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Leitura Espiritual |
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO SEGUNDO
Desenvolvimento da Fé em Cristo nos
Artigos Cristológicos do Símbolo
5. "Subiu ao céu, onde está
sentado à direita de Deus Pai, todo-poderoso".
Falar da Ascensão, para a nossa geração
criticamente despertada por Bultmann, bem como tratar da descida aos infernos
denota revelar aquela visão do mundo em três andares a que se dá o nome de
"mítica" e que se considera definitivamente superada. "Em
cima" e "em baixo" o mundo continua sendo o mesmo mundo, regido em
toda a parte pelas mesmas leis físicas, acessível à pesquisa por todos os
lados. O mundo não tem pavimentos; os conceitos "em cima" e "em
baixo" são relativos, dependentes da posição do observador. Como não
existe ponto algum de referência absoluto (seguramente, a Terra já não
representa um tal ponto), não se pode mais falar de "em cima",
"em baixo" – ou de "à direita" ou "à esquerda"; o
Cosmos não apresenta nenhuma direcção determinada. Ninguém, hoje em dia,
contestará semelhantes convicções. Não existe um mundo disposto, localmente, em
três andares. Aliás, teria sido este o sentido das expressões da fé quando usou
os termos "descida" aos infernos, "subida" ao céu? Sem
dúvida o material fora fornecido por aquela concepção do mundo, o que, não
obstante, não é realmente o essencial. Os dois artigos exprimem, antes,
juntamente com a fé no Cristo histórico, a dimensão total da existência humana
que não abrange três pavimentos cósmicos, mas sim três dimensões metafísicas.
Neste sentido, é consequente a mentalidade, que se julga moderna, quando
elimina não só a ascensão e a descida aos infernos, mas também o mesmo Cristo
histórico, ou seja as três dimensões da existência humana; o que resta não pode
passar de pobre fantasma policromo, sobre o qual, com razão, ninguém mais pode
construir seriamente.
Mas, qual seria o sentido real das
nossas três dimensões? Anteriormente já constatamos que a descida aos infernos
propriamente não significa alguma profundidade exterior do cosmos, que é
perfeitamente dispensável: no texto fundamental – a súplica do Crucificado a
Deus que o abandonara falta qualquer referência cósmica. A frase concentra-nos o
olhar muito mais nas profundezas da existência humana, tocando o fundo da
morte, na zona da solidão intocável e do amor recusado, abrangendo assim a
dimensão do Inferno, trazendo-a em si como a sua própria possibilidade.
Inferno, existir na recusa definitiva do "ser-para" não é uma
determinação cosmográfica, mas uma dimensão da natureza humana, é o seu fundo,
até onde o inferno alcança. Mais que nunca sabemos hoje que a existência de
cada um alcança esta profundeza. Naturalmente, porque a humanidade, em última
análise, é "um homem", esse abismo não diz respeito apenas ao
indivíduo, mas interessa o corpo único do género humano que, por esta
razão, há-de suportar esse abismo, como um todo. Pode agora compreende-ser que
Cristo; o "novo Adão", tenha empreendido a tarefa de suportar essa
profundeza, não querendo dela isentar-se em sublime intangibilidade, mas também
só agora se torna possível avaliar a recusa total do amor, em toda a sua
imensidade.
Em contrapartida, a ascensão do Senhor
aponta para o outro extremo da existência humana dilatada para cima e para
baixo e infinitamente acima de si mesma. Como anti-pólo em relação ao
isolamento radical, à intocabilidade do amor recusado, essa existência é
portadora da possibilidade do contacto com todos os outros homens, do contacto
com o próprio amor divino, de modo que o "ser-homem" como que
encontra o seu lugar geométrico no seio da auto-existência de Deus.
Naturalmente essas duas possibilidades do homem, expressas nas palavras
"céu" e "inferno", são de espécie completamente diferente
do que o seriam as possibilidades humanas, e mesmo completamente diversas entre
si. O abismo a que chamamos Inferno, só o homem pode dá-lo a si mesmo. Aliás,
cumpre exprimi-lo mais fortemente: o inferno consiste formalmente no facto de o
homem não querer aceitar nada, de querer ser totalmente autárquico. É a
expressão do fechar-se no puramente próprio. Por conseguinte, a essência desse
abismo consiste em o homem não querer aceitar, em não querer tomar, preferindo
apoiar-se completamente em si mesmo, bastar-se a si mesmo. Atingindo a sua
última radicalidade, o homem torna-se o intocável, o solitário, o recusado.
Inferno é o "querer-ser-só-eu-mesmo", é aquilo que sucede quando o
homem se fecha naquilo que lhe é próprio. Inversamente a essência daquilo que
chamamos "céu" está na exclusiva possibilidade de se receber, assim
como alguém só é capaz de se dar o inferno. O céu, por natureza, é
não-auto-construído nem auto-construível; na linguagem escolástica diz-se que o
céu, como graça, é um donum indebitum et superadditum naturæ (uma dádiva
indevida e acrescentada à natureza). Somente enquanto amor realizado é que o
céu pode ser doado ao homem; mas o seu inferno é a solidão daquele que não quer
acreditar, que não se sujeita ao estado de mendigo, encolhendo-se para dentro
de si mesmo.
