Tempo Comum
Evangelho:
Mc 10, 28-31
28 Pedro
começou a dizer-lhe: «Eis que deixámos tudo e Te seguimos». 29 Jesus
respondeu: «Em verdade vos digo: Ninguém há que tenha deixado a casa, os
irmãos, as irmãs, o pai, a mãe, os filhos, ou as terras, por causa de Mim e do
Evangelho, 30 que não receba o cêntuplo, mesmo nesta vida, em casas,
irmãos, irmãs, mães, filhos, e terras, juntamente com as perseguições, e no
tempo futuro a vida eterna. 31 Porém, muitos dos primeiros serão os
últimos, e os últimos serão os primeiros».
Comentário:
Este trecho do
Evangelho de São Marcos aplica-se a um tema importantíssimo: A vocação pessoal!
Em qualquer
altura da vida – muito cedo ou mais tarde – o Espírito Santo insinua na alma do
cristão o que chamamos vocação ou chamamento.
Normalmente
associa-se a palavra vocação com a vida religiosa, o sacerdócio, enfim… uma
dedicação mais completa a Deus.
Quando assim é
já sabemos as “condições”: entrega total, desprendimento absoluto, obediência
sem titubeios.
Não somos nós
que colocamos essas condições mas sim o Senhor e porquê?
Porque se trata
de servir e, ou se serve nestas “regras” ou não se serve de todo.
(AMA, comentário sobre Mc 10, 28-31, 2016.03.15)
Leitura espiritual
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
INTRODUÇÃO
“CREIO – AMÉM”
«Creio em Deus Pai, Todo-poderoso,
Criador do céu e da terra"
CAPÍTULO QUARTO
"Creio em Deus" – Hoje
1. O Deus pessoal
Fé cristã em Deus, em primeiro lugar, é uma opção
pelo primado do Logos, fé na realidade do sentido criador antecedente e
conservador do mundo. Logo, enquanto fé na personificação deste sentido, também
é acreditar que o proto-pensamento, cujo "ser-pensado" o mundo
reproduz, não é uma consciência anónima e neutra, mas liberdade, amor criador,
pessoa. Se, portanto, a opção cristã do Logos conota uma opção por um sentido
pessoal, criador, então ela é, ao mesmo tempo, opção pelo primado do específico
frente ao genérico. O mais elevado não é o mais genérico, mas precisamente o
especial, e, por esta razão, a fé cristã também é, sobretudo, uma opção pelo
homem como o ser irreduzível e relacionado com o infinito. E então também aí
ela torna a ser opção pelo primado da liberdade contra o primado da necessidade
das leis cósmicas. Deste modo destaca-se, com toda a precisão, o específico da
fé cristã diante de outras formas optativas do espírito humano. Torna-se
inequivocamente claro o lugar que homem ocupa com o Credo cristão.
E assim pode mostrar-se que a primeira opção – pelo
primado do Logos contra a matéria pura – não é possível sem a segunda e a
terceira, ou mais exactamente: a primeira opção, tomada isoladamente,
permaneceria como puro idealismo; somente o acréscimo da segunda e da terceira
opção primado do específico, primado da liberdade – denota a linha divisória
entre idealismo e fé cristã, a qual é algo diverso do idealismo puro.
Muito se poderia dizer a respeito. Contentemo-nos
com as explicações indispensáveis, perguntando, primeiro: Que significa: esse
Logos, cujo pensamento é o mundo, é pessoa e, por conseguinte, fé é opção pelo
primado do específico contra o genérico? A resposta, afinal, pode ser muito
simples, pois, em última análise, não significa outra coisa, senão que esse
pensar criador, que constatamos como suposição e fundamento de todo o ser, é,
na verdade, um pensar consciente de si mesmo e que conhece não só a si, mas
também sabe todo o seu pensamento. Significa ainda que esse pensar não somente
sabe, mas ama; que é criativo por ser amor; que, por não ser apenas capaz de
saber, mas de amar, colocou o seu pensamento no seio da liberdade de um ser
próprio, objectivando esse pensamento, mergulhando-o na ipseidade. Portanto,
tudo isto quer dizer que esse pensar sabe o seu pensamento dentro de si mesmo,
que o ama e, amando, o sustenta. Com isto voltamos à expressão em cujo rumo as
nossas considerações acabam sempre por voltar: não ser coartado pelo máximo,
deixar-se envolver pelo mínimo: isto é divino.
