Tempo comum XXXIII Semana
Evangelho: Mt 25 14-30
14 «Será também como um
homem que, estando para empreender uma viagem, chamou os seus servos, e lhes
entregou os seus bens. 15 Deu a um cinco talentos, a outro dois e a
outro um, a cada qual segundo a sua capacidade, e partiu. 16 O que
tinha recebido cinco talentos, logo em seguida, foi, negociou com eles, e
ganhou outros cinco. 17 Do mesmo modo, o que tinha recebido dois,
ganhou outros dois. 18 Mas o que tinha recebido um só, foi fazer uma
cova na terra, e nela escondeu o dinheiro do seu senhor. 19 «Muito
tempo depois, voltou o senhor daqueles servos e chamou-os a contas. 20
Aproximando-se o que tinha recebido cinco talentos, apresentou-lhe outros
cinco, dizendo: “Senhor, entregaste-me cinco talentos, eis outros cinco que
lucrei”. 21 Seu senhor disse-lhe: “Está bem, servo bom e fiel, já
que foste fiel em poucas coisas, dar-te-ei a intendência de muitas; entra no
gozo do teu senhor”. 22 Apresentou-se também o que tinha recebido
dois talentos, e disse: “Senhor, entregaste-me dois talentos, eis que lucrei
outros dois”. 23 Seu senhor disse-lhe: “Está bem, servo bom e fiel,
já que foste fiel em poucas coisas, dar-te-ei a intendência de muitas; entra no
gozo do teu senhor”. 24 «Apresentando-se também o que tinha recebido
um só talento, disse: “Senhor, sei que és um homem duro, que colhes onde não
semeaste e recolhes onde não espalhaste. 25 Tive receio e fui
esconder o teu talento na terra; eis o que é teu”. 26 Então, o seu
senhor disse-lhe: “Servo mau e preguiçoso, sabias que eu colho onde não semeei,
e que recolho onde não espalhei. 27 Devias pois dar o meu dinheiro
aos banqueiros e, à minha volta, eu teria recebido certamente com juro o que
era meu. 28 Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem dez
talentos, 29 porque ao que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância;
mas ao que não tem, tirar-se-lhe-á até o que tem. 30 E a esse servo
inútil lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes”.
Comentário:
A
um mendigo que lhe tinha dado um simples copo de água, Alexandre o Grande
mandou que lhe dessem o governo de quatro cidades.
Se
um imperador da terra – mesmo sendo o maior de todos – paga desta forma um
pequeno favor, como será o prémio do Rei dos Reis, o Dono e Senhor de tudo
quanto existe?
Tenhamos
esta certeza: O Senhor nunca se deixa vencer em generosidade!
(ama, comentário sobre Mt 25, 14-30, 2013.08.31)
Leitura espiritual
HISTÓRIA DE UMA ALMA
Santa Teresinha do Menino Jesus
MANUSCRITO ENDEREÇADO A MADRE MARIA DE
GONZAGA
…/4
Na hora em que tínhamos combinado
ficar juntas, ao olhar para mim, a pobre irmãzinha percebeu logo que eu não era
a mesma. Sentou-se ao meu lado enrubescendo e eu, apoiando sua cabeça no meu
coração, disse-lhe com lágrimas na voz tudo o que pensava dela, mas com
expressões de muita ternura, manifestando-lhe tão grande afecto que logo as
lágrimas dela misturaram-se às minhas. Admitiu com muita humildade que tudo o
que eu lhe dizia era verdade, prometeu iniciar vida nova e pediu como um favor
avisá-la sempre das suas faltas. Enfim, no momento de nos separar, nosso afeto
passara a ser totalmente espiritual, nada de humano'°' subsistia. Realizava-se
em nós esta passagem da Escritura: "O irmão ajudado pelo seu irmão é mais
do que uma cidade fortificada".
