Tempo comum XXXI Semana
Evangelho:
Lc 16, 9-15
9 «Portanto, Eu vos digo: Fazei amigos com as riquezas
da iniquidade, para que, quando vierdes a precisar, vos recebam nos tabernáculos
eternos. 10 Quem é fiel no pouco também é fiel no muito; e quem é
injusto no pouco também é injusto no muito. 11 Se, pois, não fostes
fiéis nas riquezas iníquas, quem vos confiará as verdadeiras? 12 E se não fostes fiéis no
alheio, quem vos dará o que é vosso? 13 Nenhum servo pode servir a
dois senhores, porque, ou odiará um e amará o outro, ou se afeiçoará a um e
desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro». 14 Ora
os fariseus, que eram amigos do dinheiro, ouviam todas estas coisas e troçavam
d'Ele. 15 Jesus disse-lhes: «Vós sois aqueles que pretendeis passar
por justos diante dos homens, mas Deus conhece os vossos corações; o que é
excelente segundo os homens é abominação diante de Deus.
Comentário:
A verdadeira “chave” desta
Parábola é a Fidelidade.
O carácter firme e bem
formado leva o homem a ser fiel a si mesmo, aos outros e a Deus.
Não é possível merecer
crédito algum quem não merece confiança e, só merece confiança quem é fiel
aos seus princípios, à sua formação,
àquilo que é como pessoa, como cristão, aos outros com quem se relaciona,
sobretudo, com quem convive e assumiu compromissos e, finalmente, a Deus.
As coisas pequenas como as
grandes, o que escassa importância ou que tem muita, a pessoa fiel não faz
acepções nem tem “variações” na sua conduta. Por isso mesmo se pode confiar
nele sempre e sem reservas.
(ama, comentário sobre Lc 16, 9-15, 2010.10.11)
Leitura espiritual
Humildade
A
humildade mantém a direção da intencionalidade pessoal de fundo para o valor e
para o amor, sem o qual até o que aparentemente é virtude pode não o ser na
realidade. [i]
1. A humildade como
virtude moral
As
virtudes morais são hábitos que gravam firmemente, na pessoa que as possui, os
critérios reguladores das tendências humanas, de modo que os impulsos e os atos
que procedem delas, nem excedam nem fiquem abaixo da medida requerida para o
bem próprio e o bem dos outros.
Como
a sobriedade regula a tendência para a alimentação, e a castidade modera a
tendência sexual, a humildade regula duas importantes tendências do indivíduo:
a necessidade de reconhecimento e de estima dos outros, e o sentimento do
próprio valor (autoestima) 1. São duas tendências que fazem parte da
condição humana: existem em todo o ser humano, e não se podem nem devem
suprimir-se, como também não é possível eliminar a alimentação e a tendência
sexual.
A
sua real educação é extremamente importante para preservar o equilíbrio e o
crescimento moral pessoal e, indirectamente, a boa ordem das relações
interpessoais, pois as injustiças, a violência, os fracassos matrimoniais e os
conflitos no campo profissional, para citar só alguns exemplos, são
frequentemente consequência do orgulho, da susceptibilidade, ou do rancor.
Também
nas relações do homem com Deus a humildade desempenha um papel importante: a
vida espiritual pressupõe uma ideia adequada da posição que o homem tem perante
Deus.
A
humildade tem sido muitas vezes mal interpretada e até considerada uma
qualidade negativa e desprezível, própria de moral de escravos, ou o resultado
do ressentimento dos fracos.
Que
alguém queira fazer passar por humildade formas falsas de compensar debilidades
e desequilíbrios, é de facto perfeitamente possível, como é possível que se
pretendam disfarçar comportamentos viciosos sob o nome de qualquer outra
virtude (a prepotência pode dissimular-se sob o aspecto da dignidade ou da
justiça e a cobardia como bondade, etc.).
Mas
isso, nada tem a ver com a humildade que responde à inegável necessidade de
regular e educar duas tendências fundamentais que todo o ser humano tem.
