EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO VI
ALGUMAS PERSPECTIVAS PASTORAIS.
Alguns recursos.
Pode acontecer que um dos
cônjuges não seja baptizado ou não queira viver os compromissos da fé. Neste
caso, o desejo que o outro tem de viver e crescer como cristão faz com que a
indiferença do cônjuge seja vivida com amargura. Apesar disso, é possível
encontrar alguns valores comuns que se podem partilhar e cultivar com
entusiasmo. Seja como for, amar o cônjuge não crente, fazê-lo feliz, aliviar os
seus sofrimentos e partilhar a vida com ele é um verdadeiro caminho de santificação.
Por outro lado, o amor é
um dom de Deus e, onde se derrama, faz sentir a sua força transformadora, por
vezes de forma misteriosa, a ponto que «o
marido não crente é santificado pela mulher, e a mulher não crente é
santificada pelo marido»[i].
As paróquias, os
movimentos, as escolas e outras instituições da Igreja podem desenvolver várias
mediações para apoiar e reavivar as famílias. Por exemplo, através de recursos
como reuniões de casais vizinhos ou amigos, breves retiros para casais, conferências
de especialistas sobre problemáticas muito concretas da vida familiar, centros
de aconselhamento conjugal, agentes missionários preparados para falar com os casais
acerca das suas dificuldades e aspirações, consultas sobre diferentes situações
familiares (dependências, infidelidade, violência familiar), espaços de
espiritualidade, escolas de formação para pais com filhos problemáticos,
assembleias familiares.
A secretaria paroquial deveria
ter possibilidades de receber com cordialidade e ocupar-se das urgências
familiares, ou encaminhá-las facilmente para quem possa dar ajuda.
Há também um apoio pastoral
que se verifica nos grupos de casais, sejam eles de serviço ou de missão, de
oração, de formação ou de mútua ajuda.
Estes grupos proporcionam
a ocasião de dar, de viver a abertura da família aos outros, de partilhar a fé,
mas ao mesmo tempo são um meio para fortalecer os cônjuges e fazê-los crescer.
É verdade que muitos
casais de esposos desaparecem da comunidade cristã depois do matrimónio, mas
com frequência desperdiçamos algumas ocasiões em que eles voltam a estar presentes
e nas quais poderíamos tornar a propor-lhes, de forma atraente, o ideal do
matrimónio cristão e aproximá-los a espaços de acompanhamento.
Refiro-me, por exemplo, ao
baptismo de um filho, à Primeira Comunhão, ou quando participam num funeral ou
no casamento dum parente ou amigo. Quase todos os casais voltam a aparecer
nestas ocasiões, que se poderiam aproveitar melhor.
Outro caminho de abordagem
é a bênção das casas ou a visita duma imagem da Virgem, que dão oportunidade
para desenvolver um diálogo pastoral sobre a situação da família.
Pode ser útil também
confiar a casais mais maduros a tarefa de acompanhar casais mais recentes da
sua própria vizinhança, a fim de os visitar, acompanhar nos seus inícios e propor-lhes
um percurso de crescimento. Com o ritmo da vida actual, a maioria dos casais
não estará disposta a reuniões frequentes, mas não podemos reduzir-nos a uma pastoral
de pequenas elites. Hoje, a pastoral familiar deve ser fundamentalmente missionária,
em saída, por aproximação, em vez de se reduzir a ser uma fábrica de cursos a
que poucos assistem.
Iluminar crises, angústias e dificuldades.
Deixo aqui uma palavra àqueles
que, no amor, já envelheceram o vinho novo do noivado.
Quando o vinho envelhece
com esta experiência do caminho, então aparece, floresce em toda a sua
plenitude a fidelidade dos momentos insignificantes da vida. É a fidelidade da
espera e da paciência. Esta fidelidade, cheia de sacrifícios e alegrias, de
certo modo vai florescendo na idade em que tudo fica «sazonado» e os olhos brilham com a contemplação dos filhos de seus
filhos. Foi assim desde o início, mas agora tornou-se consciente, assente,
amadurecido na surpresa quotidiana da redescoberta dia após dia, ano após ano.
