LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis
CAPITULO 7
Amor
à pobreza e intervenções miraculosas nas necessidades
7. Por amor da santa
pobreza, o servo de Deus omnipotente preferia alimentar-se das esmolas colectadas
de porta em porta àquelas que lhes eram oferecidas espontaneamente.
Sendo convidado alguma vez
por grandes personagens e não podendo eximir-se da honra de assentar-se às
mesas sumptuosas, ia primeiro mendigando pelas casas mais próximas alguns
pedaços de pão, e, enriquecido depois com essa esmola, não rejeitava o convite.
Foi o que fez certa vez ao ser convidado pelo cardeal de Óstia, extraordinariamente
afeiçoado ao pobre de Cristo. Queixou-se o cardeal julgando ser pouco honroso
para ele que, devendo comer em sua casa, tivesse pedido esmola. Francisco
respondeu-lhe: “Senhor, grande honra vos tributei, honrando ao outro Senhor
mais excelente. Porque na verdade o Senhor se compraz na pobreza, e muito mais
naquela que por amor de Cristo se converte em mendicância voluntária. Não quero
trocar por essas vãs riquezas que vos foram concedidas aquela dignidade real
que Cristo, que se fez pobre por nós, tomou para si, a fim de nos enriquecer
com sua pobreza e tornar-nos, como verdadeiros pobres de espírito, herdeiros e
reis do reino dos céus”.
8. Ao exortar os irmãos a
pedir esmolas, Francisco costumava dizer-lhes: “Ide, porque nestes últimos dias
os irmãos menores foram dados ao mundo como benefício, para que os eleitos os
tratem de tal modo que mereçam ser louvados pelo supremo Juiz no dia do juízo e
ouvir estas palavras: ‘Quando fizestes isso ao menor de meus irmãos, a mim o
fizestes’” (Mt 25,40). Por isso julgava ele honroso pedir esmola com
o título de irmãos menores, pois o próprio Senhor o usou nos Evangelhos, ao
falar da recompensa reservada aos eleitos. Sempre que podia, ia pedir esmola
nas principais festas do ano, lembrado das palavras do salmista: “O homem comeu
o pão dos anjos” (Sl 77,25), pois para ele era realmente o pão dos anjos,
esmolado de porta em porta pela santa Pobreza por amor de Deus, e concedido
pelos benfeitores por amor de Deus sob a inspiração dos anjos bem-aventurados.
9. Certo dia de Páscoa,
encontrando-se em um santuário ou eremitério, tão distanciado do contacto dos
homens que não podia facilmente mendigar seu alimento, lembrou-se daquele que
no mesmo dia apareceu em traje de peregrino aos discípulos no caminho de Emaús.
Pediu esmola a seus irmãos, considerando-se a si mesmo como um pobre peregrino.
E tendo-a recebido com humildade, instruiu-os nas divinas letras, exortando-os
a que no deserto deste mundo se julgassem peregrinos e estrangeiros, isto é,
como verdadeiros israelitas, e a que celebrassem continuamente em pobreza de
espírito a Páscoa do Senhor, ou seja, o trânsito desta vida à vida eterna. Não
era o desejo do ganho que o animava a pedir esmolas, mas a força do Espírito que
o dominava; e por isso Deus, Pai dos pobres, sempre teve com ele um cuidado
todo particular.
10. Certa ocasião, ele
adoecera gravemente no pequeno convento de Nocera, e o povo de Assis, em sua
veneração pelo santo, enviou-lhe uma escolta para reconduzi-lo a Assis. Sempre
seguindo o servo de Cristo, chegaram a Satriano, pequena aldeia pobre; era hora
da refeição; estavam com fome; percorreram a cidade em todas as direcções: não
havia meio algum de comprar o que quer que fosse, e voltaram de mãos vazias. Disse-lhes
então o santo: “Se nada encontrastes, é porque tivestes mais confiança em
vossas ‘moscas’ (chamava assim o dinheiro) do que em Deus. Voltai às casas
aonde já fostes bater e pedi esmola por amor de Deus. E não creiais que isso
seja um gesto vergonhoso ou humilhante - seria errado pensar assim – pois todas
as coisas, desde o pecado, nos foram dadas a título de esmola, aos dignos e aos
indignos, pela magnânima bondade de nosso Grande Esmoler”. Os soldados deixam
de lado a vergonha e vão pedir esmola espontaneamente, recebendo por amor de
Deus muito mais do que poderiam comprar com o dinheiro que possuíam; pois a
graça de Deus agiu com tanta eficácia, que os pobres habitantes, comovidos
profundamente, não só se contentaram em dar o que tinham como também se puseram
generosamente a serviço deles. Foi assim que a pobreza, tesouro de Francisco,
conseguiu aliviar a indigência que o ouro não pudera.
