Tempo comum XXX Semana
Todos
os Santos
Evangelho: Mt 5 1-12
1 Vendo Jesus aquelas multidões, subiu a um monte e, tendo-Se sentado,
aproximaram-se d'Ele os discípulos. 2 E pôs-Se a falar e ensinava-os,
dizendo: 3 «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o
Reino dos Céus. 4 «Bem-aventurados os que choram, porque serão
consolados. 5 «Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. 6
«Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. 7
«Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. 8
«Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. 9
«Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. 10
«Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é
o Reino dos Céus. 11 «Bem-aventurados sereis, quando vos insultarem,
vos perseguirem, e disserem falsamente toda a espécie de mal contra vós por
causa de Mim. 12 Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa
recompensa nos céus, pois também assim perseguiram os profetas que viveram
antes de vós.
Este discurso de
Jesus Cristo deve ter tido tal impacto naqueles que O escutaram que não admira
que, terminado este, quisessem fazê-lo rei.
Ainda hoje em dia,
com toda a sabedoria e conhecimentos que fomos acumulando, os cristãos
encontram nestas palavras inúmeros temas de reflexão e, sobretudo, de
esperança.
Sentimos que, de
uma forma ou outra, o Senhor se referiu a cada um de nós em particular, às
nossa dificuldades e problemas e, também, à forma de encarar as múltiplas
circunstâncias que se nos vão deparando ao longo da vida.
Não admira… Ele, é
o Senhor da Vida e da Morte, do passado, do presente e do futuro; tudo sabe e
tudo conhece e, sobretudo, conhece-nos a nós, a cada um individualmente e sabe
muito bem o que necessitamos para ser felizes.
(ama,
comentário sobre Mt 5, 1-12, 2013.11.01)
Leitura espiritual
HISTÓRIA DE UMA ALMA
Santa Teresinha do Menino Jesus
Manuscrito
"A" - Parte III
O
dia que se seguiu à minha primeira Comunhão foi ainda um dia bonito, mas
repassado de melancolia. A roupa linda que Maria comprara para mim, todos os
presentes recebidos, não me enchiam o coração. Não havia senão Jesus que
pudesse contentar-me. Anelava pelo momento em que me fosse dado recebê-lo pela
segunda vez. Cerca de um mês após minha primeira comunhão fui confessar-me para
a festa da Ascensão, e animei-me a pedir licença de fazer a Santa Comunhão.
Contra toda a expectativa, o senhor sacerdote mo permitiu, e coube-me a
felicidade de ajoelhar à Sagrada Mesa entre Papai e a Maria. Que doce
recordação guardei da segunda visita de Jesus! Desta vez ainda, corriam minhas
lágrimas com inefável doçura. Sem cessar repetia a mim mesma as palavras de São
Paulo: "Já não sou eu que vivo, Jesus é quem vive em mim!..." A
partir dessa Comunhão, meu desejo de receber o Bom Deus tornou-se cada vez
maior; obtive permissão de fazê-lo em todas as festas principais. Na véspera desses
ditosos dias, Maria punha-me à noite sobre os joelhos e preparava-me, como o
fizera para minha primeira Comunhão. Tenho lembrança de que me falou, certa
vez, a respeito do sofrimento, dizendo-me que provavelmente não andaria por tal
caminho, mas que o Bom Deus sempre me guiaria, como se faz com uma criança...
No
dia seguinte, depois de ter comungado, as palavras de Maria voltaram-me ao
pensamento. Senti nascer no coração grande desejo de sofrer e, ao mesmo tempo,
a íntima segurança de que Jesus me reservava grande número de cruzes. Senti-me
inundada de tão grandes consolações, que as considero como uma das maiores
graças de minha vida. O sofrer tornou-se-me um atractivo. Tinha encantos que me
arrebatavam, sem os conhecer com clareza. Até então, sofria sem amar o
sofrimento; desde aquele dia senti por ele verdadeiro amor. Sentia também o
desejo de amar só a Deus, de não encontrar alegria senão Nele. Muitas vezes,
repetia em minhas comunhões as palavras da Imitação de Cristo: "Ó Jesus!
