CAPÍTULO IV
«ELE É O VERDADEIRO DEUS
E A VIDA ETERNA»
Divindade de Cristo e anúncio da
eternidade
2. Cristo,
síntese de eternidade e tempo
1.
Dos
dois “tempos” às duas “naturezas” de Cristo.
…/3
Na mesma carta, São João –
considerado o mais ontologista dos autores do Novo Testamento – fala de Cristo
como da vida eterna que estava com o Pai e que se tornou visível» [i]. A
fórmula: «A vida eterna tornou-se visível» pertence claramente ao mesmo molde da
outra: «O Verbo Se fez carne» [ii].
Ela exprime na chave de eternidade e tempo, aquilo que no
prólogo está expresso na chave de Palavra
e carne, ou seja, de realidades ontológicas.
A cristologia antiga foi
buscar e desenvolveu, também aqui, a
fórmula «Verbo carne», e edificou-se mesmo sobre ela, restando ainda por
valorizar a outra expressão também ela tão cheia de significado para o homem.
Essa fórmula proclama, de
facto, que em Cristo a eternidade se tornou visível, isto é, entrou no tempo e
veio, por assim dizer, ao nosso encontro.
Este aspecto do mistério de
Cristo não só continua intacto na Bíblia, onde nós o podemos saborear, mas
também, refazendo a história do desenvolvimento do dogma, não tardamos a
apercebermo-nos de que ele nunca esteve ausente do pensamento patrístico, que
aliás sempre acompanhou, mesmo que em surdina, como se fosse uma espécie de
nota secundária.
Santo Inácio de Antioquia,
por exemplo, fala de Cristo como d’Aquele que estava acima do tempo e era
intemporal (achronos) e que Se tornou
visível [iii].
São Leão Magno fala da
Encarnação como do acontecimento graças ao qual «Aquele que existia antes do
tempo começou a existir no tempo» [iv].
Em Cristo não se dá,
portanto, somente a união «sem confusão e sem divisão» entre Deus e o homem,
mas também, entre eternidade e tempo.
Cristo juntou em Si -
escreveu São Máximo, Confessor, explicando a definição de Calcedónia – o modo
de ser segundo a natureza como o modo de ser acima da natureza; juntou os
extremos, isto é, a imanência e a transcendência [v].
Tudo isto, porém, como eu
dizia atrás, tinha ficado como uma “nota secundária”.
Quem a fez sair como uma
mola dominante foi Kierkegaard.
O mistério de Cristo que em
São Máximo, e nos Padres em geral, se exprimia de preferência como mistério de
transcendência e imanência, isto é, em relação ao espaço, em Kierkegaard é expresso como o paradoxo e temporalidade,
isto é, em relação ao “tempo”.
«O paradoxo – escreve ele –
consiste principalmente no facto de que Deus, o eterno, veio ao tempo como um
homem singular» [vi].
A Encarnação é o ponto de
intercepção entre eternidade e tempo. É a novidade absoluta e irrepetível.
Isto quer dizer que Jesus –
que é o «mediador entre Deus e o homem» [vii] - é
também o mediador entre a eternidade e o tempo. É a ponte lançada sobre o
abismo, que permite a passagem de uma para a outra margem.
«A novidade vem do salto» [viii] e
toda a novidade de Cristo vem precisamente do “salto” que n’Ele se operou da
eternidade para o tempo.
Todavia é um salto muito
especial, como o de alguém que, ficando com um pé sobre a margem em que já
estava, se estende até atingir, com o outro pé, a margem oposta.
Cristo efectivamente, como
dizia São Leão Magno, «permanecendo fora do tempo, começa a existir no tempo».
Cristo representa então a
única realidade capaz de salvar o homem do desespero.
Ele muda o destino do homem
e de um «ser para a morte» [ix] faz
um «ser para a eternidade».
O dogma cristológico é o
único que pode dar uma razão objectiva para superar a angústia existencial.
Não é necessário dizer o que
é o tempo e o que é a eternidade.
Sabemos que a eternidade e o
tempo não são menos incomensuráveis e irredutíveis entre si do que o são a
divindade e a humanidade, Espírito e carne.
Eles são, por isso, uma
transposição adequada, sob o plano existencial e histórico, do dogma de Cristo
Deus e homem.
A infinita diferença
qualitativa entre tempo e eternidade tornou-se n’Ele numa infinita vizinhança.
Ele é uma e outra coisa ao
mesmo tempo, na mesma pessoa, «sem confusão e sem separação».
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
[iii] Santo Inácio de
Antioquia, Carta a Policarpo, 3,2
[iv] Denzinger – Schonmetzer, n. 294
[v] São Máximo Confessor,
Ambígua, 5 (PG 91, 1053 B); cfr.
Também Santo Atanásio, De incarnatione,
17 (PG 25,125). Sobre a união entre Deus e o homem em Cristo, como união entre
eternidade e tempo, insiste Santo Agostinho, em Sermones, 187,4; 188,2 (PI. 38, 1003. 1004)
[vi] S. Kierkegaard, «Postilla conclusiva», 5; in Obras.
[viii] S. Kierkegaard, «O
conceito de angústia», 3; in Obras,
«op. Cit.», p. 111
[ix] M. Heidegger, Ser e
tempo, § 51