Tempo Comum
Semana III
São Tomás de Aquino – Doutor da Igreja
Evangelho:
Mc 4, 21-25
21 Dizia-lhes mais: «Porventura traz-se a lâmpada para se
pôr debaixo do alqueire ou debaixo da cama? Não é para ser posta sobre o candelabro?
22 Porque não há coisa alguma escondida que não venha a ser manifesta, nem que
seja feita para estar oculta, mas para vir a público. 23 Se alguém
tem ouvidos para ouvir, oiça». 24 Dizia-lhes mais: «Atendei ao que
ouvis. Com a medida com que medirdes vos medirão a vós, e ainda se vos
acrescentará. 25 Porque ao que tem, dar-se-lhe-á ainda mais e ao que
não tem, ainda o que tem lhe será tirado».
Comentário:
Ao considerarmos este
trecho de São Marcos voltamos sempre à mesma reflexão:
‘Sou cristão! Sou Filho de
Deus! Sou – devo ser – o reflexo da Sua luz que ilumina o mundo!
Como poderei fazê-lo se
“ficar em casa”, não contactar os outros, enfim… se não fizer apostolado?
Convençamo-nos que ser
apóstolo não é mais que reflectir nos outros a Luz que recebemos de Cristo.
(ama, comentário sobre Mc 4, 21-25, Malta, 2015.01.29)
Leitura espiritual
Vida cristã
Protagonistas da nossa
vida
«Peço-vos
para serdes construtores do mundo, que trabalheis por um mundo melhor. Queridos
jovens, por favor, não fiqueis a olhar a vida “da varanda", metei-vos
nela, Jesus não ficou na varanda, mergulhou… “Não olheis a vida da
varanda", mergulhai nela como fez Jesus» [i].
Face
a estas palavras do Papa Francisco aos jovens, surgem imediatamente algumas
perguntas, que o próprio Romano Pontífice formulava a seguir:
«Começamos?
Por onde? Por ti e por mim! Cada um, de novo em silêncio, interrogue-se: se
devo começar por mim, por onde principio? Abra cada um o seu coração, para que
Jesus lhe diga por onde começar.» [ii].
Para
sermos protagonistas dos acontecimentos do mundo é indispensável começar por
ser protagonistas da nossa própria vida.
Livres e condicionados
Este
protagonismo implica reconhecer que se bem que as circunstâncias familiares ou
sociais influem no nosso caráter, não o determinam de um modo absoluto.
O
mesmo se pode dizer dos instintos mais elementares que provêm da constituição
corporal e também da herança genética: marcam algumas tendências, mas podem-se
moldar e orientar com o exercício de uma vontade que segue a razão bem formada.
A
nossa personalidade forja-se na medida em que tomamos decisões livremente, já
que as acções humanas não se dirigem unicamente a mudar o nosso ambiente, mas
também influem no nosso modo de ser.
Ainda
que por vezes aconteça de uma maneira não muito consciente, a repetição de actos
faz com que adquiramos determinados costumes ou adotemos uma postura diante da
realidade.
Por
isso, quando explicamos a razão das nossas reações espontâneas, mais do que
dizer "eu sou assim", muitas vezes teríamos que admitir: "eu
fiz-me assim".
Temos
condicionamentos que muitas vezes são difíceis de controlar, como a qualidade
das relações familiares, o ambiente social em que se cresce, uma doença que nos
limita nalgum sentido, etc.
Frequentemente,
não é possível ignorá-los ou remediá-los, mas pode-se, sim, mudar a atitude com
que se enfrentam, sobretudo se tivermos consciência de que nada escapa aos cuidados
providentes de Deus:
É
necessário repetir uma e outra vez que Jesus não se dirigiu a um grupo de
privilegiados, mas que veio revelar-nos o amor universal de Deus. Todos os
homens são amados de Deus, de todos eles espera amor [iii].
Em
qualquer circunstância, mesmo com grandes limitações, podemos dar a Deus e ao
próximo obras de amor, por mais pequenas que pareçam; quem sabe quanto vale um
sorriso no meio da tribulação, o oferecimento ao Senhor da dor em união com a
Cruz, a aceitação paciente das contrariedades?
Nada
pode superar um amor sem limites, mais forte que a dor, que a solidão, que o
abandono, que a traição, que a calúnia, que o sofrimento físico e moral, que a
própria morte.
Artífices da própria vida
Descobrir
os talentos pessoais – virtudes, capacidades, jeitos, agradecê-los e
retirar-lhes o partido possível é tarefa da nossa liberdade. Mas temos que
recordar que aquilo que mais estrutura a personalidade cristã são os dons de
Deus, que incidem no mais íntimo do nosso ser.
Entre
eles encontra-se, de modo eminente, o presente imenso da filiação divina,
recebido com o Batismo.
Graças
a esta, o Pai vê em nós a imagem – ainda que imperfeita, pois somos criaturas
limitadas – de Jesus Cristo, que se torna cada vez mais clara com o sacramento
da Confirmação, o perdão transformador da Penitência e, especialmente, a
comunhão com o seu Corpo e o seu Sangue.