Doçura inefável, convertei-me em amargura todas as consolações da
terra!..." Esta oração saía-me dos lábios sem esforço, sem
constrangimento. Vinha-me a impressão de que a repetia, não por minha vontade,
mas como criança que repete as palavras que uma pessoa amiga lhe sugere... Mais
adiante, a minha querida Mãe, dir-vos-ei como aprouve a Jesus realizar meu
desejo, como só Ele foi sempre minha inefável doçura. Se disso vos falasse
desde já, seria obrigada a antecipar-me ao tempo de minha adolescência. Ainda
me restam muitas particularidades de minha infância que vos devo contar.
Pouco
tempo depois da minha primeira Comunhão entrei em novo retiro para a Crisma.
Tinha-me preparado, com bastante empenho, para receber a visita do Espírito
Santo. Não conseguia compreender que se não dê maior cuidado à recepção deste
sacramento de Amor. De ordinário, fazia-se um só dia de retiro para a Crisma.
Como, porém, o Senhor Bispo não podia vir no dia marcado, coube-me o consolo de
ter dois dias de solidão. Para nos distrair, a nossa mestra levou-nos ao Monte
Cassino, onde colhi grandes margaridas para a festa do Corpo de Deus. Oh! Como
estava exultante a minha alma! Igual aos apóstolos, eu aguardava, venturosa, a
visita do Espírito Santo... Folgava com a ideia de que dentro em breve seria perfeita
cristã, sobretudo que eternamente teria na fronte a misteriosa cruz que o bispo
traça, quando faz a imposição do Sacramento ... Chegou afinal o ditoso momento.
Não senti, quando desceu o Espírito Santo nenhum vento impetuoso, mas antes
aquela leve brisa, cujo murmúrio o profeta Elias ouviu no monte Horeb... Nesse
dia, recebi a força para sofrer, pois logo em seguida devia começar o martírio
de minha alma... Foi minha querida e gentil Leónia que me serviu de madrinha.
Estava tão comovida que não pôde conter a efusão de lágrimas todo o tempo da
cerimônia. Recebeu, comigo, a Santa Comunhão, pois nesse belo dia tive ainda a
felicidade de unir-me a Jesus.
Terminadas
as deliciosas e inolvidáveis festas, a minha vida retornou ao ritmo ordinário,
isto é, tive de retomar a vida colegial, que tanto me custava. Quando fiz minha
Primeira Comunhão, apreciava a convivência com crianças de minha idade, todas
cheias de boa vontade, tendo tomado, como eu, a resolução de praticar
seriamente a virtude. Mas, era preciso pôr-me em contato com alunas bem
diferentes, dissipadas, não desejosas de cumprir o regulamento, e isto me
deixava muito desconsolada. Tinha um génio folgaz, mas não sabia entregar-me
aos brinquedos próprios de minha idade. No recreio, apoiava-me muitas vezes
contra uma árvore e contemplava o andamento do jogo, enquanto me engolfava em
sérias reflexões! Inventara um jogo que me agradava. Era o de enterrar as
pobres avezinhas que encontrávamos mortas debaixo das árvores. Muitas alunas
tiveram gosto em ajudar-me, de sorte que nosso cemitério se tornou muito
bonito, plantado de árvores e flores, proporcionais ao tamanho de nossos
pequenos emplumados.
Gostava,
outrossim, de contar histórias. Inventava-as na medida que me acudiam à
imaginação. As minhas colegas rodeavam-me com entusiasmo, e de vez em quando
alunas maiores integravam-se ao grupo de ouvintes. Ia continuando a mesma
história por vários dias, pois tinha prazer em torná-la cada vez mais
interessante, na proporção que via as impressões despertadas, marcadas na
fisionomia de minhas companheiras. Sem embargo, a mestra logo me proibiu continuar
a minha actividade oratória, pois queria ver-nos brincar e correr, e não
discorrer...
