Jesus Cristo o Santo de Deus
CAPÍTULO II
JESUS CRISTO, O HOMEM NOVO
1. Jesus, homem «novo».
Dizia
eu que o Novo Testamento não está interessado tanto em afirmar que Jesus é um
«homem verdadeiro», mas sim que é o «homem novo».
Ele
é definido por S. Paulo «o último Adão» (eschatos),
isto é, o «homem definitivo», não passando o primeiro Adão de uma espécie de
esboço e de realização imperfeita [i].
Cristo
revelou o homem novo, aquele que foi «criado segundo Deus na justiça e na
santidade verdadeira» [ii].
A
«novidade» do homem novo não consiste, como se vê, em qualquer novo componente
que Ele possa a mais que o homem precedente, mas consiste, isso sim, na
santidade.
Cristo
é o homem novo porque é o Santo, o justo, o homem à imagem de Deus. Todavia,
trata-se de uma novidade não acidental, mas essencial que não diz respeito
somente ao modo de agir do homem, mas também ao seu ser.
Que
é de facto o homem?
Para
o pensamento profano e em especial para o pensamento grego, ele é
essencialmente uma natureza, um ser
definido com base naquilo que possui por nascimento:
«Um
animal racional», seja qual for o modo como se queira definir esta natureza.
Porém,
para a Bíblia, o homem não é somente natureza,
mas em medida igual é também vocação;
ele é também aquilo a que é chamado a tornar-se, mediante o exercício da sua liberdade na obediência a Deus.
Os
Padres exprimiam isto fazendo a distinção entre o conceito de «imagem» e o de
«semelhança» [iii].
O
homem é por natureza ou por nascimento, «à imagem» de Deus, mas só se torna «à semelhança»
de Deus no decorrer da sua vida, através do esforço em se assemelhar a Deus,
através da obediência. Pelo facto de existirmos somos à imagem de Deus, mas
pelo facto de obedecermos somos também à Sua semelhança, porque queremos as
coisas como Ele quer.
«Na
obediência – dizia um antigo Padre do deserto – exerce-se a semelhança com Deus
e não só ser à Sua imagem» [iv].
Devemos
dizer, entre parênteses, que este modo de definir o homem com base na sua vocação, mais do que com base na sua natureza, é partilhado pelo pensamento
contemporâneo, mesmo que nele se dê pouco relevo à dimensão, essencial para a
Bíblia, da obediência, e que fique
somente de pé a da liberdade, pelo
que, em vez de vocação se fala de projecto
[v].
Por
isso também sob este ponto de vista a resposta mais eficaz às instâncias do
pensamento moderno não vem tanto da insistência sobre Cristo «verdadeiro
homem», entendido no antigo sentido de «naturalmente completo», mas da
insistência sobre Cristo «homem novo», revelador do projecto definitivo do
homem.
O
Verbo de Deus não se limita, portanto, a fazer-se homem como se existisse já um
modelo ou um molde de um homem belo e completo, dentro do qual, por assim
dizer, Ele Se submete. Ele revela também o que é o homem; com Ele aparece o
próprio modelo porque Ele é verdadeiramente a perfeita «imagem de Deus» [vi].
O
facto de sermos chamados a tornarmo-nos «conformes à imagem do Seu Filho» [vii]
é bem mais relevante do que o Jesus ter sido chamado a tronar-se conforme à
nossa imagem.
O
Concílio Vaticano II diz bem:
«Na
realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece
verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro, isto
é, de Cristo Senhor, Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai
e do Seu amor, revela também o homem a si mesmo» [viii]
«Deus
fez-se homem – gostavam de repetir os Padres da Igreja – para que o homem se
tornasse Deus».
Ao
lado deste axioma devemos hoje colocar este outro: Deus fez-se plenamente homem
para que o homem se tornasse homem!
Plenamente
e autenticamente homem.
Portanto,
Jesus não é somente o homem que se assemelha a todos os outros homens, mas
também o homem ao qual todos os outros e devem assemelhar. Este «homem de
finitivo» é também, em certo sentido, o homem primitivo, se é verdade, como
diziam os Padres, que foi à imagem deste homem futuro – imagem da Imagem – que
Adão foi criado.
«Ele
fez homem – escreve Stº Ireneu – à imagem de Deus [ix].
A
imagem de Deus é o Filho de Deus [x], à imagem do qual foi feito o homem. [xi]
Tudo
isto constitui uma aplicação coerente da afirmação paulina segundo a qual
Cristo é «o Primogénito de todas as criaturas» [xii] e também da afirmação joanina do Verbo «por meio do qual
tudo foi feito» [xiii].
O
homem não tem, em Cristo, somente o modelo, mas também a sua «forma
substancial».
Como
acontece na feitura de uma estátua, a forma, ou o projecto, que no pensamento
precede a realização, impregna de si a matéria e o plasma, assim também Cristo,
arquétipo do homem, o molda e o configura a Si mesmo, definindo-lhe a
verdadeira natureza.
«Se
fosse possível existir - escreve Cabasillas – um artifício qualquer com que se
pudesse ver, com os próprios olhos, a alma do artista, veríamos nela, sem
matéria, a casa, a estátua ou qualquer outra obra [xiv].
