A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIV
CAPÍTULO X
Deveremos julgar que os primeiros homens, no Paraíso, antes de pecarem não
eram afectados por nenhuma perturbação?
Não será sem motivo que se pergunta se o primeiro homem, ou os primeiros homens
(pois que de dois era a união conjugal), experimentavam no seu corpo animal antes
do pecado, os sentimentos que já não experimentaremos no nosso corpo espiritual
quando se apagar e acabar todo o pecado. Se os experimentavam, como podiam eles
ser felizes nesse memorável lugar de beatitude, que era o Paraíso? Quem é que
poderá dizer-se absolutamente feliz se é afectado pelo temor ou pela dor? Mas
que é que esses homens poderiam temer ou sofrer numa tão grande afluência de
tamanhos bens onde nem a morte nem má disposição alguma do corpo tinham a
recear, nem faltava o quer que fosse que a boa vontade desejasse, nem coisa
alguma poderia contrariar a carne ou o espírito do homem que vivia com tanta
felicidade? Sereno era o seu amor para com Deus bem como entre os cônjuges que viviam
em fiel e leal sociedade. E desse amor nascia uma grande alegria porque tinham
sempre presente, para o gozarem, o objecto do seu amor. Evitava-se com
tranquilidade o pecado e, ao evitá-lo, não surgia, em contrapartida mal algum
que pudesse contristá-los. Desejariam eles talvez tocar no fruto proibido para
o comerem, mas receavam morrer, de maneira que esse desejo e esse temor já os perturbava
mesmo em tal lugar? Longe de nós pensar que assim tenha sido absolutamente
nenhum pecado havia· Efectivamente, sem pecado ninguém pode nem desejar o que a
Lei de Deus proíbe, nem abster-se por receio do castigo e não por amor da
justiça. Longe de nós repito, pensar que antes de todo o pecado já houvera pecado,
admitindo a propósito da árvore o que o Senhor diz acerca da mulher:
Se alguém olhar para uma mulher com mau desejo, já cometeu adultério no seu coração.[i]
Tal qual como os primeiros homens eram felizes, sem se sentirem agitados pelas
perturbações da alma nem molestados pelas doenças do corpo — assim também teria
sido feliz toda a sociedade humana se aqueles não tivessem cometido o mal que
transmitiram aos seus descendentes e se nenhum destes descendentes tivesse cometido
também o mal do pecado que provoca o castigo. Esta felicidade manter-se-ia até
que, por efeito da bênção:
Crescei e multiplicai-vos[ii]
o número dos santos predestinados fosse completo. Outra bênção maior seria dada
— a que foi dada aos anjos bem-aventurados, graças à qual cada um recebeu desde então a garantia plena de que
jamais pecariam ou morreriam. E a vida dos santos, sem terem experimentado
trabalho algum, dor ou morte algum a, seria tal qual será depois de tudo isto
na incorrupção dos corpos, quando aos mortos for concedida a ressurreição.
CAPÍTULO XI
Queda do primeiro homem cuja natureza, criada boa, foi viciada, e só pelo
seu Autor pode ser recuperada.
Mas Deus tudo previu e não pôde ignorar que o homem viria a pecar. Tem os de
conceber a Cidade Santa conforme o que Ele previu e dispôs e não conforme o que
pode chegar ao nosso conhecimento pois não foi isso que esteve nos desígnios de
Deus. Claro que o homem com o seu pecado não pôde perturbar o plano divino nem
com o que obrigar Deus a mudar o que tinha estabelecido. Deus, na sua
presciência, previu um a e outra coisa, isto é, quão mau se viria a tornar o homem
que Ele criou bom e o bem que havia de tirar desse mal. E certo que se diz que Deus altera os seus desígnios (em linguagem metafórica a Escritura chega mesmo
a dizer que Deus se arrependeu). Mas, isso diz-se em atenção ao que o homem
espera ou em atenção ao que com porta a ordem das coisas naturais — e não em
atenção ao que o Omnipotente previu que havia de fazer.
Com o está escrito, Deus fez o homem recto e, como tal, dotado de vontade boa. Não
seria de facto recto se não tivesse vontade boa. A boa vontade é, portanto,
obra d e Deus, pois foi com ela que foi criado o homem. Mas a Primeira vontade
má, porque precedeu no homem todas as suas más obras, é menos uma obra que um
defeito pelo qual o homem, abandonando a obra de Deus, decai para as suas
próprias obras que, por tal facto, são más, porque são como ao homem apraz e
não como apraz a Deus. A vontade é, pois, como a árvore má: as obras que produz
são como que os seus maus frutos; ou então é o próprio homem que é essa má
árvore na medida em que é dotado de vontade má. Mas esta vontade, embora não
seja má por natureza, mas contra a natureza, pois é um vício, é, todavia, da
mesma natureza que o vício que não pode existir sem uma natureza; mas há-de ser
numa natureza que Deus criou do nada e não na que o Criador gerou em si próprio,
como gerou o Verbo por quem foi feito. Deus formou o homem do pó da Terra, mas
o certo é que esta terra, como toda a matéria terrestre, vem toda ela do nada.
