A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XV
CAPÍTULO XIV
Igualdade dos anos que, nos primeiros séculos,
tiveram a mesma duração que agora.
Vejamos agora com o se pode demonstrar de maneira evidente que os anos de vidas
tão prolongadas daqueles homens não eram tão curtos que dez deles valeriam um dos
nossos, mas que eram tão longos com o os que hoje temos determinados pelo curso
do sol. Está escrito que o Dilúvio teve lugar aos seiscentos anos de vida de
Noé.
Porque é então que aí se lê:
E a água do Dilúvio espalhou-se sobre a terra no segundo mês e
vigésimo sétimo dia do seiscentésimo ano da
vida de Noé [i],
se aquele ano, tão pequeno que dez faziam um dos nossos, tinha trinta e seis
dias? Um ano tão pequeno, — se é que o uso antigo lhe dá este nome — ou não tem
meses, ou o mês não pode ter mais de três dias para poder ter doze meses. Com o
é que então se diz aí:
No seiscentésimo ano, no vigésimo sétimo dia do segundo mês [ii],
senão porque aqueles meses eram como os de agora? Se assim não fosse como é que
se poderia dizer que o Dilúvio começou no dia vinte e sete do segundo mês? Em
seguida, no fim do Dilúvio, lê-se:
E, no vigésimo sétimo dia do sétimo mês, a arca parou em cima do monte Ararat e até ao décimo primeiro dia a água foi baixando, e
ao primeiro dia do décimo primeiro mês apareceram os primeiros cumes dos
montes [iii].
Se tais eram os meses, não há dúvida de que os anos eram também com o os temos
agora. Aqueles meses de três dias é que não poderiam ter vinte e sete. Ou
então, se se chamava dia à trigésima parte destes três, tudo se diminui, na
proporção; e então esse tão grande Dilúvio que se diz ter durado quarenta dias
e quarenta noites, ter-se-ia realizado em menos de quatro dias dos nossos. Quem pode suportar este absurdo,
este disparate? Afasta-se, portanto, esse erro que, baseado em falsa
conjectura, procura tomar mais firme a fé das nossas Escrituras para, por outro
lado, a destruir. Com certeza que o dia de então era tão longo como o de agora,
formado pelo curso nocturno e diurno de vinte e quatro horas; o mês era também tão
longo
com o o de agora, determinado pelo começo e pelo fim da lua; e o ano era tão
longo com o o de agora, formado por doze meses lunares acrescidos de cinco dias
e um quarto por causa do curso solar. Desta duração era o ano seiscentos da
vida de Noé e o segundo mês e, deste mês, o vigésimo sétimo dia em que começou
o Dilúvio — no decurso do qual, como se relata, caíram chuvas abundantes durante quarenta dias, dias não de duas horas e pouco mais, mas de vinte e quatro
diurnas e nocturnas.
Por consequência, aqueles antigos viveram novecentos anos, e até mais, tão
longos como os cento e setenta que, mais tarde, viveu Abraão, tão longos como
os cento e oitenta que, depois dele, viveu seu filho Isaac, tão longos com o os
quase cento e cinquenta de Jacob, seu filho, tão longos como os cento e vinte,
passada certa época, de Moisés, e tão longos como os setenta, os oitenta, ou pouco mais que vivem os homens de agora e dos quais se disse:
Afora isso, para eles só houve trabalhos e dores [iv].
Com certeza aquela diferença de números que se encontra nos códices hebreus e
nos nossos não é discordante em relação à longevidade dos antigos, e se alguma divergência
há, ao ponto de se não poderem conciliar ambas as afirmações, convém procurar a
verdade dos
acontecimentos na língua donde foi traduzido o que nós temos. Embora esteja
isto ao alcance de quem quiser, é estranho que ninguém se tenha atrevido a
corrigir, segundo os códices hebreus, os Setenta Intérpretes em tantas coisas
em que parecem divergir. Porque essas divergências não são tomadas com o faltas
— e eu também não julgo que como tais devam ser tomadas. Mas quando não há erro
de copista, é de crer, quando o sentido é conforme com a verdade e a proclama,
que eles, conduzidos pelo Divino Espírito, procuraram exprimir-se de forma
diferente, não conforme o papel de tradutores, mas com a liberdade de profetas.
E precisam ente por isso que a autoridade apostólica, quando apela para o
testem unho das Escrituras, se serve não só do códice hebreu, mas também do
deles. Prometi que disto falaria, se Deus me ajudar, mais detidamente em momento
oportuno. Por agora exporei o que mais urge. Não há razão para duvidar de que quem nasceu do primeiro homem pôde, quando se vivia durante tanto tempo,
fundar uma cidade, sem dúvida a terrestre e não a que se chama «Cidade de
Deus». Para escrevermos acerca desta é que tomámos em mão um trabalho de
tamanha envergadura.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[iv] Salmo LXXXIX (XL), 10.