São Josemaria Escrivá
Cristo que passa
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A concupiscência da carne
não é só a tendência desordenada dos sentidos em geral nem a apetência sexual,
que deve ser ordenada, mas que não é má em si mesma, pois é uma nobre realidade
humana santificável.
Por isso, nunca falo de
impureza mas de pureza, porque a todos se dirigem as palavras de Cristo:
bem-aventurados os limpos de coração porque verão a Deus.
Por vocação divina, alguns
terão de viver essa pureza no matrimónio; outros, pelo contrário, renunciarão
aos amores humanos, para corresponderem única e apaixonadamente ao amor de
Deus.
Nem uns nem outros devem
ser escravos da sensualidade, mas senhores do seu corpo e do seu coração para
os poderem dar sacrificadamente aos demais.
Ao tratar da virtude da
pureza, costumo acrescentar o qualificativo de santa.
A pureza cristã, a santa
pureza, não é o orgulho de sentir-se puro, não contaminado; é saber que temos
os pés de barro, embora a graça de Deus nos livre dia a dia das ciladas do
inimigo.
Considero uma deformação
do cristianismo a insistência de algumas pessoas em escrever ou pregar quase
exclusivamente sobre esta matéria, esquecendo outras virtudes que são capitais
para o cristão e, em geral, para a convivência entre os homens.
A santa pureza não é a
única nem a principal virtude cristã; contudo, é indispensável para perseverar
no esforço diário da nossa santificação e sem ela não é possível dedicar-se ao
apostolado.
A pureza é consequência do
amor com que entregámos ao Senhor a alma e o corpo, as potências e os sentidos.
Não é uma negação; é uma
alegre afirmação.
Dizia que a concupiscência
da carne não se reduz exclusivamente à desordem da sensualidade; também se
traduz no comodismo, na falta de vibração que incita a procurar o que é mais
fácil, o mais agradável, o caminho aparentemente mais curto, por vezes à custa
de ceder na fidelidade a Deus.
Comportar-se assim seria
como abandonar-se ao império duma daquelas leis - a do pecado - contra as quais
nos previne S. Paulo: Eu encontro, pois, esta lei em mim: quando quero fazer o
bem, o mal está junto de mim; porque me deleito na lei de Deus, segundo o homem
interior; mas vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei do meu espírito
e que me faz escravo da lei do pecado, que está nos meus membros. Infelix ego homo! Infeliz de mim! Quem
me livrará deste corpo de morte?
Ouvi o que responde o
apóstolo: a graça de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor.
Podemos e devemos lutar
contra a concupiscência da carne, porque, se formos humildes, sempre nos será
concedida a graça do Senhor.
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O outro inimigo, escreve
S. João, é a concupiscência dos olhos, uma avareza de fundo que nos leva a
valorizar apenas o que se pode tocar.
Os olhos ficam como que
pegados às coisas terrenas e, por isso mesmo, não sabem descobrir as realidades
sobrenaturais.
Podemos, portanto,
socorrer-nos desta expressão da Sagrada Escritura para nos referirmos à avareza
dos bens materiais e, além disso, àquela deformação que nos leva a observar o
que nos rodeia - os outros, as circunstâncias da nossa vida e do nosso tempo -
só com visão humana.
Os olhos da alma
embotam-se; a razão crê-se auto-suficiente para compreender todas as coisas,
prescindindo de Deus.
É uma tentação subtil, que
se apoia na dignidade da inteligência, da inteligência que o nosso Pai, Deus,
deu ao homem para que O conheça e O ame livremente.
Arrastada por essa
tentação, a inteligência humana considera-se o centro do universo,
entusiasma-se de novo com a falsa promessa da serpente, sereis como deuses, e,
enchendo-se de amor por si mesma, volta as costas ao amor de Deus.
Deste modo, a nossa
existência pode entregar-se sem condições nas mãos do terceiro inimigo, a superbia vitae.
Não se trata simplesmente
dos pensamentos efémeros de vaidade ou de amor-próprio; é uma presunção
generalizada.
Não nos enganemos, porque
este é o pior dos males, a raiz de todos os extravios.
A luta contra a soberba
há-de ser constante, pois não se disse já, dum modo tão gráfico, que essa
paixão só morre um dia depois da morte da pessoa?
É a altivez do fariseu, a
quem Deus se mostra renitente em justificar por encontrar nele uma barreira de
auto-suficiência.
É a arrogância que conduz
a desprezar os outros homens, a dominá-los, a maltratá-los, porque, onde houver
soberba aí haverá também ofensa e desonra.
7
A
misericórdia de Deus
Começa hoje o tempo do
Advento e é bom que tenhamos considerado as insídias destes inimigos da alma: a
desordem da sensualidade e a leviandade; o desatino da razão que se opõe ao
Senhor; a presunção altaneira, esterilizadora do amor a Deus e às criaturas.
Todas estas disposições de
ânimo são obstáculos certos e o seu poder perturbador é grande.
Por isso a liturgia
faz-nos implorar a misericórdia divina: a ti elevo a minha alma, Senhor, meu Deus.
E em ti confio; não seja
eu confundido!
Não riam de mim os meus
inimigos, rezamos no intróito.