O que Jesus fez com seu pincelzinho
teria sido logo apagado se não tivesse agido por meio de vós, Madre, para
realizar sua obra na alma que Ele queria inteiramente para Si. A provação
pareceu muito amarga à minha pobre companheira, mas vossa firmeza triunfou e
pude então, tentando consolá-la, explicar àquela que me destes por irmã entre
todas em que consiste o verdadeiro amor. Mostrei-lhe que era a ela própria que
amava e não a vós; disse-lhe como eu vos amava e que sacrifícios fui obrigada a
fazer, no início da minha vida religiosa, para não me apegar a vós de maneira
totalmente material, como o cachorro se apega a seu dono. O amor alimenta-se de
sacrifícios, mais a alma recusa para si satisfações naturais, mais sua ternura
se torna forte e desinteressada.
Lembro-me de que, quando postulante,
tinha tentações tão violentas de ir vos encontrar para minha satisfação, para
achar algumas gotas de alegria, que tinha de passar rapidamente diante do
depósito e agarrar-me ao corrimão da escada. Chegavam à minha mente uma porção
de permissões a pedir; enfim, Madre querida, encontrava mil motivos para
satisfazer a minha natureza... Como estou feliz agora por me ter privado, logo
no início da minha vida religiosa. Já usufruo da recompensa prometida aos que
combatem corajosamente. Não sinto mais necessidade de me recusar todas as
consolações do coração, pois minha alma está consolidada pelo único que eu
queria amar. Vejo com satisfação que, amando-o, o coração se dilata e pode dar
incomparavelmente mais ternura aos que lhe são caros, do que se tivesse ficado
concentrado num amor egoísta e infrutífero.
Madre querida, relatei o primeiro
trabalho que Jesus e vós vos dignastes realizar por ruim; era apenas o prelúdio
dos que me deviam ser encomendados. Quando me foi dado penetrar no santuário
das almas, vi logo que a tarefa ultrapassava as minhas capacidades. Lancei-me,
então, nos braços de Deus e, como uma criancinha, escondendo o rosto nos
cabelos Dele, disse-Lhe: Senhor, sou pequena demais para alimentar vossas
filhas, se quiserdes dar-lhes, por mim, o que convém a cada uma, enchei minha
mãozinha e, sem deixar vosso colo, sem desviar a cabeça, darei vossos tesouros
à alma que vier pedir alimento. Se ela gostar, saberei que não é de mim, mas de
vós que a recebe; se reclamar, não ficarei perturbada, procurarei persuadi-la
de que esse alimento vem de vós e evitarei procurar outro para ela.
Madre, desde que entendi ser
impossível fazer alguma coisa por mim mesma, a tarefa que me impusestes deixou
de me parecer difícil; senti que a única coisa necessária consistia em unir-me
sempre mais a Jesus e que o restante me seria dado por acréscimo. De fato,
nunca minha esperança me enganou, Deus encheu minha mãozinha todas as vezes que
foi necessário para alimentar a alma das minhas irmãs. Confesso, Madre querida,
que se me tivesse apoiado, o mínimo que fosse, nas minhas próprias forças teria
capitulado... De longe, parece fácil fazer bem às almas, fazê-las amar sempre
mais a Deus, modelá-las, enfim, segundo seus próprios pontos de vista e suas
idéias pessoais. De perto, é o contrário... sente-se que fazer o bem, sem a ajuda
de Deus, é tão impossível quanto fazer o sol brilhar no meio da noite...
Sente-se que é absolutamente necessário esquecer as próprias preferências, as
concepções pessoais e guiar as almas pelo caminho que Jesus delineou para elas,
sem procurar fazê-las caminhar pela nossa via. Não é ainda o mais difícil; o
que mais me custa é observar as faltas, as mais leves imperfeições e dar-lhes
combate mortal. Ia dizer: infelizmente para mim, mas seria uma covardia, portanto
digo: felizmente para minhas irmãs, desde que tornei lugar nos braços de Jesus,
sou como o vigilante que, da mais alta torre de uma fortaleza, observa o
inimigo. Nada escapa ao meu olhar; fico muitas vezes espantada por enxergar tão
bem e acho o profeta Jonas muito desculpável por ter frigido em vez de ir
anunciar a ruína de Nínive. Preferiria mil vezes receber recriminações a
fazê-las, mas sinto que é necessário que seja um sofrimento, pois quando se age
segundo a natureza é impossível que a alma à qual se quer apontar as faltas
compreenda os próprios erros; só vê uma coisa: a irmã encarregada de me dirigir
está zangada e tudo recai sobre mim, embora eu esteja cheia das melhores intenções.
