A
CIDADE DE DEUS
Vol. 1
LIVRO
VI
CAPÍTULO VII
Semelhança
e concordância entre a teologia mítica e a teologia civil.
E,
pois, à teologia civil que se reduz a teologia fabulosa, teatral, cénica, plena
de ignomínias e de torpezas; e a que justificadamente é considerada como
inteiramente digna de rejeição e de condenação, mais não é que uma parte da
outra tida como digna de ser cultivada e observada; e, como me propus
demonstrar, certamente não é uma parte heterogénea, estranha a todo o corpo, a
ele indevidamente unida e indevidamente dele dependente — mas antes em perfeita
harmonia com o corpo, como um membro a ele adaptado com exactidão.
Que
outra coisa, mostram efectivamente essas está tuas, formas, idades, sexo e
vestuário dos deuses? Se os poetas apresentam um Júpiter barbudo e um Mercúrio
imberbe, os pontífices não fazem o mesmo? O enorme pénis1 atribuído a Priapo pelos
histriões, não o é também pelos sacerdotes? Apresenta-se este deus nos lugares
sagrados, para ser adorado, de forma diferente da que se apresenta nos teatros
para provocar a risota? Será que o velho Saturno e o efebo Apoio são
personagens dos histriões e não estátuas dos templos? Porque é que Forculus, que preside às portas,
e Limentinus, que preside aos umbrais, são deuses masculinos, ao passo que
Cárdea, a guardiã dos gonzos (cardines),
que se encontra no meio deles, é fêmea? Não se encontram nos livros referentes
às coisas divinas pormenores considerados pelos poetas sérios como indignos dos
seus versos? Não é verdade que a Diana do teatro é portadora de armas e a da
cidade se apresenta como uma simples donzela? Será que o Apoio que em cena é
tocador de cítara, deixa de o ser em Delfos? Estes pormenores são ainda muito
honestos em comparação com outros bem torpes. Que ideia fizeram de Júpiter os
que colocaram a sua ama no Capitólio? Não vêm eles assim confirmar a teoria de
Evémero, que, com a verborreia dum mitólogo, mas com a precisão de um
historiador, escreveu que todos estes deuses tinham sido homens, simples
mortais? E que mais quiseram senão transformar em galhofa as cerimónias
sagradas os que sentaram os Epulões, deuses parasitas de Júpiter, à mesa deste?
Com efeito, se um farsante anunciasse que alguns parasitas foram convidados
para o banquete de Júpiter, é evidente que se julgaria que o que ele pretendia
era fazer rir. Foi Varrão quem o disse, e disse-o, não para fazer troça dos
deuses, mas para lhes prestar homenagem. E são os livros que tratam dos
assuntos divinos, e não os que tratam dos humanos, que o testemunham; e este
testemunho encontra-se, não nas passagens em que escreveu acerca dos jogos
cénicos, mas naquelas em que expõe os direitos capitolinos! Varrão vê-se
finalmente forçado por todos estes factos a confessar que julgaram os deuses
sensíveis aos prazeres humanos precisamente porque os tinham representado com
feições humanas.
Aliás,
os espíritos malignos não puseram de parte as suas tarefas para confirmarem,
zombando das inteligências humanas, estas nocivas ideias. Um exemplo: o guarda
de um templo de Hércules, encontrando-se uma vez de folga, em dia de feriado,
começou a jogar aos dados consigo mesmo; as suas mãos lançavam alternadamente
os dados, uma por Hércules, a outra por si próprio; e o combinado era que, se
ganhasse, a si próprio ofereceria uma boa ceia e pagaria a uma amante com os
dinheiros do templo — e se a vitória fosse de Hércules, este do seu próprio
dinheiro se serviria para os seus prazeres. Mas, uma vez vencido por si
próprio, como se o tivesse sido por Hércules, obsequiou-o com a ceia devida à
famosa meretriz Larentina. Esta adormeceu no templo e viu-se em sonhos nos
braços de Hércules, que lhe disse que o primeiro jovem que encontrasse ao sair
do templo lhe daria a recompensa, que devia considerar como se de Hércules
fosse recebida. Ao sair, o primeiro com quem se encontrou foi o riquíssimo
jovem Tarúcio. Este manteve-a consigo, durante muito tempo, como amante e, por
sua morte, instituiu-a sua herdeira. Posta assim na posse de uma avultadíssima
fortuna, para não parecer ingrata ao favor divino, declarou o povo romano seu
universal herdeiro, julgando que assim praticava uma obra altamente grata aos
deuses. Quando ela desapareceu, descobriram o seu testamento, o que, segundo se
diz, lhe valeu mesmo as honras divinas.