E na antífona do ofertório
iremos repetir: espero em ti, que eu não seja confundido!
Agora que se aproxima o
tempo da salvação, dá gosto ouvir dos lábios de S. Paulo: depois de Deus, Nosso
Salvador, ter manifestado a sua benignidade e o seu amor para com os homens,
libertou-nos, não pelas obras de justiça que tivéssemos feito, mas por sua
misericórdia.
Se lerdes as Santas
Escrituras, descobrireis constantemente a presença da misericórdia de Deus:
enche a terra, estende-se a todos os seus filhos, super omnem carnem; cerca-nos, antecede-nos, multiplica-se para nos
ajudar e foi continuamente confirmada.
Deus tem-nos presente na
sua misericórdia, ao ocupar-se de nós como Pai amoroso.
É uma misericórdia suave,
agradável, como a nuvem que se desfaz em chuva no tempo da seca.
Jesus Cristo resume e
compendia toda a história da misericórdia divina: Bem-aventurados os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
E, noutra ocasião: Sede
pois misericordiosos como também vosso Pai é misericordioso.
Ficaram também muito
gravadas em nós, entre muitas outras cenas do Evangelho, a clemência com a
mulher adúltera, a parábola do filho pródigo, a da ovelha perdida, a do devedor
perdoado, a ressurreição do filho da viúva de Naim.
Quantas razões de justiça
para explicar este grande prodígio!
Era o filho único daquela
pobre viúva; era ele quem dava sentido à sua vida; só ele poderia ajudá-la na
sua velhice!
Mas Cristo não faz o
milagre por justiça; fá-lo por compaixão, porque interiormente se comove
perante a dor humana.
Que segurança deve
produzir-nos a comiseração do Senhor!
Se ele clamar por mim,
ouvi-lo-ei, porque sou misericordioso.
É um convite, uma promessa
que não deixará de cumprir. Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da
graça a fim de alcançar misericórdia e o auxílio da graça, no tempo oportuno.
Os inimigos da nossa
santificação nada poderão, porque essa misericórdia de Deus nos defende.
E se caímos por nossa
culpa e da nossa fraqueza, o Senhor socorre-nos e levanta-nos.
Tinhas aprendido a afastar
a negligência, a afastar de ti a arrogância, a adquirir piedade, a não ser
prisioneiro das questões mundanas, a não preferir o caduco ao eterno.
Mas, como a debilidade
humana não pode manter o passo decidido num mundo resvaladiço, o bom médico
indicou-te também os remédios contra a desorientação e o juiz misericordioso
não te negou a esperança do perdão.
8
Correspondência
humana
É neste clima da
misericórdia de Deus que se desenvolve a existência do cristão.
Este é o âmbito do seu
esforço por se comportar como filho do Pai.
E quais são os principais
meios para conseguirmos que a vocação se mantenha firme?
Vou dizer-te hoje dois,
que são dois eixos vivos da conduta cristã: a vida interior e a formação
doutrinal, o conhecimento profundo da nossa fé.
Vida interior, em primeiro
lugar.
Há ainda tão pouca gente
que entenda isto!
Ao ouvir falar de vida interior,
pensa-se logo na obscuridade do templo, quando não no ambiente abafado de
algumas sacristias. Estou há mais de um quarto de século a dizer que não se
trata disso. Eu falo da vida interior de cristãos normais e correntes, que
habitualmente se encontram em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no
trabalho, na família e nos momentos de diversão estão unidos a Jesus todo o
dia.
E o que é isto senão vida
de oração contínua?
Não é verdade que
compreendeste a necessidade de ser alma de oração, numa intimidade com Deus que
te leva a endeusar-te?
Esta é a fé cristã e assim
o compreenderam sempre as almas de oração. Torna-se Deus aquele homem, escreve
Clemente de Alexandria, porque quer o mesmo que Deus quer.
A princípio custará.
É preciso esforçarmo-nos
por nos dirigir ao Senhor, por lhe agradecermos a sua piedade paternal e
concreta para connosco.
A pouco e pouco o amor de
Deus torna-se palpável - embora isto não seja coisa de sentimentos - como uma
estocada na alma.
É Cristo que nos persegue
amorosamente: Eis que estou à porta e chamo.
Como anda a tua vida de
oração?
Não sentes às vezes,
durante o dia, desejos de falar mais devagar com Ele?
Não Lhe dizes: logo vou
contar-te isto e aquilo; logo vou conversar sobre isso contigo?
Nos momentos dedicados
expressamente a esse colóquio com o Senhor o coração expande-se, a vontade
fortalece-se, a inteligência - ajudada pela graça - enche a realidade humana
com a realidade sobrenatural.
E, como fruto, sairão
sempre propósitos claros, práticos, de melhorares a tua conduta, de tratares
delicadamente, com caridade, todos os homens, de te empenhares a fundo - com o
empenho dos bons desportistas - nesta luta cristã de amor e de paz.
A oração torna-se contínua
como o bater do coração, como as pulsações. Sem essa presença de Deus não há
vida contemplativa.
E sem vida contemplativa
de pouco vale trabalhar por Cristo, porque em vão se esforçam os que constroem
se Deus não sustenta a casa.
(cont)