Leitura espiritual
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A Cidade de Deus |
Vol. 1
LIVRO
III
CAPÍTULO
XXI
Quão
ingrata foi a cidade de Roma para com Cipião, seu libertador! Costumes que ela
praticava no tempo em que Salústio a descrevia como a melhor.
Ora, entre a segunda e a última guerra contra
os Cartagineses, quando, como declara Salústio, os Romanos viviam nos melhores
costumes e na maior concórdia (aliás ponho de parte muitos acontecimentos,
pensando nos limites do trabalho empreendido) — numa época de óptimos costumes
e da maior concórdia, Cipião, o libertador de Roma e da Itália, que de uma
forma gloriosa e admirável pôs termo à Segunda Guerra Púnica, tão horrível, tão
destruidora, tão perigosa — Cipião, o vencedor de Aníbal e domador de Cartago,
cuja vida nos é descrita como votada aos deuses desde a adolescência e
alimentada nos templos, foi vítima das acusações dos inimigos e exilado da
pátria que tinha salvo e libertado com coragem, e passou e acabou o resto da
vida na cidade de Linterno, não mostrando o menor desejo, depois do seu insigne
triunfo, de rever Roma, chegando mesmo, diz-se, a ordenar que na sua ingrata
pátria não lhe prestassem honras fúnebres [i]. Desde
então, por intermédio do procônsul Gneu Mânlio, vencedor dos Galo-gregos, pela primeira
vez, o luxo asiático, pior que todo o inimigo, se introduziu em Roma.
Efectivamente foi então que apareceram os leitos de bronze, os tapetes
preciosos; foi então que nos banquetes se introduziram as tangedoras de cítara
e outras licenciosas perversidades. Mas, por agora, propus-me falar dos males
que os homens suportam contra vontade e não dos que eles gostosamente criam. É
por isso que o caso que referi de Cipião, vítima dos seus inimigos e morrendo
longe da pátria por ele liberta, mais interessa à presente discussão, porque as
divindades romanas, de cujos templos ele afastou Aníbal, e que se veneram
unicamente com vista à felicidade terrena, não lhe retribuíram essa paga. Mas,
porque Salústio disse que os costumes desse tempo eram óptimos, julguei
conveniente lembrar a invasão do luxo asiático para fazer compreender que
Salústio louva essa época em comparação com outros tempos em que os costumes
foram os piores no meio de gravíssimas discórdias.
Foi então, isto é, entre a segunda e a
terceira guerra púnicas, que foi promulgada a Lei Vorónia proibindo que se
instituísse herdeira a mulher mesmo que fosse filha única. Ignoro o que se
poderá dizer ou pensar de mais iníquo que esta lei. Todavia, durante todo o
intervalo das duas guerras púnicas, a desgraça de Roma foi mais tolerável.
Apenas no exterior o exército era castigado por guerras, mas era compensado
pelas vitórias; no interior nenhumas discórdias grassavam como há pouco. Mas,
durante a última guerra púnica — em que, num só ataque do segundo Cipião, que
por isso também recebeu o cognome de Africano, a rival do Império Romano foi
destruída de raiz — a República Romana foi esmagada por tal cúmulo de males
que, devido à demasiada corrupção dos costumes resultante da prosperidade e
segurança, Cartago fez-lhe então mais mal com a sua rápida queda do que antes
com a sua longa hostilidade.
Durante todo este tempo até César Augusto —
que parece ter tirado por completo a liberdade aos Romanos (liberdade essa que
eles próprios já não consideravam gloriosa mas facciosa, funesta, debilitada,
lânguida) para concentrar tudo no arbítrio próprio de um rei e restaurar,
regenerar a República Romana debilitada por doença e por velhice — durante todo
este tempo omitirei os repetidos desastres militares devido ora a uma ora a
outra causa e o tratado maculado de repulsiva ignomínia concluído com Numância.
Os frangos tinham voado da gaiola — o que constituiu um mau presságio para o
cônsul Mancino, dizem; com o se, durante tantos anos em que esta pequena cidade
esteve sitiada, mantendo sob ameaça o exército romano e começando já a ser o
terror da República, a tivessem atacado os outros generais sob augúrios
diferentes!
CAPÍTULO
XXII
Édito
de Mitrídates ordenando que se matassem todos os cidadãos romanos que se
encontrassem na Ásia.
Disse que omitia esses acontecimentos;
todavia não calarei a ordem de Mitrídates, rei da Ásia, para que matassem num
só dia todo o cidadão romano que se encontrasse em qualquer parte da Ásia (e
grande número deles aí tratava dos seus negócios) — ordem que foi cumprida.
Quão digno de dó era aquele espectáculo! Subitamente, por toda a parte, onde
quer que se encontrasse um — no campo, no caminho, na cidade; em casa, na
aldeia, na praça; no templo, no leito, à mesa — é inopinada e impiedosamente
trucidado! Que gemidos dos que morriam! Que lágrimas dos que assistiam, talvez
até dos que feriam! Que dura obrigação a dos hospedeiros, não só de verem estes
nefandos morticínios em suas casas, mas até de os cometerem! Os seus rostos
despojam-se de repente da sua grandiosa e sorridente humanidade, para, em plena
paz, cometerem um acto de guerra e desferirem, direi, mútuos golpes: porque a
vítima era ferida no seu corpo e o assassino era-o na alma.
Será que todos estes tinham também desprezado
os augúrios? Não tinham eles deuses domésticos e públicos que consultassem
quando partiram de suas casas para esta viagem de onde não podiam voltar? Se
assim é, não têm, nesta questão, razão para se queixarem dos nossos tempos. De
há muito que os Romanos desprezam estas práticas.
CAPÍTULO
XXIII
Males
internos que agitaram a República Romana depois de terem sido precedidos de um
prodígio: a raiva de que foram atacados os animais domésticos.