Sei que vossos cordeirinhos me acham
severa. Se lessem estas linhas, diriam que não me parece custar o mínimo correr
atrás deles, falar-lhes num tom severo mostrando seu belo velocino sujo ou trazendo
algum tufo de lã que deixaram nos espinhos do caminho. Podem dizer tudo o que
quiserem, no fundo, sentem que os amo com amor verdadeiro, que nunca faria como
o mercenário que, vendo o lobo chegar, abandona o rebanho e foge. Estou pronta
a dar minha vida por eles, mas meu afeto é tão puro que não desejo que o conheçam.
Com a graça de Jesus, nunca procurei conquistar o coração deles. Compreendi que
minha missão consistia em levá-los a Deus e fazê-los compreender que, aqui, vós
sois a minha Madre, o Jesus visível que devem amar e respeitar.
Disse, Madre querida, que instruindo
os outros muito aprendi. Vi que todas as almas têm de travar, mais ou menos, os
mesmos combates, mas são tão diferentes sob outros aspectos, que não tenho
dificuldades em compreender o que dizia o padre Pichon: "Há muito mais
diferenças entre as almas que entre os rostos". Por isso, é impossível
agir da mesma maneira com todas. Com certas almas, sinto que devo fazer-me
pequena, não recear diminuir-me, confessar meus combates, meus defeitos; vendo
que tenho as mesmas fraquezas que elas, minhas irmãzinhas confessam por sua vez
as faltas que pesam sobre elas e ficam satisfeitas por eu compreendê-las por
experiência. Com outras, é preciso agir com muita firmeza e nunca voltar ao que
foi determinado. Diminuir-se não seria humildade, mas fraqueza. Deus deu-me a
graça de não temer a guerra"', preciso cumprir minha obrigação, custe o
que custar. Mais de uma vez, ouvi dizer: "Se quiserdes obter alguma coisa
de mim, tem de ser pela doçura; pela força, não conseguireis nada". Sei
que ninguém é bom juiz em causa própria e que uma criança em quem o médico faz
um curativo doloroso não deixará de gritar e dizer que o remédio é pior que o
mal. Contudo, fica boa alguns dias depois, feliz por poder brincar e correr. É
assim com as almas, reconhecem logo que um pouco de amargo é, às vezes,
preferível ao doce e não receiam admitir. Em alguns casos, não deixo de sorrir
interiormente vendo as transformações que se operam de um dia para outro. É
fantástico... Dizem-me: "Tivestes razão, ontem, em mostrar severidade; no
início, isso me revoltou, mas depois me lembrei de tudo e vi que fostes muito
justa... Escutai: indo, pensava que estava tudo acabado, dizia para mim mesma:
`Vou falar com nossa Madre e dizer a ela que não mais irei com minha Irmã
Teresa do Menino Jesus'. Mas senti que era o demônio quem me inspirava aquilo e
pareceu-me que estivestes rezando por mim, então, fiquei tranquila e a luz
voltou a brilhar; mas agora é preciso que me esclareçais para valer, e é por
isso que estou aqui". A conversação inicia logo; fico muito feliz em poder
seguir a tendência do meu coração, deixando de servir alimento amargo. Sim, mas
... logo percebo que não é para ter pressa, uma palavra poderia fazer
desmoronar o belo edifício construído nas lágrimas. Se eu tiver a infelicidade
de dizer uma só palavra que pareça atenuar o que disse ontem, vejo minha
irmãzinha tentar agarrar-se aos galhos, faço então uma pequena oração interior
e a verdade triunfa sempre. Ah! é a oração, é o sacrifício que fazem toda a
minha força, são as armas invisíveis que Jesus me deu. Elas têm muito mais
poder que as palavras para sensibilizar as almas, experimentei-as mais de uma
vez. Uma, entre todas, causou-me profunda e doce impressão.