Apanhava
com facilidade o sentido das matérias que aprendia, mas tinha dificuldade em
decorar os textos. Por isso, quanto ao catecismo, no ano que precedeu minha
Primeira Comunhão, pedia quase todos os dias a permissão para decorá-lo no
tempo dos recreios. Os meus esforços coroaram-se de bom êxito, e fui sempre a
primeira. Perdendo casualmente meu lugar, por causa de uma única palavra esquecida,
minha dor manifestava-se por lágrimas amargas, que o Padre Domin não sabia como
estancar... Estava muito satisfeito comigo (quando não chorava), e chamava-me
sua doutorazinha, por causa de meu nome Teresa. Certa vez, a aluna que vinha
depois de mim, não soube formular a arguição de catecismo para sua colega.
Depois de passar, em vão, toda a roda das alunas, o Sr. Padre voltou-se
novamente para mim, declarando que ia verificar se eu merecia o lugar de
primeira da classe. Em minha profunda humildade, era só o que esperava.
Levantei-me com segurança, respondi às arguições, sem cometer erro nenhum, com
grande surpresa de todo o mundo... Feita a minha Primeira Comunhão, continuei o
meu zelo pelo catecismo até a saída do colégio. Dava boa conta dos estudos. Era
quase sempre a primeira. Os meus maiores sucessos eram em História e redacção,
Todas minhas mestras tinham-me como aluna muito inteligente. Outro tanto não
acontecia em casa de Titio, onde passava por ignorantinha, boa e meiga, dotada
de juízo recto, mas incapaz e desajeitada... Não me surpreende a opinião que
Titio e Titia tinham e certamente ainda terão a meu respeito. Por ser muito
tímida, quase não falava. Quando escrevia, meu rabisco e minha ortografia -
nada mais natural - não eram de feição que encantassem... Verdade é que, em
costurinhas, em bordados e noutras tarefas, me desempenhava bem, a gosto de
minhas mestras. Mas, o modo desajeitado com que manejava meu trabalho de agulha
justificava a opinião pouco lisonjeira que tinham de mim. Considero tudo isso
como uma graça. Uma vez que o Bom Deus queria meu coração só para Si, já
atendia a minha oração, quando "trocava em amargura as consolações da terra".
Para mim, isso tornava-se tanto mais necessário, quanto mais não me conservaria
insensível a louvores. Muitas vezes, gabavam diante de mim a inteligência das
outras, e jamais a minha. Daí concluí que a não tinha, e resignei-me a carecer
dela...