Ora, se o Logos de todo o ser, o ser que a tudo
sustenta e envolve, é consciência, liberdade e amor, conclui-se por si mesmo
que o supremo do mundo não é a necessidade cósmica, mas a liberdade. São de
grande alcance as consequências. Tais premissas, com efeito, levam à conclusão
de que a liberdade, por assim dizer, constitui a estrutura necessária do mundo,
o que, novamente, quer dizer que o mundo só pode ser compreendido como
incompreensível, que ele deve ser a incompreensibilidade. Porquanto, sendo a
liberdade o ponto supremo da construção do mundo, liberdade que, como tal,
sustenta, quer, conhece e ama o mundo todo, segue-se que, com ela, faz parte
essencial do mundo a incalculabilidade que lhe é inerente. A incalculabilidade
é uma implicação da liberdade; jamais pode reduzir-se completamente à lógica
matemática um universo onde as coisas são assim. Mas, com o ousado e grandioso
de um mundo marcado pela estrutura da liberdade também está implicado o
tenebroso mistério do demoníaco que nele encontramos. Um mundo criado e
desejado com o risco da liberdade e do amor, não pode ser pura matemática. Como
espaço vital do amor, torna-se palco das liberdades e aceita o risco do mal.
Esse mundo enfrenta a aventura da treva com vistas a uma luz maior, luz que é
liberdade e amor.
Volta a ser patente como as categorias de máximo e
mínimo, de mais pequeno e sumo, se alteram dentro de uma tal visão. Num mundo
que, afinal, não é matemática, mas amor, o mínimo é precisamente o máximo; o
específico é mais do que o genérico; a pessoa, o único, o irrepetível também é
o definitivo e o supremo. Em tal visão cósmica, a pessoa não é exclusivamente
indivíduo, um exemplar mimeografado mediante a simples divisão da ideia pela
matéria, mas é exactamente e em sentido pleno "pessoa". A mentalidade
grega designava sempre os inúmeros seres individuais, inclusive os homens,
apenas como "indivíduos". Eles originam-se graças ao fracionamento da
ideia pela matéria. Portanto, o multiplicado sempre será o secundário; o próprio
seria o único e o geral. O cristão não vê no homem um indivíduo, mas uma pessoa
– parece-me que na mudança de indivíduo para pessoa se encontra a medida
completa da passagem da Antiguidade ao Cristianismo, do Platonismo à Fé. Esse
ser determinado não é, absolutamente, nada de secundário que nos permita
adivinhar, fragmentariamente, o geral como o próprio. Como o mínimo, ele é o
máximo, como o único e irrepetível, é o supremo e o próprio.
Tira-se daí uma última conclusão. Se é verdade que
a pessoa é mais do que o indivíduo, que existe um primado do específico sobre o
geral, segue-se que a unidade não é o único e derradeiro, mas que também a
multiplicidade tem o seu direito próprio e definitivo. Esta conclusão que, com
necessidade interna, se deriva da opção cristã conduz automaticamente a
ultrapassar a ideia de um Deus que é exclusivamente unidade. A lógica interna
da fé cristã em Deus obriga a passar por cima de um puro monoteísmo,
conduzindo-nos à fé no Deus uno e trino, sobre o qual agora teremos de dar uma
palavra conclusiva.
CAPÍTULO QUINTO
Fé no Deus Trino
Com as considerações feitas até agora alcançamos um
ponto em que a fé cristã no Deus uno passa à aceitação do Deus uno e trino,
como que por uma espécie de interna necessidade. Por outro lado, não podemos
esquecer que agora pisamos um terreno onde a teologia cristã deve ter
consciência da sua limitação, mais do que até agora, por vezes, se tem dado;
terreno, onde qualquer falsa ousadia de querer saber tudo com exagerada
exatidão há-de transformar-se em loucura de consequências imprevisíveis;
terreno em que somente o humilde reconhecimento da insciência pode redundar em
verdadeiro saber e só a atitude maravilhada diante do mistério impenetrável
pode constituir uma fé autêntica em Deus. Amor é sempre mistério: mais do que
se pode calcular e compreender. Portanto, o próprio amor – o Deus incriado e
eterno – deve ser mistério em grau supremo: o mistério por excelência.
Contudo – apesar da inevitável discrição da razão,
a única atitude aqui indicada para que o pensamento se mantenha fiel a si mesmo
e à sua tarefa – deve lançar-se a pergunta sobre o que significa a fé em um
Deus uno e trino. Não se pode tentar agora – como, aliás, seria necessário para
uma resposta satisfatória – seguir, passo a passo, as várias etapas de sua
evolução, nem desenvolver as diversas fórmulas pelas quais a fé procurou
proteger essa verdade contra o equívoco. Umas poucas indicações deverão bastar.
1. Introduzindo na compreensão
a) Ponto de partida da fé no Deus
uno e trino. A doutrina trinitária não se originou de uma especulação sobre
Deus, de alguma tentativa da reflexão filosófica para explicar como se teria
processado a origem de todo ser, mas foi consequência dos esforços para uma
elaboração de experiências históricas. A fé bíblica primeiramente girava – no
Antigo Testamento – em torno de Deus que se lhe manifestava como Pai de Israel,
como Pai dos povos, como criador do mundo e seu Senhor. Na época da
estruturação do Novo Testamento acrescenta-se-lhe um processo totalmente novo
mediante o qual Deus se mostra sob um aspecto até ali desconhecido: em Jesus
Cristo encontramos um homem que, ao mesmo tempo, se sabe e se revela como Filho
de Deus. Encontramos Deus na figura do mensageiro, o qual é todo Deus e não
algum ser intermediário e que, contudo, connosco chama a Deus "Pai".