Era durante a quaresma e ocupava-me da
única noviça que havia aqui e da qual eu era o anjo da guarda. Certa manhã, vem
procurar-me, radiante: "Ah! se soubésseis", disse-me, "o que
sonhei esta noite. Eu estava perto da minha irmã e queria afastá-la de todas as
vaidades de que tanto gosta e, para isso, explicava-lhe os versos: Viver de
amor. / Amar-te Jesus, que perda fecunda / Todos os meus perfumes são teus, sem
volta. Sentia que minhas palavras penetravam na alma dela e eu ficava extasiada
de alegria. Nesta manhã, ao acordar, pensei que Deus, talvez, quisesse que eu lhe
desse essa alma. Se lhe escrevesse, depois da quaresma, a fim de contar-lhe meu
sonho e dizer-lhe que Jesus a quer só para Ele?"
Eu, sem pensar mais, disse-lhe que
podia tentar, mas que antes era preciso pedir autorização à nossa Madre. Como a
quaresma estava ainda longe do fim, ficastes, Madre querida, muito surpresa com
semelhante pedido, que vos pareceu prematuro. Inspirada por Deus, certamente,
respondestes que não é por cartas que as carmelitas devem salvar as almas, mas
pela oração.
Ao saber da vossa decisão, compreendi
logo que era a de Jesus e disse a Irmã Maria da Trindade: "Precisamos pôr
mãos à obra, rezemos muito. Que alegria se, ao final da quaresma, formos
atendidas!..." Oh! misericórdia infinita do Senhor, que escuta a oração
das suas crianças... No final da quaresma, mais uma alma consagrava-se a Jesus.
Era verdadeiro milagre da graça, milagre obtido pelo fervor de uma única
noviça!
Como é grande o poder da oração!
Parece uma rainha com acesso permanente ao rei e capaz de obter tudo o que
pede. Para ser atendido, não é preciso ler uma bela fórmula de circunstância em
algum livro; ai! se assim fosse, como eu haveria de lastimar!... Fora o Oficio
Divino que sou muito indigna de rezar, falta-me coragem para procurar bonitas
orações nos livros, causa-me dor de cabeça, são tantas!... e uma é mais bonita
que a outra... Não poderia rezar todas e não saberia qual escolher. Faço como
as crianças que não sabem ler, digo simplesmente a Deus o que quero dizer, sem
frases bonitas. Ele me compreende sempre... Para mim, a oração e um impulso do
coração, um simples olhar para o céu, um grito de gratidão e de amor no meio da
provação como no meio da alegria, enfim, é alguma coisa de grande, de
sobrenatural que dilata a minha alma e me une a Jesus.
Todavia, não quero, Madre querida, que
penseis que eu faço sem devoção as orações em comum, no coro ou nos
eremitérios. Pelo contrário, gosto muito das orações em comum, pois Jesus
prometeu ficar no meio dos que se reúnem em nome Dele. Sinto, então, que o
fervor das minhas irmãs supre o meu; sozinha (tenho vergonha de confessá-lo), a
recitação do terço custa-me mais do que usar um instrumento de penitência...
Sinto que o recito muito mal; mesmo fazendo esforço para meditar sobre os
mistérios do rosário, não consigo fixar minha mente... Durante muito tempo,
lastimei essa falta de devoção que me intrigava, pois amo tanto Nossa Senhora
que deveria ser-me fácil recitar em honra dela orações que lhe agradam. Agora,
lastimo menos, penso que, por ser a minha Mãe, a Rainha dos Céus deve perceber
a minha boa vontade e se agrada com ela.
Vez por outra, quando minha mente está
em tão grande aridez que me é impossível extrair um pensamento para me unir a
Deus, recito muito lentamente um "Pai-nosso" e a saudação angélica;
então, essas orações me encantam, alimentam minha alma muito mais do que se as
tivesse recitado precipitadamente uma centena de vezes...
Nossa Senhora me mostra não estar
zangada comigo, nunca deixa de me proteger quando a invoco. Se me vem uma
inquietação, um problema, logo me dirijo a ela e sempre, como a mais terna das
Mães, ela toma conta dos meus interesses... Quantas vezes, ao falar às noviças,
invoco-a e sinto os favores da sua maternal proteção!...
