”, se gabam de que “não brigaram”, não
quiseram nem ouvir falar em separação litigiosa, e entraram em acordo “como
gente civilizada” (acomodando suave e serenamente os seus dois egoísmos).
Por
trás de tanta calma, o que é que houve? Vejamos de perto, e logo perceberemos
que existiu uma elementar incapacidade de sofrer, de aceitar e superar com
generosidade as contrariedades e divergências normais de uma vida a dois. Ou
seja, houve a mais pura impaciência, uma impaciência radicalmente egoísta que,
por apresentar-se cinicamente calma e sorridente, é especialmente abjecta.
Costumam ter maior grandeza de coração e de carácter – e mais conserto – os que
cometem o erro de separar-se arrastados por uma erupção vulcânica de raiva, de
ira, de amor-próprio ferido. A ira, às vezes, é apenas um sinal de fraqueza.
Mas a infidelidade fria e calculista é sempre o retrato do egoísmo.
Mas
deixemos a ira para outra ocasião, e tentemos enfronhar-nos na impaciência, que
é o tema que agora nos ocupa. E, antes de mais, como começo de conversa, será
preciso reconhecer que todos nós, de um modo ou de outro, padecemos deste mal.
Ninguém escapa. Por isso, será interessante procurarmos descobrir por que e como
é que nos impacientamos, a fim de enxergarmos melhor os caminhos que nos podem
conduzir à paciência, essa virtude tão amada, tão desejada e tão pouco
praticada.
O
ESTOJO DO MUNDO
OS
BELOS ESTOJOS
O
leitor há-de concordar comigo em que uma das coisas mais belas do mundo é um
bom estojo. Ainda há poucos dias, ficava eu extasiado diante do estojo
deslumbrante de uma caneta alemã. É verdade que era dez vezes maior do que a
caneta, mas seus brilhos nacarados, sua pátina ambarina, e sobretudo o veludo
roxo azulado – macio e aristocrático – do interior, onde a caneta dourada se
encaixava à perfeição, eram de deixar de queixo caído.
Todos
nós já admiramos, provavelmente, a beleza e o ajuste preciso do estojo de um
relógio novo, de uma flauta reluzente, de uma joia... Haveria matéria para
escrever um livro inteiro sobre as maravilhas dos estojos. E, como é lógico,
nesse livro não poderia faltar, por contraste, um capítulo dedicado aos maus
estojos. Como é desagradável um estojo ruim, em que o objecto guardado dança,
chacoalha com um barulho irritante e acaba por estragar-se a si mesmo e
estragar os nossos nervos.
Mas
todas estas digressões sobre estojos, que têm a ver com a paciência?
–
Desculpe – haveria de responder a quem fizesse essa pergunta –, talvez eu tenha
posto o carro à frente dos bois. Só um pouco de paciência – estamos nisso –, e
daqui a nada vamos ver que estojo e paciência são duas coisas muito
relacionadas.
Para
isso, basta que pensemos se não é verdade que um dos nossos desejos mais
íntimos é que o mundo (a vida, as coisas, os acontecimentos e as pessoas)
funcione como um estojo aveludado e perfeitamente modelado, em que se encaixem
sempre suavemente, sem colisões nem atritos, os nossos sonhos, os nossos
desejos, os nossos caprichos, as nossas manias e até mesmo os nossos defeitos.
Ah,
se tudo na vida fosse assim! Para o meu mau humor, o estojo de cetim da
compreensão dos outros; para a minha doença, o estojo de seda de um serviço
público de saúde com a aparelhagem funcionando e sem filas; para o meu
trabalho, o estojo adamascado de chefes que me louvem e subordinados que em
tudo me obedeçam; e, lá em casa, o veludo amabilíssimo dos filhos dóceis e
agradecidos, sempre prontos a sussurrar com um sorriso carinhoso: – “Mamãe e
papai têm razão”, e o de um marido ou uma mulher que, sem pensarem em problemas
e cansaços pessoais, só saibam dizer, com o olhar mais terno: – “Meu bem, que
gostaria de fazer hoje?”
Que
fantástico um mundo-estojo assim! É melhor nem pensar nele porque, depois, ao abrirmos
os olhos à realidade, ficaríamos machucados. De qualquer modo, é indiscutível
que, se o mundo fosse o nosso suave, ajustadinho e macio estojo sob medida
(incluindo-se nessa “medida” também os auxílios imediatos de um Deus tão “bom”
que nos fizesse sempre as vontades), a impaciência desapareceria do mapa e
deveria ser apagada dos dicionários.
(cont.)
Suma
Teológica, II-II, q. 136, a. 2, 1.