Mas recordemos já, com rapidez, aqueles males
que foram tanto mais deploráveis quanto mais internos: as discórdias civis, ou
antes incivis, que já não foram sedições mas verdadeiras guerras urbanas; em
que tanto sangue foi derramado; em que as paixões dos partidos se
desencadearam, não já por dissensões de assembleia nem por recíprocas
invectivas de toda a espécie, mas abertamente pelo ferro e pelas armas —
guerras sociais, guerras servis, guerras civis. Quanto sangue romano
derramaram! Quantas devastações e deserções fizeram em Itália!
Efectivamente, ainda antes que a guerra
social levantasse o Lácio contra Roma, todos os animais sujeitos aos serviços
humanos — cães, cavalos, burros, bois e outros animais que estavam sob o
domínio dos homens, tomaram- -se subitamente ferozes, esqueceram a mansidão
doméstica e, saindo dos estábulos, vagueavam soltos, de ninguém se deixavam
aproximar, nem mesmo dos donos, sem um desfecho fatal ou sem perigo para o
audacioso que de perto lhes fosse no encalço. De que mal foi sinal — se é que
foi um sinal — isto que foi tamanho mal mesmo sem ser sinal? Se isto tivesse
acontecido nos nossos tempos, vê-los-íamos mais raivosos do que aqueles seus
animais contra eles.
CAPÍTULO
XXIV
Conflitos
civis provocados pelas sedições dos Gracos.
O
início dos males civis foram as sedições dos Gracos provocadas pelas leis
agrárias. Queriam, na verdade, distribuir pelo povo os campos que a nobreza
possuía injustamente. Mas ousar extirpar uma já vetusta iniquidade revelou-se
tarefa não só muito perigosa como extremamente perniciosa, como os factos o
demonstraram. Que carnificina a cometida quando o Graco mais velho foi
assassinado! E também a cometida quando, não muito tempo depois, mataram o
outro, seu irmão! Não era em nome das leis e por ordem das autoridades que
nobres e plebeus se matavam; era pelas turbas em conflitos armados. Depois do
assassínio do segundo Graco, o cônsul Lúcio Opímio, que, na cidade, contra ele
tinha pegado em armas e, depois de o ter a ele e aos seus partidários atacado e
abatido, fez uma ingente matança de cidadãos, — perseguiu o resto do partido
por via judiciária e, após inquérito, imolou, diz-se, três mil homens.
Disto se pode ver quão grande multidão de
mortos pôde custar o desordenado choque das armas quando uma instrução
judiciária dita regular pôde fazer tantas vítimas. O assassino de Graco vendeu
a cabeça deste ao cônsul a peso de ouro. Tinham feito este contrato antes da
matança. Nela foi também morto com seus filhos o consular Marco Fúlvio.
CAPÍTULO
XXV
O
templo da Concórdia erigido por um senatus-consulto no sítio em que tiveram
lugar as sedições e as matanças.
Por senatus-consulto, sem dúvida oportuno,
ordenou- -se que, no próprio lugar do mortífero tumulto em que tombaram tantos
cidadãos de todas as ordens, se levantasse um templo à Concórdia para que este,
testemunha do castigo dos Gracos, ferisse os olhos dos oradores e lhes
impressionasse a memória. Mas que outra coisa não foi senão uma zombaria dos
deuses a construção de um templo em honra de uma deusa que, se estivesse
presente, não teria permitido a ruína da cidade, dilacerada por tantas
dissensões? A não ser talvez que a deusa Concórdia, ré de tal crime porque
deixou ao abandono os ânimos dos cidadãos, merecia ser encerrada naquele templo
como que num cárcere! Porque é que, caso quisessem estar de acordo com os
acontecimentos, não levantaram antes um templo à Discórdia? Haverá alguma razão
para que a Concórdia seja uma deusa e o não seja a Discórdia, aliás conforme a
distinção de Labeão: a primeira seria uma deusa boa e a segunda uma deusa má?
Parece que este não apresentou senão esta razão — ter notado que em Roma foi
erigido um templo em honra da Febre e outro em honra da Saúde. De igual modo,
portanto, se deveria ter erigido um em honra da Discórdia e outro em honra da
Concórdia. Assim foi perigosamente que os Romanos decidiram viver sob a férula
de uma tão má deusa — e se esqueceram de que a sua cólera deu origem à destruição
de Tróia. Efectivamente, porque não fora convidada para o banquete dos deuses,
imaginou a tramoia de lançar a maçã de ouro para pôr à briga as três deusas.
Daí a rixa entre as três deusas, a vitória de Vénus, o rapto de Helena e a
destruição de Tróia. Foi por isso que — talvez indignada porque não mereceu,
como os demais deuses, ter na Urbe um templo — perturbava já a cidade com tão
graves tumultos. Quanto mais terrível não deve ter sido a sua ira quando, no
próprio lugar da carnificina, isto é, no lugar do seu próprio trabalho, viu
levantar-se um templo em honra da sua rival!
Os doutos e sapientes azedam-se quando nos
rimos destas fatuidades. Todavia, os adoradores destas boas e más divindades
não escapam a este dilema da Concórdia e da Discórdia: quer porque puseram de
parte o culto destas duas deusas, preferindo o culto de Febre e de Belona, às
quais outrora dedicaram santuários, quer porque também àquelas prestaram culto
mas a Concórdia abandonou-os e a Discórdia vinga-se arrastando-os à guerra
civil.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Segundo
a tradição, Cipião teria mandado gravar na pedra tumular, sob a qual ficou a
jazer o seu corpo, a seguinte inscrição: Ingrata patria ossa mea non possidebis
— Ingrata pátria, não possuirás os meus ossos.