Freqüentemente, as noviças me dizem:
"Mas tendes resposta para tudo; desta vez, pensava embaraçar-vos... onde é
que ides buscar o que dizeis?" Há umas tão ingênuas que pensam que leio
nas almas delas, só porque me aconteceu preveni-las dizendo o que pensavam. Uma
noite, uma das minhas companheiras"' resolve ocultar-me uma pena que a faz
sofrer muito. Encontro-a pela manhã, ela me fala com semblante sorridente e eu,
sem responder ao que ela me diz, digo-lhe num tom convicto: Estais sofrendo. Se
tivesse feito a lua cair aos pés dela, creio que não teria olhado para mim com
espanto maior. Seu pasmo foi tanto que me contagiou e, por um instante, fui
tomada de um pavor sobrenatural. Tinha certeza de não ter o dom de ler nas
almas e ter acertado assim, em cheio, me espantou. Sentia que Deus estava muito
perto, que sem perceber dissera, como uma criança, palavras que não vinham de
mim, mas Dele.
Madre querida, compreendeis que às
noviças tudo é permitido, é necessário que possam dizer o que pensam sem
restrição. O bem e o mal. Isso lhes é tanto mais fácil que não me devem o
respeito que se dá a uma mestra. Não posso dizer que Jesus me faz caminhar exteriormente
pela via das humilhações. Contenta-se em humilhar-me no fundo da minha
alma"'. Aos olhos das criaturas, consigo bons resultados em tudo. Ando
pelo caminho das honras, na medida em que é possível na vida religiosa.
Compreendo que não é para mim, mas para os outros que devo andar por esse
caminho que parece tão perigoso. De fato, se eu fosse considerada pela
comunidade como uma religiosa cheia de defeitos, incapaz, sem juízo nem
inteligência, seria impossível, Madre, fazer-vos ajudar por mim. Eis por que
Deus lançou um véu sobre todos os meus defeitos interiores e exteriores. Às
vezes, esse véu atrai elogios para mim por parte das noviças. Sinto que não o
fazem por adulação, mas que é expressão dos seus ingênuos sentimentos;
francamente, isso não poderia inspirar-me vaidade, pois tenho sempre presente à
mente a lembrança do que sou. Vez por outra, sou tomada de um desejo muito
grande de ouvir outra coisa que não seja elogios. Sabeis, Madre querida, que
prefiro o vinagrete ao açúcar e Jesus permite, então, que se lhe sirva uma boa
saladinha, bem avinagrada, bem apimentada, nada falta, a não ser o azeite, o
que lhe dá um sabor suplementar... Essa boa saladinha me é servida pelas
noviças quando menos espero. Deus levanta o véu que esconde as minhas
imperfeições e então as minhas queridas irmãzinhas me veem tal como sou e não
me acham totalmente do gosto delas. Com uma simplicidade que me encanta,
falam-me dos combates em que as coloco, o que lhes desagrada em mim; enfim, não
se constrangem mais do que se falassem de outra pessoa, sabendo que me agradam
agindo dessa forma. Ah! francamente, é mais que um prazer, é um banquete
delicioso"' que enche minha alma de alegria. Não consigo explicar como uma
coisa que tanto desagrada à natureza possa causar tanta felicidade; se não a
tivesse experimentado, não poderia acreditar... Num dia em que tinha desejado
particularmente ser humilhada, uma noviça incumbiu-se tão bem de satisfazer-me
que logo pensei em Semei amaldiçoando Davi, e pensava: Sim, é o Senhor que lhe
ordena dizer-me essas coisas todas... E minha alma saboreava deliciosamente o
alimento amargo que lhe era servido com tanta fartura.
Assim é que Deus se digna cuidar de
mim. Nem sempre pode me dar o pão fortificante da humilhação exterior, mas de
vez em quando permite que me alimente das migalhas que caem da mesa das crianças.
Ah! como é grande a sua misericórdia, só poderei cantá-la no Céu...