Partindo
destes dons recebidos da mão de Deus, cada pessoa, queira ou não, é autor da
sua existência.
Com
palavras de São João Paulo II, «confia-se a cada homem a tarefa de ser artífice
da própria vida; de certo modo, deve fazer dela uma obra de arte, uma
obra-prima» [iv].
Somos
donos dos nossos actos – o Senhor, desde o princípio, criou o homem e
deixou-lhe nas mãos o seu próprio arbítrio [v];
somos nós, se quisermos, que levamos as rédeas das nossas vidas no meio das
tormentas e dificuldades.
Somos
livres!
Esta
descoberta experimenta-se com algo de incerteza; para onde levarei a minha
vida?
Mas
sobretudo com alegria:
Deus,
ao criar-nos, correu o risco e a aventura da nossa liberdade. Quis uma história
que seja uma história verdadeira, feita de decisões autênticas e não uma ficção
nem um jogo [vi].
Nesta
aventura não estamos sós; contamos, em primeiro lugar, com a ajuda do próprio
Deus, que nos propõe uma missão e também com a colaboração dos outros, familiares,
amigos, até de pessoas que coincidem casualmente connosco nalgum momento da
existência.
O
protagonismo na própria vida não implica negar que para muitos aspetos somos
dependentes e se consideramos que esta dependência é recíproca, então também
poderíamos dizer que somos interdependentes.
A
liberdade, portanto, não se basta a si própria; ficaria vazia se não a
empregássemos para nos comprometermos em coisas grandes, magnânimas.
Como
veremos, a liberdade é para a entrega ou, dito de outro modo, só tem lugar uma
liberdade entregue.
Um caminho para recorrer
S.
Josemaria costumava recordar um cartaz que encontrou em Burjasot (Valência),
pouco tempo depois do fim da guerra civil espanhola, com uma frase que não
poucas vezes citou na sua pregação:
"Cada
caminhante siga o seu caminho"
Cada
alma vive a sua própria vocação de um modo pessoal, com os seus próprios
acentos:
Pode
andar-se pela direita, pela esquerda, em zig-zag, caminhando com os pés, a
cavalo.
Há
cem mil maneiras de andar pelo caminho divino [vii].
Cada
pessoa é o autor principal da sua história de santidade, cada uma tem o seu
selo distintivo, na configuração de qualquer faceta da sua existência e da sua
personalidade, evitando o mero "deixar-se levar" pelos acontecimentos.
Livremente
— como filhos, insisto, não como escravos — seguimos o caminho que o Senhor
assinalou para cada um de nós. Saboreamos esta facilidade de movimentos como um
presente de Deus [viii].
Esta
liberdade – soberania humana – vai pela mão da responsabilidade, do saber que
somos "feitura de Deus":
Um
sonho divino que se torna realidade na medida em que experimentamos o amor sem
condições, que pede a nossa resposta.
O
amor de Deus afirma a nossa liberdade e eleva-a a níveis insuspeitados com a
Sua graça.
Cada
pessoa nota a necessidade de se abrir a alguém mais, de partilhar a existência,
de dar e de receber amor.
Cada
pessoa nota a necessidade de se abrir a alguém mais, de partilhar a existência,
de dar e de receber amor.
Caminhar acompanhados
Dentro
dos planos divinos, a vida está feita para se partilhar; o Senhor conta com a
ajuda mútua que prestam os seres humanos uns aos outros.
Verificamo-lo,
de facto, todos os dias; tantas vezes nem sequer somos capazes de cobrir as
necessidades mais básicas e perentórias de maneira individual.
Ninguém
pode ser completamente autónomo.
Num
nível mais profundo, cada pessoa nota essa necessidade de se abrir a alguém
mais, de compartilhar a existência, de dar e de receber amor.
«Ninguém
vive só. Ninguém peca sozinho. Ninguém se salva sozinho. Na minha vida entra
continuamente a dos outros, no que penso, digo, naquilo em que me ocupo ou
faço. E vice-versa, a minha vida entra na vida dos outros, tanto no bem como no
mal» [ix].
Esta
abertura natural para os outros chega à sua máxima expressão nos planos
redentores do Senhor.
Quando
recitamos o Símbolo dos Apóstolos, confessamos que cremos na comunhão dos
santos, comunhão que é o âmago da Igreja.
Por
isso, na vida espiritual, é também indispensável aprender a contar com a ajuda
dos outros, que estão implicados de um ou de outro modo na nossa relação com
Deus; recebemos a fé através dos ensinamentos dos nossos pais e catequistas;
participamos dos sacramentos que celebra um ministro da Igreja; recorremos ao
conselho espiritual de outro irmão na fé, que também reza por nós; etc.
Saber
que caminhamos acompanhados na vida cristã enche-nos de alegria e
tranquilidade, sem que diminua o nosso próprio empenho por alcançar a
santidade.
Ainda
que muitas vezes nos deixemos levar pela mão, o nosso papel não se limita a
isso.
São
Josemaria, ao referir-se à vida espiritual, manifestava que o conselho não
elimina a responsabilidade pessoal. E concluía: a direção espiritual deve
tender para formar pessoas de critério [x].