Meu
coração, sensível e amoroso, facilmente ter-se-ia entregue, se tivesse
encontrado um coração capaz de compreendê-lo... Tentei ligar-me a meninas de
minha idade, principalmente a duas dentre elas. Tinha-lhes amor, e elas por sua
vez me amavam tanto, quanto eram capazes de fazê-lo. Mas, que lástima! Como é
mesquinho e volúvel o coração das criaturas!... Não demorei em perceber que o
meu amor era incompreendido. Uma de minhas amigas precisou procurar a família,
e voltou alguns meses depois. Durante a sua ausência, pensava nela e guardava
cuidadosamente um anelzinho que me dera. Quando tornei a ver a minha
companheira, grande foi minha alegria, mas não obtive, ainda mal, senão um
olhar indiferente... Meu amor não fora compreendido. Percebi-o, e não mendiguei
uma afeição que me era negada. O Bom Deus, porém, deu-me um coração tão leal
que, amando com pureza, ama para sempre. Por isso, continuei a rezar pela minha
companheira, e ainda lhe tenho afeição... Ao ver que Celina queria bem a uma de
nossas mestras, quis imitá-la, mas não pude consegui-lo, pois não sabia
conquistar as boas graças das criaturas. Ó ditosa ignorância! Como me livrou de
grandes males!... Quanto não agradeço a Jesus de me fazer encontrar só
"amargura nas amizades da terra"! Com um coração como o meu,
deixar-me-ia prender e cercear as asas. Como pode ria, então, "voar e
repousar?" Como pode unir-se intimamente a Deus, um coração entregue à
afeição das criaturas?... Tenho, o sentimento de que não é possível. Sem beber
da taça envenenada do amor por demais ardente das criaturas, sinto em mim que
me não é possível estar equivocada. Vi tantas almas que, seduzidas por essa luz
falsa, esvoaçaram como míseras mariposas e queimaram as asas. Depois, volveram-se
à verdadeira e meiga luz do amor. Esta deu-lhes novas asas, mais brilhantes e
mais ligeiras, a fim de poderem voar para junto de Jesus, Fogo Divino,
"que arde sem se consumir". Oh! Eu o sinto, Jesus conhecia-me como
fraca demais para me expor à tentação. Quiçá, deixar-me-ia queimar toda inteira
pela enganadora luz, se a visse fulgurar diante dos olhos... Não aconteceu
assim. Só encontrei amargura, onde almas mais robustas deparam com alegria, e
desta se desfazem por fidelidade. Não tenho, portanto, nenhum mérito em me não
ter entregue ao amor das criaturas, uma vez que só fui preservada pela grande
misericórdia do Bom Deus!... Reconheço que, sem Ele, poderia cair tão baixo
como Santa Madalena. E com grande doçura ecoa em minha alma a profunda palavra
de Nosso Senhor a Simão... Eu o sei, "menos ama aquele, a quem menos se
perdoa". Mas, não ignoro também que a mim Jesus perdoou mais do que a
Santa Madalena, pois me perdoou por antecipação, porquanto me impediu que
caísse. Oh! Pudera explicar o que sinto!... Dou aqui um exemplo que traduzirá
um pouco meu modo de pensar. - Suponho que o filho de um entendido doutor
depare no caminho com uma pedra, que o faz cair e fracturar um membro. De
pronto lhe acorre o pai, ergue-o com amor, pensa-lhe as lesões, aplicando todos
os recursos de sua arte. E o filho, completamente curado, logo lhe testemunha
sua gratidão. Não resta dúvida, o filho tem todo o motivo de querer bem ao Pai!
Farei, contudo, outra suposição ainda. Sabendo que, no caminho do filho, se
encontra uma pedra, o pai apressa-se em tomar a dianteira, e remove-a, sem que
ninguém o veja. O filho, por certo, objecto de seu previdente carinho, não tendo conhecimento da desgraça, da qual o pai o livrara, não lhe mostrará gratidão,
e ter-lhe-á menos amor do que se fora curado por ele... No entanto, se souber o
perigo, do qual acaba de escapar, não o amará ainda mais? Ora, tal filha sou
eu, objecto do amor previdente de um Pai, que enviou seu Verbo para resgatar
não os justos, mas os pecadores ". Quer que eu o ame, porque me perdoou,
não digo muito, mas tudo. Não esperava que eu muito o amasse, como Santa Madalena,
mas quis que soubesse como me amou com um amor de inefável previdência, a fim
de que agora o ame até a loucura!... Ouvi dizer que se não encontra alma pura
mais amorosa do que uma alma arrependida. Oh! Quem me dera desmentir a
afirmação!...