Se
os poetas imaginassem, se os farsantes representassem tais histórias,
dir-se-ia, sem dúvida, que elas respeitam à teologia fabulosa e julgar-se-ia preciso
eliminá-las da teologia civil por contrárias à sua dignidade. Mas, quando um
tão grande mestre atribui estas torpezas, não aos poetas, mas aos povos, não
aos comediantes mas aos ritos sagrados, não aos teatros mas aos templos, isto
é, não à teologia fabulosa mas à teologia civil — têm os histriões desculpa quando
representam nas suas comédias tamanhas desonestidades dos deuses; mas os
sacerdotes é que não têm a menor desculpa quando, nas cerimónias pretensamente
sagradas, procuram reconhecer aos deuses uma honestidade de que não são
dotados.
Juno
tem os seus ritos próprios, que se celebram em Samos, ilha da sua predilecção,
onde ela foi dada em casamento a Júpiter; Ceres tem os seus ritos próprios,
através dos quais se tenta encontrar Prosérpina raptada por Plutão; também
Vénus tem os seus e neles se chora Adónis, seu jovem e formosíssimo amante,
morto à dentada por um javali; a mãe dos deuses tem ritos próprios em que Átis,
o belo adolescente que ela amava e que, por ciúme feminino, ela castrou, é chorado
pelos desgraçados da mesma forma mutilados, a que chamam «galos». Se estes
ritos são mais disformes que as torpezas cénicas — para quê tantos esforços em
separar as ficções dos poetas acerca dos deuses (ficções próprias, claro está,
do teatro) da teologia civil instituída, conforme se diz, para a cidade, como
se separa o ignóbil e o obsceno do honesto e do decente? O que se deve antes é
dar graças aos histriões por pouparem os olhares dos espectadores e por não
porem a descoberto nas suas representações todas as ignomínias que se escondem
por detrás dos muros dos templos.
Poderá
pensar-se algo de bom acerca dos mistérios que se cobrem de trevas, quando os
que se desenvolvem em plena luz são já tão abomináveis? Que ritos se praticam
na sombra por intermédio desses castrados e invertidos, (molles) é lá com eles! Mas o que não puderam foi manter ocultos
esses homens, desgraçada e vergonhosamente efeminados e corrompidos. Vejam se
conseguem convencer seja quem for de que, pelo ministério de tais homens, realizam
algo de santo, já que não podem negar que tais práticas se encontram entre as
suas coisas santas. Ignoramos o que lá se faz, mas sabemos quem o faz.
Conhecemos o que se passa em cena, onde nunca apareceu, nem mesmo no coro de
meretrizes, um castrado ou um invertido. Todavia, são homens torpes e infames
que representam nesses espectáculos — porque pessoas honestas não o poderiam
fazer. Que ritos são esses em que a piedade escolhe para ministros seres que
até a obscenidade do teatro (thymelica)
se recusa a admitir no seu seio?
CAPÍTULO VIII
Interpretações naturais que
os doutores pagãos pretendem dar acerca dos seus deuses.