Não
foi por qualquer «artifício», mas por revelação divina que João Paulo e outros
autores inspirados, «viram» a alma do Artista, de Deus, e descortinaram nela,
sem matéria, o homem ideal contido em Cristo. É agradável encontrar esta visão
patrística da relação entre o homem e Cristo, quase idêntica, num teólogo
moderno como K. Barth, porque isso demonstra que ela, mais do que ser
incompatível com modo de pensar moderno, é só incompatível com a incredulidade
moderna.
«O
homem – escreve Barth – é um ser humano enquanto é um só ser com Jesus, tem a
sua base na eleição divina e, por outro lado, enquanto é um só ser com Jesus, é
constituído pela escuta da Palavra de Deus» [xv].
Considerada
sob este prisma, a expressão «excepto no pecado» dita em referência a Jesus [xvi]
não aparece uma excepção à plena e definitiva humanidade como se Ele fosse em
tudo verdadeiro homem como nós, menos numa coisa, o pecado; como se o pecado
fosse um traço essencial e natural do homem.
Longe
de derrogar a plena humanidade de Cristo, este «excepto no pecado» constitui o
traço distintivo da Sua verdadeira humanidade, pois o pecado é a única
verdadeira «sobre-estrutura», a única componente espúria ao projecto divino do
homem. É surpreendente como se chegou ao ponto de considerar como a coisa mais
«humana» precisamente aquela que é a menos humana.
«A
perversidade humana chegou ao ponto de considerar homem aquele que é vencido
pela sensualidade, ao passo que não considera homem, aquele que a venceu.
Assim, não são homens os que venceram o mal, mas são-no os que são vencidos por
ele!» [xvii]
A
palavra «humano» chegou a significar mais aquilo que aproxima o homem dos
animais, que aqui que o distingue deles, como a inteligência, a vontade, a
consciência, a santidade.
Jesus
é, portanto, «verdadeiro» homem, não apesar
de o ser sem pecado, mas precisamente porque
é sem pecado.
São
Leão Magno, na famosa carta dogmática que inspirou a definição de Calcedónia e
que, para certos trechos, faz dela o melhor comentário, escrevia:
«Ele,
Deus verdadeiro, nasceu numa íntegra e perfeita natureza como verdadeiro homem,
completo de todas as prerrogativas, tanto divinas como humanas. Todavia,
dizendo «humanas» referindo-se àquelas coisas que o Criador no princípio
colocou e nós e posterior veio restaurar; ao passo que, no Salvador, não
existiu qualquer vestígio daquelas coisas que o Enganador acrescentou e que o
homem enganado acolheu. Não é preciso pensar que Ele, pelo facto de ter querido
compartilhar as nossas fraquezas, tivesse participado também nas nossas culpas.
Ele assumiu a condição de escravo, mas sem a contaminação do pecado; assim
enriqueceu o homem sem ter apoucado Deus» [xviii]
Por
este texto se vê como, revitalizando o dogma a partir da Sagrada Escritura, na
linha da Tradição, com o senso da Igreja, ele deixa de ser uma verdade arcaica,
incapaz de suster o assalto do pensamento moderno, «como se fosse uma muralha
em ruínas ou um recinto prestes a desabar»; pelo contrário, torna-se uma
verdade sempre nova e enérgica, que tem «o poder de abater as fortalezas,
destruindo os argumentos e todos os obstáculos que se levantam contra o
conhecimento de Deus» [xix].
Tinha
razão Kierkegaard quando dizia que «a teologia dogmática da Igreja é comum
castelo de fadas, onde repousam num sono profundo os príncipes e as mais
formosas princesas; basta somente acordá-los, para que se levantem em toda a
sua glória» [xx].
O
dogma de Cristo «verdadeiro homem» e «homem novo» tem a capacidade de originar
um autêntico safanão nas mentalidades.
Obriga-nos
a passa de um Cristo «medido» com o metro da nossa humanidade, para o Cristo
que julga a nossa humanidade; obriga-nos a passar do Cristo que é julgado pelos
filósofos e pela História, para o Cristo que julga os filósofos e a História.
«Não
foi Ele que, aceitando nascer e manifestar-se na Judeia, Se apresentou ao exame
da História; Ele que é o Examinador, e a Sua vida é o exame ao qual é submetida
não só a Sua geração, mas também todo o género humano» [xxi].
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
[i]
1Cor 15,45sss.; Rm 4,14
[iv] Diadoco de Fotica, Discursos Ascéticos, 4 (SCh 5 bis. Pp.
108sss
[v] «Projecto» é a categoria central com
que se trata do homem em «ser e tempo» de M. Heidegger em «O ser e o nada» de J. –P. Sartre
[xi] Stº.
Ireneu, Demonstração da Pregação
Apostólica, 22
[xiv] Cabasillas, Vida
em Cristo, V2 (PG 150,629)
[xv] K. Barth, Dogmática
Eclesiástica, 9,12 (CC 41,131sss
[xvii] Santo Agostinho, Sermo,
9,12 (CC 41,131sss
[xviii] São Leão Magno, Tomus
ad Flavianum, I 3 (PL. 54,757sss
[xx] S.
Kierkegaard, Diário, II, A, 110
[xxi] S.
Kierkegaard, Exercício do Cristianismo,
I, in Obras, op. Cit., p. 708