Navegando pela minha cidade
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E isto porque o estaminé do Sr. Francisco fica logo no seu início, junto à Rua Álvares Cabral.
Os relógios só nos dizem as horas, a passagem do tempo vê-se em toda a parte: no rosto de quem amamos; no crescimento das árvores; na obsolescência dos objectos do quotidiano e das modas; nas ruas da nossa cidade e do seu comércio.
As lojas alfarrabistas LUSA e SÉRGIO desapareceram neste tempo que passou. Muitas vezes fui ao cinema à custa de um livro que vendia na LUSA! O Sérgio Tremont era especializado em revistas e livros das colecções Mão Negra, FBI, Vampiro e Argonauta.
Quantas galáxias percorri – muito para além da velocidade da luz - e estranhas terras visitei e civilizações conheci nos livros da Argonauta pelas mãos de Theodore Sturgeon, Isaac Asimov, Ray Bradbury, Robert Heinlein e muitos outros grandes escritores de ficção científica.
Do BAZAR DOS TRÊS VINTENS só resta um painel de azulejos onde um Pai Natal sorridente e cansado leva um pinheiro às costas. Todo o resto foi arrasado por qualquer coisa multinacional do género da ZARA.
Pesa-me a sensação de que a mudança é para o efémero. Do estável para o passageiro. Do sólido e fixo para o frágil e precário.
E é com esta sensação que entro na Travessa de Cedofeita para ver se ainda existia uma estreita e comprida loja de velharias onde eu tinha ido muitas vezes há muitos anos.
Lá estava ela! Com loja num lado da Travessa e armazém no outro lado.
A arrumação era caótica. Era preciso quase andar-se de lado para se poder passar por duas paredes feitas de móveis, cadeiras, quadros e quinquilharia empilhada até ao tecto com a mesma desordem com que tudo foi entrando ou saindo.
É destas lojas de velharias que eu mais gosto. O dono falou-me como se eu lá tivesse estado no dia anterior e não se tivessem passado mais de dez anos.
Satisfeito por ele e a loja ainda estarem vivos lembrei-lhe um quadro com um casal de cisnes que lhe tinha comprado e falámos de um colega seu que tinha loja na Rua dos Mártires da Liberdade.
Este homem, inteligente e culto era completamente neurasténico. Estava sempre no fundo da loja assentado num pequeno banco enquanto lia um livro à luz de uma fraca lâmpada pendurada no seu próprio fio eléctrico. A loja era um atravancamento de todo o tipo de velharias que se possa imaginar e sobre as quais se tinha de passar por cima e afastá-las cuidadosamente com os pés para se poder avançar pois estavam espalhadas pelas mesas e estantes escorrendo, como um liquido, por todo o chão da loja.
A maior parte das vezes a loja estava fechada e quando voltava a abrir dizia-me simplesmente: “estive em tratamento”. De cabelo e barbas compridas parecia o Tolstoi ou o Rasputine. Era-lhe indiferente vender ou não vender qualquer das suas velharias e por isso nunca baixava um tostão fosse ao que fosse. Já morreu neste tempo que passou.
Foi então que ao lado de três capacetes empilhados: um de bombeiro; outro da segunda guerra e outro da primeira guerra mundial, vi a garrafa.
Estava deitada num pequeno cavalete e tinha dentro um veleiro de quatro mastros acostado a um cais com um comprido edifício alfandegário constituído por sete armazéns contíguos. De cada lado uma palmeira e perto da proa um farol.
O vidro da garrafa cheio de pequenas bolhas de ar indicava que era vidro muito antigo, mas o que a datava mais claramente eram as bandeiras do veleiro que eram azuis e brancas e a da popa com o escudo nacional coroado.
Tratava-se pois de uma peça feita à mão por um marinheiro há mais de cem anos. Uma flâmula no topo da mezena tinha o nome do veleiro escrito: Ausilia.
Quanto?
Vinte e cinco. Respondeu o dono da loja.
Mas levo por vinte não levo?
Sim.
E ali fiquei eu a olhar para aquele pequeno mundo marítimo que tinha ficado parado no tempo há mais de cem anos. Aquele veleiro estava numa redoma que certamente tinha tido bagaço - ou aguardente de medronhos - que alegrara o coração de um velho marinheiro.
Em cem anos aquele veleiro não tinha navegado nem uma milha; não tinha visto os golfinhos a acompanharem a sua rota junto à proa; não tinha apanhado uma única tempestade; nem a espuma das vagas, nem ventos nem monções nem calmarias. Não tinha servido.
Ali estava aquele veleiro, parado numa cápsula de tempo num porto do Oriente. Dentro do tempo fora do tempo como uma múmia na solidão seca e intocável do Vale dos Reis … ou uma relíquia.
Voltando à Rua de Cedofeita libertei-me daquela espécie de nostalgia que se tinha apoderado de mim. Pois a vida é exactamente o que se passa na rua: mudança.
E nesta mudança que é a vida há … tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para destruir, e tempo para edificar; tempo para chorar, e tempo para rir; tempo para adquirir, e tempo para perder; tempo para calar, e tempo para falar; tempo para a guerra, e tempo para a paz.[1]
Afonso Cabral