Madre querida, sendo que, convosco,
começo a cantar na terra essa misericórdia infinita, preciso contar-vos mais um
grande favor obtido na missão que me confiastes. Outrora, quando via uma irmã
fazer alguma coisa que me desagradava e me parecia irregular, dizia para mim
mesma: Ah!, se eu pudesse dizer-lhe o que penso, mostrar-lhe o erro, isso me
faria bem. Depois que comecei a praticar um pouco o ofício, asseguro-vos,
Madre, que mudei totalmente de sentimento. Quando vejo uma irmã fazer alguma
coisa que me parece imperfeita, solto um suspiro de alívio e penso: Que
felicidade! Não é uma noviça, não tenho obrigação de repreendê-la. Logo procuro
desculpar a irmã e atribuir-lhe umas boas intenções que, sem dúvida, tem para
agir dessa forma.
Ah! Madre, depois que fiquei doente,
os cuidados que me prodigalizais instruíram-me muito a respeito da caridade.
Não há remédio que vos pareça caro demais e, se não dá os resultados esperados,
não vos cansais de procurar outro. Quando ia ao recreio, quanta atenção em me
colocar ao abrigo das correntezas de ar; enfim, se eu quisesse contar tudo, não
acabaria nunca.
Pensando em todas essas coisas, disse
para mim mesma que deveria ser tão compassiva com as enfermidades espirituais
das minhas irmãs quanto vós o sois ao cuidar de mim com tanto amor.
Observei (e é bem natural) que as
irmãs mais santas são as amadas, procura-se a conversação delas, prestam-se
serviços a elas sem que tenham de pedi-los, enfim, essas almas capazes de
suportar faltas de consideração, de delicadezas, vêem-se cercadas pelo afeto de
todas. Pode-se aplicar a elas as seguintes palavras do nosso Pai, são João da
Cruz: Todos os bens me foram dados quando não os procurei mais por
amor-próprio.
Ao contrário, as almas imperfeitas não
são procuradas. Permanece-se, sem dúvida, dentro dos limites da cortesia
religiosa, mas receando, talvez, dizer-lhes algumas palavras pouco amáveis,
evita-se a companhia delas. Ao mencionar almas imperfeitas não estou me referindo
apenas às imperfeições espirituais, pois as mais santas só serão perfeitas no
Céu, refiro-me à falta de juízo, de educação, à suscetibilidade de alguns
temperamentos, todas coisas que não tornam a vida agradável. Sei que essas
enfermidades morais são crônicas, sem esperança de cura, mas sei que minha
Madre não deixaria de cuidar de mim, de procurar aliviar-me, se ficasse doente
a vida toda. Eis a conclusão a que cheguei: devo procurar, no recreio, na
licença, a companhia das irmãs que me são menos agradáveis, desempenhar junto a
essas almas feridas o ofício de boa samaritana. Uma palavra, um sorriso amável
são muitas vezes suficientes para alegrar uma alma triste. Mas não é
absolutamente para alcançar essa meta que quero praticar a caridade, pois sei
que logo desanimaria: uma palavra que eu teria proferido com a melhor das
intenções seria, talvez, interpretada erroneamente. Por isso, a fim de não
perder meu tempo, quero ser amável com todas (e particularmente com as irmãs
menos amáveis) para alegrar Jesus e responder ao conselho que me dá no
Evangelho, mais ou menos nos seguintes termos: "Quando ofereceres um
almoço ou um jantar, não chames os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus
parentes, nem os ricos vizinhos; de outro modo eles também convidar-te-iam e
terias uma retribuição. Mas, quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados,
os coxos, os cegos; è serás feliz, porque eles não terão como retribuir-te; mas
ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos".
Que banquete poderia uma carmelita
oferecer às suas irmãs, a não ser uma refeição espiritual composta de caridade
amável e alegre? Pessoalmente, não conheço outro e quero imitar são Paulo, que
se alegrava com quem estava alegre. Verdade que também chorava com os aflitos e
as lágrimas devem aparecer, às vezes, no banquete que quero servir, mas sempre
procurarei que essas lágrimas se transformem, no final, em alegria; pois o
Senhor ama quem dá com alegria.