2. Importância e tarefas
da humildade
É
possível investigar, historicamente e também a partir da análise teórica, qual
tem sido a situação da humildade fora do cristianismo. Na antiguidade pagã a
humildade era mais vista como um vício que como uma virtude, embora haja
algumas exceções.
Mas
deixando de lado essa questão, é preferível parar para mostrar quais são as
suas raízes antropológicas, antes de ver as formas próprias da humildade como
virtude cristã.
A
regulação ética das duas tendências a que se refere a humildade, consiste em
ajustá-las à realidade de cada pessoa, considerando-a em si mesma ou vista no
seu ambiente familiar, profissional e social, mas também na sua relação com
Deus.
Aristóteles
assim o vê quando escreve:
O que merece e pretende
coisas pequenas, é modesto (...). Aquele que, sendo indigno, se julga a si
mesmo digno de coisas grandes, é vaidoso (...) O que se julga menos digno do
que vale, é pusilânime (fraqueza de ânimo ou cobardia), quer seja muito ou
regular o que mereça, ou pouco e creia que merece ainda menos [ii].
O
importante não é aspirar a muito ou a pouco, mas em cada caso ao que é razoável
segundo uma apreciação objectiva e serena da realidade, não forçada pela
paixão.
A
humildade é importante, não tanto por realizar positivamente alguma das
dimensões do bem humano, mas porque a lhe corresponde proteger as realizações
do conhecimento, do amor, do trabalho, etc., de deformações, que podem
privá-las do seu verdadeiro valor.
O
orgulhoso é egocêntrico e dificilmente é capaz de amar verdadeiramente; vê o
trabalho profissional apenas como uma forma de auto-afirmação, e não como uma
modalidade de auto-transcendência que enriquece o mundo e contribui para o bem
dos outros
É
natural no homem a capacidade de olhar para si mesmo, como se olha para alguém
que é portador de um valor.
Do
ponto de vista evolutivo, a percepção do próprio valor passa através do
julgamento que merecemos ante os nossos semelhantes (pais, amigos, etc.).
O
ser humano precisa de um certo reconhecimento alheio, e isso reflecte a
tendência que chamamos necessidade de auto-estima.
Com
o desenvolvimento psicológico e moral, a pessoa, mesmo sem poder, nem dever,
ser completamente indiferente às reacções que o nosso ser ou o nosso
comportamento causam nos outros, adquire uma maturidade de avaliação suficiente
para formar uma imagem realista de si mesma e do próprio valor (autoestima),
conhecendo as qualidades positivas e negativas, o que se é, e o que se pode
chegar a ser.
Na
medida em que o sentimento do próprio valor depende de um juízo próprio, objectivo
e realista, a pessoa pode representar adequadamente as suas relações com os
outros (dependência - independência, liberdade - autoridade, etc.).
A
deterioração da razoável direcção (da humildade) pode afectar as duas
tendências mencionadas: a necessidade de estima, quando a pessoa não adquire um
distanciamento suficientemente equilibrado do julgamento dos outros; a
auto-estima quando, mesmo dispondo de suficiente autonomia de julgamento, este
baseia-se sobre uma percepção pouco realista do próprio valor, seja por
excesso, seja por defeito.
A
dependência excessiva do julgamento dos outros dá origem a fenómenos como a
ânsia de notoriedade, vaidade, teimosia e rigidez, isolamento, simulação de
doença, etc.
Todos
eles implicam sofrimento para quem o padece, e muitas vezes, também para os
outros.
O
desejo de notoriedade é típico de uma personalidade frágil e imatura que
precisa de sentir-se, constantemente, aprovada e elogiada por aqueles que estão
à sua volta.
Busca
satisfazer essa necessidade por todos os meios ao seu alcance: usa os seus
bens, e instrumentaliza o seu saber e o seu trabalho, para conseguir o
prestígio e a estima pública; ou quer dar que falar, mediante condutas
chamativas ou mesmo absurdas; ou busca a aprovação do grupo, aceitando as
ideias e os costumes dominantes, embora contrários às suas próprias convicções
profundas.