11. No tempo que esteve
doente num eremitério perto de Rieti, um médico o visitava com frequência. Mas
como o pobrezinho de Cristo não tivesse condições de recompensá-lo dignamente
por seu trabalho, o próprio Deus em sua infinita liberalidade, para que o
médico não ficasse sem a devida recompensa, remunerou, em nome do pobrezinho,
os serviços dele com este singular benefício. Havia o médico construído por
esse tempo e às próprias custas uma casa inteiramente nova, e logo se abriram
em suas paredes, de alto a baixo, grandes fendas que ameaçavam fazer ruir a
casa, não havendo recurso humano nenhum capaz de impedir o desabamento da casa.
O médico, cheio de confiança nos méritos do santo, pediu a seus companheiros
com grande fé e devoção que lhe dessem alguma coisa que houvesse sido tocada
pelas mãos de Francisco. À força de repetidas instâncias conseguiu obter uma
mecha dos cabelos do santo, a qual pela tarde introduziu cuidadosamente em uma
das fendas da parede, e ao levantar-se no dia seguinte observou que a fenda se
fechara tão perfeitamente que não pôde extrair as próprias relíquias colocadas
no dia anterior nem encontrar vestígio algum das referidas fendas. Eis como aquele
que com tanto zelo se devotara aos cuidados do pobre corpo em ruína do servo de
Deus preservou da ruína a sua própria casa.
12. Certa ocasião,
querendo o homem de Deus transferir-se a um eremitério para se dedicar mais
livremente à contemplação, e como estava enfermo, pediu a um pobre que o
transportasse em seu burro. No calor do verão, o homem seguia a pé o servo de
Deus montanha acima. Cansado do percurso muito longo e difícil e forçado pela
sede, a um certo ponto começou a gritar ao santo: “Morro de sede se não
encontrar um pouco d’água imediatamente!” No mesmo instante, Francisco apeou do
burro e prostrado de joelhos em terra, levantou as mãos ao céu, não deixando de
rezar fervorosamente até conhecer que o Senhor ouvira sua oração. Concluída a
oração, disse afavelmente ao homem: “Vai até aquela pedra, irmão, e ali
encontrarás água fresca e abundante, que neste momento Cristo, em sua misericórdia,
fez jorrar da pedra para ti”. Estupenda comiseração de Deus, que com tanta
facilidade se inclina aos desejos de seus servos! O homem sedento pôde beber de
uma água nascida da rocha pela virtude de um santo em oração e foi um rochedo
bem duro que lhe forneceu com que matar a sede. Não existia nenhum fio d’água
anteriormente nesse local. E por mais que se procurasse, não se encontrou resquício
sequer de água naquele lugar.
13. Mais adiante, no
devido lugar, contaremos como Cristo, pelos méritos de seu pobre, multiplicou
os víveres em pleno mar. Agora recordemos apenas esta aventura. Com um pouco de
alimento recebido como esmola, salvou durante vários dias da morte toda a tripulação
que morria de fome. Não podemos deixar de ressaltar aqui que o servo do Deus omnipotente,
semelhante a Moisés, ao fazer jorrar água do rochedo, também se parece com
Eliseu, ao multiplicar os víveres.
Lancem, pois, os pobres
para longe de si qualquer desconfiança, porque se a pobreza de Francisco foi
bastante rica para fornecer a seus benfeitores o que lhes faltava: alimento,
bebida, moradia, quando o dinheiro, a técnica e a natureza pareciam impotentes,
com tanto mais razão nos merecerá ela os bens que procedem da ordem habitual da
divina Providência. Se a aridez da pedra, à voz de um pobre, produziu uma
abundante bebida a um infeliz que morria de sede, nenhuma criatura com toda
certeza negará os próprios serviços àqueles que abandonaram tudo para
escolherem o Criador de todas as coisas.
São Boaventura
(cont)
(Revisão da versão
portuguesa por AMA)