Recordo-me de um ato de caridade que
Deus me inspirou fazer quando ainda era noviça. Era pouca coisa, mas nosso Pai,
que vê o que é secreto, que olha mais para a intenção do que para o vulto da
ação, já me recompensou sem esperar a outra vida. Era no tempo em que irmã São
Pedro ainda ia ao coro e ao refeitório. Para a oração vespertina, estava
acomodada à minha frente: às 15h50, uma irmã devia levá-la ao refeitório, pois
as enfermeiras tinham então muitas doentes e não podiam levá-la. Custava-me
muito oferecer-me para prestar esse pequeno serviço, pois sabia não ser fácil
contentar essa pobre irmã São Pedro, que sofria tanto que não gostava de mudar
de condutora. Mas eu não queria perder tão boa ocasião de praticar a caridade,
lembrando-me de que Jesus disse: "Tudo o que fizerdes a um destes meus
irmãos mais pequeninos, a mim o fareis". Ofereci-me, portanto, muito
humildemente, para levá-la. Não foi sem dificuldade que consegui fazê-la
aceitar meu serviço! Enfim, pus mãos à obra e tinha tão boa vontade que
consegui perfeitamente.
Toda tarde, quando via irmã São Pedro
sacudir sua ampulheta, sabia o que aquilo significava: partamos. É incrível
como me era custoso dispor-me a levá-la, sobretudo no início. Assim mesmo,
fazia-o imediatamente e começava todo um cerimonial. Era preciso mover e levar
o banco de um jeito preestabelecido, sobretudo, não se apressar; depois,
empreendia-se o passeio. Tratava-se de seguir a pobre enferma segurando-a pela
cintura, o que eu fazia com a maior delicadeza possível; mas se, por
infelicidade, ela dava um passo em falso parecia-lhe logo que não a segurava
direito e que ela ia cair. "Ah!, meu Deus! andais depressa demais, vou me
arrebentar." Se eu procurava andar mais devagar: "Mas me acompanhai,
não sinto mais a vossa mão, ides largar-me, vou cair, ah! bem sabia que sois
jovem demais para me levar". No final, chegávamos sem incidente ao refeitório.
Aí surgiam novas dificuldades, pois era preciso fazê-la sentar e agir com jeito
para não machucá-la. Depois, era preciso arregaçar suas mangas (ainda de uma
maneira predeterminada). Depois, ficava livre para ir. Com mãos estropiadas,
ela ajeitava, como podia, o pão em seu godê. Logo percebi e, toda noite, só a
deixava após ter-lhe prestado mais esse servicinho. Como não me tinha pedido
para fazê-lo, ficou muito comovida e foi por esse gesto, que eu não tinha planejado,
que conquistei seu afeto e sobretudo (soube mais tarde) porque, depois de ter
cortado o pão, despedia-me dela com meu mais lindo sorriso.
Madre querida, talvez estejais
surpresa por eu relatar esse pequeno acto de caridade, acontecido há tanto
tempo. Ah! o fiz porque sinto que preciso cantar, por causa dele, as
misericórdias do Senhor. Dignou-se conservar a lembrança em mim, como um
perfume que me incita a praticar a caridade. Recordo-me, às vezes, de certos
pormenores que são para minha alma como uma brisa primaveril. Eis mais um que
me vem à memória: numa tarde de inverno, cumpria, como de costume, meu pequeno
ofício. Fazia frio, estava escuro... de repente, ouvi ao longe o som harmonioso
de um instrumento musical. Imaginei, então, um salão bem iluminado, brilhante
de ouro, moças elegantemente vestidas trocando gentilezas mundanas; meu olhar
desviou-se para a pobre doente que eu sustentava. Em vez de melodia, ouvia, de
vez em quando, seus gemidos plangentes, em vez de douração, via os tijolos do
nosso claustro austero, iluminado por luz fraca. Não pude expressar o que se
passou na minha alma, sei que o Senhor a iluminou com os raios da verdade, que
superaram tanto o tenebroso brilho das festas da terra que não podia acreditar
na minha felicidade... Ah! para gozar mil anos das festas mundanas, não teria
dado os dez minutos empregados na execução do meu ofício de caridade... Se já
no sofrimento, no meio da luta, pode-se gozar por um instante de uma felicidade
que ultrapassa todas as felicidades da terra, pensando que Deus retirou-nos do
mundo, como será no Céu, quando virmos, no seio da alegria e do repouso eterno,
a graça incomparável que o Senhor nos fez escolhendo-nos para morar em sua
casa, verdadeiro pórtico dos Céus?...
(cont)