Percebo
estar muito longe do meu assunto, motivo pelo qual me apresso em retomá-lo. O
ano seguinte à minha Primeira Comunhão escoou-se quase todo sem provações
interiores para minha alma. No retiro para a segunda Comunhão é que fui
assaltada pela terrível doença dos escrúpulos... É preciso passar por tal
martírio, para o compreender. Ser-me-ia impossível dizer quanto não sofri em
ano e meio... Todos os meus pensamentos e as minhas mais acções mais simples se
tornavam para mim motivo de perturbação. Só tinha sossego, quando os contava à
Maria, e isto era-me muito penoso, por sentir a obrigação de lhe dizer todas as
ideias extravagantes que me vinham à mente a respeito dela própria. Alijado o
meu fardo, desfrutava um instante de paz, mas a paz desvanecia-se como um relâmpago,
e logo começava novamente meu martírio. De quanta paciência não precisava minha
querida Maria, para me ouvir, sem dar mostras de nenhum aborrecimento!... Mal
chegava eu da Abadia, punha-se ela a arrumar-me os cabelos para o dia seguinte
(pois, querendo agradar ao Papai, a rainhazinha andava todos os dias com os
cabelos em cachinhos, para grande admiração das colegas, mormente das
professoras que não viam crianças tão mimadas pelos pais). E durante a
arrumação não parava de chorar, contando todos os meus escrúpulos. Como tivesse
terminado os estudos, Celina voltou para casa no fim do ano, e a pobre Teresa,
obrigada a ficar sozinha, não demorou a ficar doente, pois o único interesse
que a mantinha interna consistia em estar com sua inseparável Celina, sem a
qual "sua filhinha" já não poderia ali continuar... Deixei, pois, a
Abadia na idade de 13 anos e continuei meus estudos, tomando várias aulas
semanais em casa da Sra. Papinau". Era uma pessoa boníssima, muito culta,
com uns ares de solteirona. Vivia com a mãe, e encantava ver-se o pequeno lar,
que juntas constituíam a três (pois a gata fazia parte da família e eu tinha de
suportar as suas sonecas em cima dos meus cadernos e, inclusive, admirar o seu
porte). Tinha a vantagem de viver na intimidade da família. Como os Buissonnets
ficavam muito longe para as pernas já um tanto envelhecidas da minha
professora, ela pedira que fosse tomar as aulas em sua casa. Ao chegar, encontrava
ordinariamente a velha senhora Cochain. Fitava-me "com os seus olhos
grandes e límpidos", e depois chamava com voz descansada e sentenciosa:
"Senhô rra Papineau... a Se nho rrita Teresa já chegou!". A sua filha
respondia-lhe prontamente, com voz acriançada: "Já vou, Mamã". E logo
começava a aula. Essas lições tinham a vantagem (além dos conhecimentos que
adquiria) de fazer-me conhecer o mundo... Quem o diria?... Na sala, mobiliada à
moda antiga, rodeada de livros e cadernos, presenciava muitas vezes visitas de
todos os géneros, de sacerdotes, senhoras, moças, etc. Na medida possível, a
conversa ficava por conta da Sra. Cochain, a fim de que a filha pudesse dar-me
aula, mas, em tais dias, não aprendia grande coisa. Com o nariz metido no
livro, ouvia tudo o que se falava, até o que para mim seria melhor não escutar.
