A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO XXIV
…/3
Mas por sopro de Deus, dizem, entende-se o que sai da boca de Deus e, se o
tomam os pela alma, segue-se que esta forma um a só e mesma substância com
aquela sabedoria que diz:
Eu saí da boca do Altíssimo.[i]
Na verdade, a sabedoria não diz que é um sopro de Deus, mas que saiu da sua
boca. Assim como nós podemos, quando sopramos, expelir um sopro sem o formarmos
da nossa natureza de homens, mas recebendo pela inspiração e expelindo pela
expiração o ar que nos envolve, — assim também Deus omnipotente pode emitir um
sopro, tirado, não da sua natureza nem de uma criatura existente, mas de nada, e fazê-lo
passar para o corpo do homem , inspirando-o nele ou, com o muito bem foi dito
pela Escritura, insuflando-o — sopro incorpóreo emitido pelo Incorpóreo, mas
mutável vindo do Imutável porque é criatura que vem do Criador. Todavia, para
que os que querem falar da Escritura sem terem em conta a sua m aneira de dizer
aprendam que ela não faz sair da boca de Deus apenas o que é uma mesma natureza
com ele, que leiam ou ouçam a palavra escrita de Deus:
Porque és momo, nem quente nem frio, vou lançar-te
da minha boca.[ii]
Nenhum motivo há, portanto, para resistirmos ao Apóstolo que tão claramente
fala quando, ao distinguir o corpo espiritual do corpo animal — aquele que nós
teremos mais tarde e o que hoje temos —, diz:
Semeia-se um corpo animal — ressuscita um corpo espiritual; se
há um corpo animal, também há um corpo espiritual; está assim escrito: o
primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente. O último Adão em espírito
vivificante.
Mas, o primeiro não foi o espiritual, mas o animal; depois é que
vem o que é espiritual.
O primeiro homem, saído da terra, é terrestre, o segundo é do céu.
Tal como é o terrestre, assim são também os terrestres; e assim como é o
celeste, assim também são os celestes. E assim como nos
revestimos da imagem do terrestre, revistamo-nos também da imagem d’Aquele que
é do céu.[iii]
Já acima falámos de todas estas palavras do Apóstolo.
Portanto, o corpo animal — em que diz o Apóstolo ter sido feito Adão, o
primeiro homem — foi criado em tal estado que, não estando de todo isento da morte,
de facto não viria a morrer se não pecasse: é que aquele que o espírito
vivificante tom ar espiritual e imortal — esse ficará de todo livre da morte. Da mesma forma a alma foi criada imortal e — embora
morta pelo pecado que a priva de uma certa vida, isto é, da vida do Espírito de
Deus com a qual podia viver na sabedoria e na beatitude — conserva, todavia, a
sua vida própria, miserável embora, porque foi criada imortal. Da mesma forma,
ainda, também os anjos desertores: embora sob certo aspecto estejam mortos
porque, ao pecarem, abandonaram a fonte da vida que é Deus, se tivessem bebido dessa
fonte teriam podido viver na sabedoria e na beatitude, — todavia, não puderam
morrer, no sentido de que não deixaram de viver e de sentir, porque foram
criados imortais. E assim, depois do juízo final, serão precipitados na segunda
morte, sem que nem lá cesse a vida, pois, quando estiverem nos tormentos, não
deixarão também de sentir. Mas os homens que pertencem à graça de Deus,
concidadãos dos santos anjos que se mantêm na vida bem-aventurada, de tal forma
serão revestidos de corpos espirituais que não mais pecarão nem morrerão; e a imortalidade
de que serão revestidos, como a dos anjos, não poderá ser-lhes arrebatada pelo
pecado. Permanece a natureza da carne, é certo, mas sem resquícios de
corruptibilidade nem de entorpecimento carnal.
Segue-se, porém, uma questão que, com a ajuda do Senhor Deus da verdade, tem
que ser tratada e resolvida. Se a paixão dos membros desobedientes nasceu nos
primeiros homens do pecado de desobediência, quando a graça divina os
abandonou;
se, em seguida, abriram os olhos para a sua nudez, isto é, repararam nela com
mais curiosidade;
se, por causa do impudico movimento que resistia à liberdade da vontade,
taparam as regiões pudendas:
— como é que teriam gerado filhos se se mantivessem sem pecado tal como tinham
sido criados?
Mas porque é preciso fechar este livro e porque tamanha questão não pode ser
tratada em poucas palavras, será mais conveniente deixar o seu exame para o
livro que Se segue.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[iii] I
Corint., XV, 44-50.