Mas,
conforme eles afirmam, tudo isto comporta interpretações fisiológicas, isto é,
fundadas em razões naturais. Como se nesta discussão tratássemos da física em
vez da teologia, da ciência da natureza em vez da ciência de Deus! Embora o
verdadeiro Deus seja Deus por natureza e não por conceito, — todavia, nem toda
a natureza é Deus: claro que o homem é natureza, o animal, a árvore, a pedra
são natureza, — mas nada disto é Deus.
Mas
se, quando se trata das coisas sagradas da mãe dos deuses, o fundamento desta
interpretação consiste em considerar a Terra como mãe dos deuses, — para quê
continuarmos a nossa investigação, para quê indagarmos o resto? Concebe-se
prova mais evidente a favor da opinião dos que pretendem que todos os deuses
foram homens? Se nasceram da Terra, pois então a Terra é sua mãe. Ora, em
verdadeira teologia, a Terra é obra de Deus e não sua mãe. De resto, seja qual
for a maneira de interpretar os mistérios desta deusa, referindo-os à natureza
— o que de forma nenhuma é conforme à natureza, mas antes a ela contrário é,
que os homens sirvam de mulheres. Esta doença, este crime, esta ignomínia (que
só na tortura os homens de hábitos viciosos confessam), toma-se uma profissão
na celebração desses mistérios.
Por
outro lado, se estes ritos, que se provou serem mais ignóbeis do que as
torpezas da cena, encontram a sua justificação e a sua purificação nas
interpretações que neles descobrem sinais de factos naturais — porque é que se
não consideram também justificadas e purificadas as ficções poéticas? Porque,
afinal, também no mesmo sentido muitos as têm interpretado. Assim, a história
nefanda e atroz de Saturno devorar seus filhos é interpretada por alguns
simbolizando o decurso do tempo que vai consumindo tudo o que gera; ou então,
na opinião do próprio Varrão, Saturno significaria as sementes que voltam de
novo à terra donde saíram. Outros propõem outras explicações para este caso e
semelhantes para outros casos.
E,
contudo, chamam fabulosa a esta teologia — e censuram-na a ela e a todas as suas
interpretações simbólicas; rejeitam-na, reprovam-na, separam-na tanto da
teologia natural (a dos filósofos) como da teologia civil (a da cidade e dos
povos) de que estamos a tratar, como merecedora de repúdio, porque as suas
ficções são indignas dos deuses. A razão deste repúdio está no facto de que os
homens tão argutos e doutos que escreveram sobre a questão entendiam que era
preciso reprovar as duas teologias — a fabulosa e a civil; ousavam reprovar a
primeira, mas não a segunda; apresentaram, portanto, a fabulosa como digna de
condenação e expuseram a outra (a civil) como sua semelhante. Procederam assim,
não para que esta fosse mantida com preferência àquela, mas para que se visse
que tão censurável era uma como a outra, e, desta maneira, sem prejuízo para os
que receavam censurar a teologia civil, este duplo desprezo permitia à teologia
chamada natural impor-se aos melhores espíritos. Porque tanto a civil como a
fabulosa, ambas são fabulosas e ambas são civis; verificará que ambas são
fabulosas quem reparar na vacuidade e na obscenidade de ambas; notará que ambas
são civis quem observar que os jogos cénicos que respeitam à fabulosa também se
verificam nas festividades dos deuses da cidade e fazem parte do culto público.
Como
se pode então atribuir a qualquer destes deuses o poder de concederem a vida
eterna, se tanto as estátuas como o seu culto os apresentam nas suas formas,
idades, sexo, costumes, casamentos, geração e ritos, tão semelhantes aos deuses
fabulosos tão claramente reprovados? Tudo isto mostra que:
ou
eles foram homens, em honra dos quais, por causa do teor da sua vida ou da sua
morte, se instituíram ritos sagrados e solenidades, introduzindo e fomentando
os demónios este erro;
ou
se admite, pelo menos, que estes espíritos imundos, aproveitando todas as
ocasiões, se insinuaram nas inteligências dos homens para os enganarem.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)