A vaidade insinua-se tão facilmente no coração!... Dizia uma senhora que eu
tinha cabelos bonitos... Na saída, uma outra, julgando não ser ouvida, indagava
quem era essa menina tão bonita. E tais palavras, tanto mais lisonjeiras,
quanto não eram ditas diante de mim, deixavam-me na alma uma impressão de gozo,
que claramente me indicava como eu era cheia de amor-próprio. Oh! Quanta
compaixão não sinto das almas que se perdem!... É tão fácil perder-se nas
sendas floridas do mundo... Não há dúvida, para uma alma mais formada a doçura
que ele oferece, vem mesclada de amargura, e o imenso vácuo dos desejos não
poderia preencher-se com louvores momentâneos... No entanto, se o meu coração
desde o seu despertar não se erguera até Deus, se o mundo me tivera sorrido
desde minha entrada na vida, que teria acontecido comigo?... Ó minha Mãe
querida, com que gratidão canto as misericórdias do Senhor!... De acordo com as
palavras da Sabedoria, não foi ele que "me retirou do mundo, antes que meu
espírito se pervertesse com sua malícia, e que ad suas enganosas aparências me
seduzissem a alma?" A Santíssima Virgem também velava a sua florzinha. Não
querendo que perdesse o brilho ao contato com as coisas da terra, retirou-a
para o alto da sua montanha, antes que desabrochasse... Enquanto aguardava o
ditoso momento, Teresinha crescia no amor à sua Mãe do Céu. Para lhe dar prova
desse amor, praticou uma acção que muito lhe custou, e que a despeito de sua
extensão vou historiar em poucas palavras... Quase logo depois de minha
admissão na Abadia, fui recebida na associação dos Santos Anjos. Apreciava
muito as práticas de devoção que se me impunham, pois sentia um atractivo todo
particular em rezar aos bem-aventurados espíritos celestiais, especialmente
àquele que o Bom Deus me dera para ser companheiro do meu exílio. Algum tempo
depois da minha Primeira Comunhão, a fita de aspirante a Filha de Maria
substituiu a dos Santos Anjos. Antes, porém, de ser admitida na Associação da
Santíssima Virgem, deixei a Abadia. Por ter saído antes de concluir os estudos,
não tinha o direito de ingressar como antiga aluna. Considerando, contudo, que
todas as minhas irmãs tinham sido "Filhas de Maria", tive receio de
ser, menos do que elas, filha de minha Mãe do Céu, e fui com toda a humildade
(apesar do muito que me custava) pedir a licença de ser recebida na Associação
da Santíssima Virgem na Abadia. A mestra directora não quis recusar-me, mas pôs
como condição que, duas vezes por semana, me recolhesse uma tarde na Abadia,
para mostrar se era digna de ser admitida. Bem ao invés de me causar prazer, a
concessão foi-me custosa ao extremo. Não tinha, como outras antigas alunas, uma
professora amiga, com a qual pudesse passar algumas horas. Contentava-me, por
conseguinte, em cumprimentar a mestra, e depois trabalhava em silêncio até ao
final da lição programada. Ninguém me dava atenção, e por isso subia à tribuna
do coro da capela, ficando diante do Santíssimo Sacramento até o momento em que
Papai ia buscar-me. Esta era minha exclusiva consolação. Não era Jesus meu único
amigo? Não conseguia falar senão com Ele. Fatigava-me a alma conversar com as
criaturas, ainda que se tratasse de conversas piedosas... Sentia que era maior
vantagem falar com Deus do que falar de Deus, pois em conversas espirituais se
intromete muito amor próprio!... Oh! bem era, única e exclusivamente, pela
Santíssima Virgem que me apresentava na Abadia... Por vezes, sentia-me sozinha.
Muito sozinha. Como nos dias de minha vida de semi-interna, quando triste e
doente espairecia no grande pátio, repetia as palavras que sempre me fizeram
renascer paz e alento no coração: "A vida é o teu navio, não é tua
morada!"... Quando ainda pequenina, estas palavras restituíam-me a
coragem. Ainda agora, a despeito dos anos que apagam tantas impressões da
piedade infantil, a imagem da embarcação enleva a minha alma, ajudando-lhe a
suportar o exílio em paciência... Não nos diz também a Sabedoria que "a
vida é como uma nau que sulca as ondas agitadas, e de cuja rápida passagem não
fica nenhum vestígio?... " Quando penso tais coisas, minha alma submerge
no infinito. Afigura-se-me que já abordo a praia da eternidade... Afigura-se-me
receber os amplexos de Jesus... Creio avistar minha Mãe do Céu que me vem ao
encontro na companhia do Papá... da Mamã... dos quatro anjinhos... Creio,
afinal, gozar para sempre da verdadeira vida eterna em família...
(cont.)