DE MAGISTRO
(DO MESTRE)
CAPÍTULO II
O
HOMEM MOSTRA O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS SÓ PELAS PALAVRAS
…/2
AGOSTINHO
– Que faremos então?
Poderemos afirmar que esta palavra (nihil),
mais do que a própria coisa, que não tem existência em si, significa aquele
estado da alma que se gera quando não se vê a coisa e, no entanto, percebe-se
ou se pensa ter percebido que a coisa não existe?
ADEODATO
– É exactamente isso que eu
procurava explicar.
AGOSTINHO
– Seja lá como for, vamos em
frente, para não cairmos no maior absurdo de todos.
ADEODATO
– Qual?
AGOSTINHO
– Que “nada” nos detenha e que, no entanto, a nossa conversa fique parada.
ADEODATO
– De facto é ridículo e,
mesmo não atinando como isso pode acontecer, vejo claramente que já ocorreu.
AGOSTINHO
– Se Deus quiser, no momento
oportuno compreenderemos melhor este género de absurdo; agora volta àquele
verso e procura mostrar, conforme o teu entendimento, o que significam as
demais palavras.
ADEODATO
– A terceira, “ex”, é uma preposição, que poderíamos
substituir por “de”.
AGOSTINHO
– Vê, não estou pedindo que
troques uma palavra conhecidíssima por outra igualmente conhecida, com o mesmo
significado, suposto que signifique o mesmo; contudo, por enquanto, admitamos
que seja assim. Certamente, se o poeta, no lugar de dizer “ex tanta urbe”, e eu indagasse o que significa “de”, responderias “ex”, sendo que estas duas palavras, isto
é, sinais, têm – como tu crês – o mesmo significado; eu, porém, busco esta
mesma coisa, não sei se una e idêntica, que tais sinais significam.
ADEODATO
– Parece-me que signifique a
separação de algo do lugar em que estava contido e ao qual se pensa pertencer;
quer porque essa coisa já não exista, como acontece neste verso, onde sem existir
mais a cidade (de Tróia) subsistiram dela alguns troianos, quer porque
permaneça, como ocorre ao afirmarmos haver na África uns comerciantes vindos da
cidade de Roma.
AGOSTINHO
– Para admitir que é assim
que se passa, não irei enumerar todas as objeções que se poderiam apresentar a
essa tua regra; mas facilmente podes perceber que explicaste palavras com
outras palavras, isto é, sinais com outros sinais, coisas conhecidíssimas com
outras também conhecidas; porém gostaria que, se te for possível, me mostrasses
as coisas em si, de que tais palavras são os sinais.
CAPÍTULO III
SE
É POSSÍVEL MOSTRAR ALGUMA COISA SEM O EMPREGO DE UM SINAL
ADEODATO
– É bem estranho que não
saibas, ou melhor, que simules não saber, que não é possível obter de mim uma
resposta satisfatória ao teu desejo; pelo facto de estarmos conversando, simplesmente
não podemos responder senão com palavras. Todavia, indagas de mim coisas que de
modo nenhum podem ser consideradas palavras; e, no entanto, também sobre essas
tu me interrogas com palavras. Começa tu a interrogar-me sem palavras, para que
depois eu te possa responder à altura.
AGOSTINHO
– Admito que tens razão;
contudo, se te perguntasse o significado dessas três sílabas: “paries” (parede), creio que poderias
apontar-me com o dedo, para que eu visse a coisa em si, de que esta palavra de
três sílabas é o sinal, demonstrando-a e indicando-a tu mesmo, sem necessitar
de palavra alguma.
ADEODATO
– Certamente que se pode
fazê-lo, mas só com aqueles nomes que significam corpos e desde que tais corpos
estejam presentes.
AGOSTINHO
– Mas à cor, talvez, podemos
chamar corpo, ou, antes, uma qualidade do corpo?
ADEODATO
– Uma qualidade.
AGOSTINHO
– Com que, então, também a
cor se pode apontar com o dedo? Ou ainda acrescentas aos corpos as suas
qualidades, de modo que elas também possam ser demonstradas sem palavras, desde
que presentes?
ADEODATO
– Eu, ao falar dos corpos,
quis significar tudo o que é corpóreo, isto é, tudo o que nos corpos se
percebe.
AGOSTINHO
– Considera, porém, se mesmo
nisso não terás de abrir alguma excepção.
ADEODATO
– A advertência é justa; de facto,
não deveria dizer todas as coisas corpóreas, mas todas as coisas visíveis.