Como ensinava São João da
Cruz, «os velhos amantes são os já
treinados e testados». Eles «já não
têm aqueles fervores sensíveis nem aquelas ebulições e chamas externas de
ardor, mas saboreiam a suavidade do vinho de amor bem sedimentado na sua
substância (...) assente dentro da alma».
Isto supõe que foram
capazes de superar, juntos, as crises e os momentos de angústia, sem fugir aos
desafios nem esconder as dificuldades.
O desafio das crises.
A história de uma família
está marcada por crises de todo o género, que são parte também da sua dramática
beleza.
É preciso ajudar a descobrir
que uma crise superada não leva a uma relação menos intensa, mas a melhorar,
sedimentar e maturar o vinho da união[ii].
Não se vive juntos para
ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira nova, a
partir das possibilidades que abre uma nova etapa.
Cada crise implica uma
aprendizagem, que permite incrementar a intensidade da vida comum ou, pelo menos,
encontrar um novo sentido para a experiência matrimonial. É preciso não se resignar
de modo algum a uma curva descendente, a uma inevitável deterioração, a uma mediocridade
que se tem de suportar. Pelo contrário, quando se assume o matrimónio como uma
tarefa que implica também superar obstáculos, cada crise é sentida como uma
ocasião para chegar a beber, juntos, o vinho melhor. É bom acompanhar os
cônjuges, para que sejam capazes de aceitar as crises que lhes sobrevêm, aceitar
o desafio e atribuir-lhes um lugar na vida familiar.
Os casais experientes e
formados devem estar dispostos a acompanhar outros nesta descoberta, para que
as crises não os assustem nem os levem a tomar decisões precipitadas. Cada crise
esconde uma boa notícia, que é preciso saber escutar, afinando os ouvidos do
coração.
Perante o desafio duma
crise, a reacção imediata é resistir, pôr-se à defesa por sentir que escapa ao
próprio controle, por mostrar a insuficiência da própria maneira de viver, e
isto incomoda. Então usa-se o método de negar os problemas, escondê-los, relativizar
a sua importância, apostar apenas em que o tempo passe.
Mas isto adia a solução e
leva a gastar muitas energias num ocultamento inútil que complicará ainda mais
as coisas. Os vínculos vão-se deteriorando e consolida-se um isolamento que danifica
a intimidade. Numa crise não assumida, o que mais se prejudica é a comunicação.
Assim, pouco a pouco, aquela que era «a
pessoa que amo» passa a ser «quem me
acompanha sempre na vida», a seguir apenas «o pai ou a mãe dos meus filhos», e por fim um estranho.
Para se enfrentar uma
crise, é necessário estar presente. É difícil, porque às vezes as pessoas isolam-se
para não mostrar o que sentem, trancam-se num silêncio mesquinho e enganador.
Nestes momentos, é necessário criar espaços para comunicar de coração a
coração.
O problema é que se torna
ainda mais difícil comunicar num momento de crise, se nunca se aprendeu a
fazê-lo. É uma verdadeira arte que se aprende em tempos calmos, para se pôr em
prática nos tempos borrascosos. É preciso ajudar a descobrir as causas mais
recônditas nos corações dos esposos e enfrentá-las como um parto que passará e
deixará um novo tesouro.
Mas, nas respostas às
consultações realizadas, assinalava-se que, em situações difíceis ou críticas,
a maioria não recorre ao acompanhamento pastoral, porque não o sente compreensivo,
próximo, realista, encarnado.
Por isso, procuremos agora
debruçar-nos sobre as crises conjugais com um olhar que não ignore a sua carga
de sofrimento e angústia.
(cont)
(revisão da versão
portuguesa por AMA)
[ii] Cântico espiritual
B, XXV, 11.