Outras
vezes opta pela vaidade, ou seja, aparenta o que não é, adoptando com esse
objetivo comportamentos falsos ou pouco autênticos. Quando tem de trabalhar sob
a autoridade de outros, ou em estreita colaboração com eles, chama a atenção
sobre si mesmo mediante a teimosia, a intransigência ou a rigidez.
Em
casos extremos, busca a atenção ou o afecto dos outros, simulando uma doença e
estando conscientes da astúcia, ou perdendo até essa consciência (fenómenos do
tipo histérico).
Quem
sofre estas deformações acaba por arruinar as suas relações sociais e a sua
sensibilidade ante os valores objectivos.
A
pessoa está sempre ocupada consigo mesma, porque o seu desordenado desejo de
estima é insaciável.
No
outro extremo, tão pouco seria justo que uma pessoa não fosse suficientemente
sensível ante as reacções que produz nos outros, o que levaria a contínuas
faltas de atenção, de respeito ou de educação.
O
segundo problema ocorre quando o sentimento de auto-estima depende de uma
avaliação autónoma, mas não suficientemente realista.
Surgem
então os sentimentos, bastante irracionais de inferioridade e insegurança num
extremo, ou no outro extremo de orgulho e autossuficiência.
A
personalidade do orgulhoso é diversa da condicionada pelo afã de notoriedade.
Por
detrás deste último fenómeno, apesar das aparências, esconde-se uma
personalidade frágil e pobre, que frequentemente se tortura com comparações e
invejas.
O
orgulhoso tem por sua vez uma personalidade dura, geradora de conflitos, com
frequência agressiva ou violenta: julga tudo e todos (espírito crítico); pensa
que tem sempre razão; sente-se superior a tudo e a todos; talvez recompense
quem se lhe submete, mas dificilmente ama e se entrega a alguém; e apesar de
temido dificilmente pode ser amado.
Apenas
se admira e respeita a si mesmo: tende para o narcisismo.
O
orgulhoso é muitas vezes susceptível ou arrogante.
Tem
conflitos com os outros e com a própria realidade, porque o seu nível de
aspirações é superior às suas verdadeiras capacidades.
Às
vezes, as suas capacidades são realmente elevadas, mas falta-lhe a sabedoria
para governar e evitar o que lhe vai subindo à cabeça.
Esta
breve descrição mostra a importância da humildade para o equilíbrio e
desenvolvimento pessoal, e também a sua dificuldade.
A
humildade mantém a direcção da intencionalidade pessoal de fundo para o valor e
para o amor, sem o qual até o que aparentemente é virtude pode não o ser na
realidade.
A
dificuldade da humildade está em que as tendências que regula não se podem
suprimir nem dominar com a vontade.
Devem
ser educadas, ou seja, ajustadas à realidade e abertas à participação, ao
serviço e ao amor.
Não
é possível deixar, completamente, de se olhar a si mesmo, mas pode aprender-se
a fazê-lo com uma mistura de realismo e sentido de humor, sobretudo sem que se
oculte a percepção do que está fora e do que está por cima de nós, pois nessa
dimensão adquire sentido tanto o que somos como o que não somos.
(cont)
[i] Era clássica a
definição de humildade, como virtude que tem como objecto moderar o apetite (o
desejo, a tendência) da própria excelência. Não é diferente do que se diz no texto,
porque a própria excelência, reflectida no juízo dos demais ou no próprio é o
objecto das duas tendências mencionadas. S. Tomás de Aquino considera que a
humildade está ligada à temperança, porque os desejos suscitados pela própria
excelência têm necessidade sobretudo de freio e moderação, que é o formalmente
caraterístico da temperança e das demais virtudes relacionadas com ela. Cfr. S.
Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 161.
[ii] Aristóteles, Ética
a Nicómaco, IV, 3:1123 b 5 ss.