Por
isso, não queremos que nos supram nas resoluções que tomamos, nem deixar de pôr
esforço nas tarefas que fizemos próprias.
Ao
mesmo tempo que reconhecemos a ajuda indispensável dos outros, temos que ter
consciência de que, na vida espiritual é o Senhor quem atua através deles para
nos transmitir a Sua luz e força.
Isto
dá-nos segurança para continuar a caminhar para a santidade quando, por um ou
outro motivo, faltam aquelas pessoas que tinham um papel importante na nossa
vida cristã.
Neste
sentido, também gozamos de uma profunda liberdade de espírito em relação às pessoas
que Deus pôs ao nosso lado, a quem amamos através do coração de Cristo e cujo
apoio agradecemos profundamente.
Livres para amar sem
condições
Os
cristãos sabem que a plenitude pessoal chega como fruto da livre e total
disponibilidade aos desejos do Amor de um Deus Criador, Redentor e Santificador.
Os
dons que recebemos atingem o seu máximo rendimento ao abrir-nos à graça de
Deus, como confirma a experiência de tantos santos e santas.
Ao
deixar que o Senhor se metesse nas suas vidas, souberam pôr-se amorosamente ao
seu serviço, como Santa Maria que, no momento da Anunciação pronuncia a
resposta firme: fiat! —faça-se em mim segundo a tua palavra! — o fruto da
melhor liberdade:
A
de se decidir por Deus [xi].
Quando
uma pessoa se decide por Deus, empenha os seus sonhos e energias naquilo que
mais vale a pena.
Apercebe-se
do sentido último da liberdade, que não está simplesmente em poder escolher uma
coisa ou outra, mas em poder dispor da vida para algo grande, aceitando
compromissos definitivos.
Dedicar
as próprias qualidades a seguir a Cristo, ainda que por vezes implique recusar
outras opções, traz a felicidade, o cem por um [xii]
na terra e a vida eterna [xiii].
Reflete
também um alto grau de maturidade interior, pois só quem tem uma personalidade
com convicções é capaz de se comprometer de uma maneira total.
Livremente,
sem coação alguma, porque me apetece, decido-me por Deus [xiv].
Abandonar passado,
presente e futuro no Senhor
A
alma que opta por Deus move-se com uma paz interior que supera qualquer
tribulação.
Sei
em quem acreditei [xv]:
são palavras que expressam a confiança de São Paulo no meio das dificuldades
por ser fiel à sua vocação de apóstolo das gentes.
Quem
põe o Senhor por fundamento, goza de uma segurança inquebrantável e isto
permite-lhe doar-se também aos outros, vivendo o celibato por motivos apostólicos
ou no matrimónio ou em tantos outros caminhos que pode tomar a existência
cristã.
É
uma entrega que abarca presente, passado e futuro, como rezava São Josemaria:
Senhor,
meu Deus: nas tuas mãos abandono o passado, o presente e o futuro, o pequeno e
o grande, o pouco e o muito, o temporal e o eterno [xvi].
Ninguém
pode alterar o passado.
No
entanto, o Senhor toma a história de cada um, perdoa no sacramento da
Reconciliação os pecados que possam ter existido e reintegra harmoniosamente
esses acontecimentos na vida dos seus filhos. Tudo é para bem [xvii]:
mesmo os erros que cometemos, se sabemos recorrer à misericórdia divina e, com
a graça de Deus, procuramos viver no presente mais pendentes d'Ele.
Assim
se está também em condições de ver confiadamente o futuro, pois sabemos que
está nas mãos de um Pai que nos ama; quem está nas mãos de Deus, cai e
levanta-se sempre nas mãos de Deus!
Decidir-se
por Deus é aceitar o seu convite para que escrevamos a nossa biografia com Ele.
Reconhecendo
humildemente a liberdade como um dom, empregamo-la em cumprir, em companhia de
tantas outras pessoas, a missão que o Senhor nos confia.
E
experimentamos com alegria que os seus planos superam as nossas previsões, como
dizia São Josemaria a um jovem:
Deixa-te
levar pela graça!
Deixa
que o teu coração voe! (...).
Faz
a tua pequena novela: uma novela de sacrifícios e de heroísmos.
Com a graça de Deus, ficarás aquém. [xviii].
j. r.
garcía-morato
(Revisão da versão portuguesa por ama?
[i] Francisco, Discurso, 27-VII-2013.
[iii] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 110.
[iv] São João Paulo II, Carta aos artistas, 4-IV-1999, n. 2.
[vi] S. Josemaria, "Las riquezas de la fe". Artigo
publicado no ABC, 2-XI-1969.
[vii] S. Josemaria, Carta 2-II-1945, n. 19.
[viii] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 35.
[ix] Bento XVI, Enc. Spe salvi, 30-XI-2007, n. 48.
[x] S. Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, n. 93.
[xi] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 25.
[xiv] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 35.
[xvi] S. Josemaria, Via Sacra, VII, n. 3.
[xviii] S. Josemaria, Notas de uma tertúlia, 29-VI-1974 (AGP,
biblioteca, P04, p. 45).