Donde se segue um singular paradoxo: por um lado, esse homem chama a Deus
"Pai", fala-lhe como a alguém que lhe está próximo. Ora, se uma
atitude assim não quiser passar por puro teatro, mas por verdadeira – como
condiz a Deus – ele deve ser alguém diverso desse Pai ao qual fala e a quem nos
dirigimos. Por outro lado, ele próprio é a proximidade concreta de Deus que nos
vem ao encontro; a mediação de Deus para nós e, exactamente, pelo facto de ser,
ele mesmo, Deus feito homem, em figura e natureza humana é o Deus connosco
("Emmanuel"). No fundo, a sua mediação eliminar-se-ia
transformando-se de mediação em separação, fosse ele outro que não Deus, fosse
ele um ser intermediário. Em tal caso não nos conduziria a Deus, mas
afastar-nos-ia dele. Segue-se daí que, como mediador, é o próprio Deus e o
"próprio homem", ambos de modo real e completo. Ora, isto significa que
Deus vem ao nosso encontro não como Pai mas como Filho e irmão nosso –
incompreensível e altamente compreensível, ao mesmo tempo – revelando uma
dualidade em Deus, Deus como "eu" e "tu" em um. A essa
experiência inédita de Deus segue-se finalmente, como terceiro, o acontecimento
do Espírito, da presença de Deus em nós, na nossa vida interna. E torna a
patentear-se que esse "Espírito" não é, sem mais, idêntico nem ao
Pai, nem ao Filho, nem representa um terceiro entre nós e Deus, mas é a maneira
como o mesmo Deus se nos doa, entra em nós, de modo que, dentro do homem e no
âmago da "interioridade", lhe é infinitamente superior.
Portanto, constatamos que a fé cristã, no correr da
sua evolução histórica, primeiramente gira, de facto, em torno de Deus nessa
figura trina. É claro que, em breve, o homem deveria começar a reflectir como
essas diferentes realidades deviam ser relacionadas entre si. Havia de se
perguntar qual seria o comportamento das três formas de encontros históricos
com Deus em relação à própria realidade divina. A trindade das formas divinas
experimentadas seria, acaso, simplesmente a sua máscara histórica com que,
fazendo diversos papéis, é sempre o mesmo único Deus que se avizinha do homem?
Essa trindade revelar-nos-ia apenas algo sobre o homem e sobre as suas diversas
formas de se relacionar com Deus? Ou não faria transparecer algo daquilo que é
o próprio Deus em si mesmo? Hoje facilmente estaríamos inclinados a aceitar a
primeira hipótese como plausível, considerando todos os problemas como resolvidos
por este caminho. Contudo, cumpre tomar consciência da extensão do problema,
antes de embrenhar-se por um tal atalho. Ora, trata-se de saber se o homem, na
sua relação com Deus, deve haver-se exclusivamente com os reflexos da sua
própria consciência ou se lhe é concedido elevar-se realmente acima de si e
encontrar-se com o próprio Deus. São imensas as consequências em ambos os
casos. Se a primeira hipótese está certa, a prece não passaria de uma ocupação
do homem consigo mesmo; a raiz de uma adoração propriamente dita está truncada,
como também a da súplica – consequência, que, a seguir, mais e mais se vai
avolumando. Tanto mais fortemente se impõe a pergunta, se tal atitude, afinal,
não se baseia num certo comodismo mental, que escolhe o caminho do menor esforço,
sem fazer muitas perguntas. Porquanto, se a segunda hipótese for a verdadeira,
adoração e súplica são, não só possíveis, mas ordenadas, isto é, são um
postulado do ser humano aberto na direcção de Deus.
Quem perceber a profundeza desta questão compreenderá
também a paixão da luta que em torno dela se desencadeou, na antiga Igreja:
compreenderá que nessa luta actuaram outras forças que não cavilações
idealísticas ou culto de fórmulas, como facilmente poderia pensar o observador
superficial; terá consciência de que a luta de então tornou a se reacender
hoje, exactamente a mesma luta do homem em torno de Deus e de si mesmo; terá
consciência de que não podemos sobreviver como cristãos, julgando poder
escolher hoje um caminho mais cómodo do que o de outrora. Antecipemos a
resposta na qual foi então encontrada a separação entre o caminho da fé e uma
vereda que forçosamente conduziria a uma aparência de fé: Deus é como se
revela. Deus não se revela de um modo que não seja o seu. Nesta
afirmação está baseada a relação cristã com Deus; nela está fundada a doutrina
trinitária; ela é essa doutrina.
(cont)
joseph
ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)