E é ainda uma alma feita a partir do nada que Deus deu ao corpo quando o homem
foi feito.
A tal ponto os males são superados pelos bens que, embora se tolere a sua
existência para demonstrar quanto a providentíssima justiça do Criador pode
deles fazer bom uso, podem os bens existir sem os males tal como o próprio
verdadeiro Deus Supremo e todas as criaturas celestes visíveis e invisíveis que
estão acima deste ar tenebroso; pelo contrário, o mal não pode existir sem o
bem, pois que as naturezas em que ele se encontra são boas como naturezas.
Suprime-se, pois, o mal, não lhe tirando na totalidade ou em parte a natureza
que lhe acrescera, mas curando e reparando a natureza viciada e corrompida pelo
mal. A vontade, portanto, não goza verdadeiramente de livre arbítrio senão quando
não é escrava dos vícios e dos pecados. Tal é o dom de Deus; o homem perdeu-o
por sua própria falta; só quem lho concedeu é que lho pode restituir. Por isso
diz a Verdade:
Se o Filho vos libertar, então é que sereis livres na verdade [iii]
— que o mesmo é dizer: «Só estareis verdadeiramente salvos, se o Filho vos
salvar». Realmente, Ele é que é o nosso libertador porque Ele é que é o nosso
Salvador.
O homem vivia no agrado de Deus num paraíso não só corporal, mas também espiritual.
De facto, não havia um paraíso corporal para os bens do corpo sem haver um espiritual
para os bens do espírito — da mesma maneira que não havia um paraíso espiritual
para gozo dos sentidos interiores sem um paraíso para gozo dos exteriores.
Claro que, por causa de um e outro gozo, havia um e outro paraíso. Mas o anjo soberbo
— e por isso invejoso—, que a sua soberba afasta de Deus para o virar para si
próprio, preferindo, por uma espécie de ostentação própria dos «tiranos», ter
súbditos a ser ele mesmo súbdito, esse anjo fora afastado dum paraíso
espiritual (da sua queda e da dos seus aliados que de anjos de Deus se tornaram seus próprios anjos, tratei já, o
melhor que me foi possível, nos livros décimo primeiro e décimo segundo desta
obra). Com astúcia, má conselheira, procurou insinuar-se nos sentidos do homem
a quem invejava por se manter erguido, ao passo que ele tinha caído. Para isso, lá no Paraíso corporal onde,
com os dois homens (varão e fêmea), viviam também os outros animais terrestres,
dóceis e inofensivos, escolheu, para lhes falar, como ao seu desígnio convinha,
a serpente — animal escorregadio que se move em sinuosas curvas. Submetendo-a
com malícia espiritual, valendo-se da sua presença angélica e da superioridade
da sua natureza, usou dela com o de um instrumento para dirigir à mulher
palavras falaciosas. Começou pela parte mais débil daquele par hum ano para
gradualmente chegar ao todo: pensou que o homem não acreditaria facilmente nem
facilmente poderia ser enganado por erro, mas cederia a erro alheio. Assim
aconteceu a Aarão: não foi seduzido que consentiu em fabricar um ídolo para o
povo errante, mas cedeu constrangido. Também não é e crer que Salomão tenha
caído no erro de admitir que se deviam adorar os ídolos, mas foi arrastado a
esse culto sacrílego pelas carícias de suas mulheres. Da mesma maneira, segundo
parece, para chegar a transgredir a Lei de Deus, o primeiro homem não foi
arrastado pela sedução, acreditando na verdade das palavras de sua mulher: cedeu
sim devido à afeição que tinha à sua única companheira, à sua a si igual, à sua
mulher. Não foi em vão que o Apóstolo disse:
E Adão não foi seduzido, mas a mulher foi seduzida.[iv]
Ela tom ou por verdadeiro o que a serpente lhe disse, mas ele não quis
separar-se da sua única mulher nem mesmo na com unhão do pecado. Não foi por
isso menos culpável — pois pecou com ciência e consciência. Foi por isso que o
Apóstolo não disse «ele não pecou», mas sim «não foi seduzido» (non est
seductus). Confirma-o quando diz:
Por um só homem entrou o pecado no mundo [v]
e, pouco depois, mais claramente ainda:
Por uma transgressão semelhante à de Adão.[vi]
Quis ainda dar a entender que «ser seduzido» é fazer o que se não considera
pecado. Mas ele sabia que pecava. A não ser assim com o é que seria verdade que
Adão «não foi seduzido»? Mas, não tendo a experiência da severidade divina,
pôde enganar-se ao julgar que a sua falta era venial. Ele não foi seduzido como
o fora sua mulher, mas enganou-se quanto ao modo por que seria julgado o que ia dizer:
A mulher que me deste por companheira, essa mesma é que mo deu e eu comi. [vii]
Para quê mais? Não foram ambos enganados por terem acreditado, mas ambos foram
apanhados e envolvidos nas armadilhas do Diabo.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)