Admito que o som, o cheiro, o sabor, a gravidade, o calor e muitas outras
coisas que recaem sob os outros sentidos, embora não se possam perceber sem que
estejam associadas aos corpos, e, portanto, a estes dizem respeito, não se
podem, todavia, apontar com o dedo.
AGOSTINHO
– Diz-me, nunca viste alguém
conversar com os surdos por gestos, e os próprios surdos entre si também por
gestos, perguntam, respondem, ensinam ou indicam tudo o que querem, ou quase
tudo? Se é assim, então podemos indicar sem palavras não as coisas visíveis,
mas também os sons, os sabores e as outras coisas semelhantes. Também os
histriões, nos teatros, expõem sem palavras e interpretam peças inteiras, na
maioria das vezes através de mímica.
ADEODATO
– Nada tenho a opor-te, a
não ser aquele “ex” (de), não só eu,
mas nem mesmo o melhor dos histriões poderia demonstrar-te, sem palavras, o que
significa.
AGOSTINHO
– Talvez isto seja verdade,
mas vamos supor que ele possa; não duvidas certamente, como creio, que,
qualquer que seja o gestual que adopte para tentar demonstrar a coisa que é significada
por esta palavra, não será a coisa em si mesma, porém no seu sinal. Por isso, ele
também terá indicado, se não uma palavra com outra palavra, pelo menos um sinal
com outro sinal; assim, este monossílabo “ex”
e aquele seu gesto significarão a mesma coisa que eu pedi que me demonstrasses
sem sinais.
ADEODATO
– Mas, rogo-te, como é possível
o que tu estás pedindo?
AGOSTINHO
– Do mesmo modo que o foi
para a parede.
ADEODATO
– Mas também esta, pelo
desenvolvimento do nosso raciocínio, não pode ser indicada sem sinal. Pois o acto
de apontar o dedo certamente não é a parede em si, mas apenas um dos possíveis
sinais, por meio do qual a parede pode ser observada. Não vejo, portanto, nada
que possa ser indicado sem sinais.
AGOSTINHO
– Se, porém, te perguntasse
o que é caminhar, e tu te levantasses e fizesses aquela acção, não usarias da
própria coisa para ensinar-me, em vez de usar palavras ou outros sinais?
ADEODATO
– Admito que assim é, e
tenho pejo de não ter observado coisa tão evidente, que me traz à memória
milhares de coisas, indicativas por si mesmas, e não pelos sinais com que as mostramos,
como sejam: comer, beber, estar sentado, ficar de pé, gritar e inúmeras coisas.
AGOSTINHO
– E diz-me então: se eu
desconhecesse o significado da palavra e te perguntasse, enquanto caminhas, o
que é caminhar, como mo explicaria?
ADEODATO
– Continuaria o mesmo acto
de caminhar, mas um pouco mais depressa, para que a novidade introduzida
despertasse a atenção; e, todavia, não teria feito coisa diversa do que pretendia
te mostrar.
AGOSTINHO
– Não sabes, pois, que uma
coisa é caminhar e outra é andar depressa?
Ora, caminhar não é o mesmo
que andar depressa, e quem anda depressa, não quer dizer que caminhe: ainda
mais que podemos meter pressa no ler, no escrever, e em muitíssimas outras coisas.
Por isso, se após a minha indagação fizesses mais depressa o que fazia antes,
eu seria induzido a crer que caminhar não é outra coisa do que se apressar, uma
vez que a novidade introduzida foi a pressa, e eu com isto seria levado a
engano.
ADEODATO
– Confesso que não é
possível prescindir de sinais, se formos inquiridos no curso da acção; pois, se
nada for acrescentado à acção que estamos realizando, o nosso interlocutor
poderá supor que não queremos responder-lhe, ignorando-o, continuamos a nossa acção.
Mas se alguém nos indagar de coisas que podemos fazer, não enquanto as fazemos,
podemos mostrar-lhe a própria coisa fazendo-a, antes que com um sinal, em
resposta ao que ele pergunta. A não ser que ele me pergunte, enquanto falo, o
que é falar: porque qualquer coisa que lhe disser para lhe explicar isso, sempre
o farei falando; e falarei para ensiná-lo até que lhe fique perfeitamente claro
o que desejava saber, sem afastar-me da própria coisa que desejava demonstrar,
nem procurar sinais com que demonstrá-la.
(cont)
(Revisão
de versão portuguesa por ama)