Somente agora se pode mostrar
completamente em que consiste o céu sob o ponto de vista cristão. Não o devemos
imaginar como um lugar eterno, supra-terreno, nem também como uma região eterna,
metafísica. Cumpre afirmar estarem as realidades "céu" e
"ascensão" inseparavelmente interligadas; e somente dentro desta
interdependência é que se torna claro o sentido cristológico, pessoal,
histórico, da mensagem cristã sobre o céu. Abordemos o assunto por outro
ângulo: céu não é o lugar que, antes da ascensão de Cristo, estivera fechado
por um decreto punitivo de Deus, para, a seguir, ser aberto, graças a uma
resolução igualmente positiva. A realidade "céu" surge antes de tudo
e principalmente mediante a união entre Deus e homem. O céu deve definir-se
como o tocar-se do ser que se chama homem com o ser que é Deus; este entrelaçar-se
de Deus e do homem concretizou-se definitivamente em Cristo através de sua
escalada pelo bios, pela morte até à vida nova. Portanto, céu é aquele
futuro do homem e do género humano que eles são incapazes de se conferirem a si
mesmos, que, por conseguinte, estar-lhes-ia fechado enquanto confiassem apenas
em si e que, pela primeira vez foi aberto naquele homem, cujo local de
existência era Deus e através do qual Deus penetrou na natureza humana.
Por esta razão, o céu sempre será mais
do que um destino individual; está em nexo com o "último Adão", com o
homem definitivo e, portanto, em nexo com o destino comum do homem. Ao meu ver,
poder-se-iam conseguir, a partir daqui, alguns importantes subsídios hermenêuticos,
que, naturalmente, neste contexto, poderão merecer apenas uma atenção muito
secundária. Um dos mais impressionantes factos do dado bíblico que pressionaram
e movimentaram profundamente a exegese e a teologia dos últimos 50 anos está na
chamada "escatologia próxima", ou seja, na mensagem de Cristo e dos
Apóstolos tem-se a impressão de estar sendo anunciado, como iminente, o fim do
mundo. Até se pode adiantar que a mensagem do fim próximo tenha sido,
aparentemente, o cerne da pregação de Cristo e da Igreja nascente. A figura de
Jesus, a sua morte e ressurreição são colocados em relação directa com esta ideia,
de modo tal que se nos torna estranha e incompreensível. Evidentemente não
podemos deter-nos aqui em minúcias sobre o extenso emaranhado de problemas que
aqui se tocam. Mas, por acaso, com as nossas últimas considerações não se
tornou claro o caminho por onde se há-de procurar uma resposta? Descrevemos
Ressurreição e Ascensão como o definitivo entrelaçamento do ser do homem com o
ser divino que põe ao alcance do homem a possibilidade da existência perpétua.
Tentamos compreender ambas as coisas como força do amor frente à morte e,
assim, como a decisiva "mutação" do homem e do cosmos, onde o limite
do bios é rompido e se cria um novo espaço vital. Se assim é, temos aí o
início da "escatologia", do fim do mundo. Com a superação do limite
da morte, abre-se a dimensão do futuro para o género humano; aliás, o seu
futuro, de facto, já começou. Assim também se torna claro de que modo a
esperança na imortalidade do indivíduo e a possibilidade da eternidade do género
humano se entrecruzam e como ambas se realizam em Cristo que tanto há de ser
denominado o "centro", como, bem entendido, o "fim" da
história.
Resta ainda um ponto a ser examinado em
nexo com a Ascensão do Senhor: a doutrina sobre a Ascensão é decisiva para o
além-túmulo da existência humana, de acordo com o que expusemos; não o é,
porém, menos para a compreensão do seu aquém, isto é para compreender a questão
referente ao modo como se entrosam o além e o aquém, ou seja, é decisiva para o
problema da possibilidade e do sentido da relação do homem com Deus. Ao reflectir
sobre o primeiro artigo do Credo, respondemos afirmativamente à pergunta de se
o infinito é capaz de ouvir o finito, o eterno de atender ao temporal,
lembrando que a verdadeira grandeza de Deus está precisamente no facto de, para
ele, o mínimo não ser pequeno demais e o máximo não ser excessivamente grande;
procuramos compreender como Deus, como Logos, não é somente a razão que diz
tudo, mas também que tudo percebe, que não exclui nada por causa de sua
insignificância. À busca preocupada dos nossos tempos respondemos: Sim, Deus é
capaz de ouvir. Mas resta ainda uma pergunta. Alguém, acompanhando-nos o
raciocínio, poderia dizer: Está bem: Deus pode ouvir; mas sempre continua a
pairar no ar esta outra questão: Deus será capaz de atender? Ou seria a
súplica, o grito da criatura a Deus, afinal, apenas um piedoso truque para
elevar psiquicamente o homem e para o consolar, uma vez que Deus só raramente
estaria em condições de atender a fórmulas deprecatórias? Tudo isto não
serviria para movimentar de qualquer modo, o homem no rumo da transcendência,
muito embora, na verdade, nada possa acontecer ou modificar-se com isto; pois o
que é eterno, eterno fica, e o temporal continua sendo temporal – parece não
existir passagem de uma esfera à outra? Também isto está excluído de uma
análise detalhada que exigiria um estudo crítico muito exacto dos conceitos de
tempo e eternidade. Seria preciso pesquisar o seu fundamento no pensamento
antigo e a síntese deste pensamento com a fé bíblica, encontrando-se a
imperfeição de ambas na raiz da nossa pergunta de hoje. Impor-se-ia de novo uma
reflexão sobre a relação do pensamento científico-técnico e a fé tarefas que
fogem aos limites desta obra. Portanto, em vez de respostas individuais e
elaboradas, resta mostrar a direcção em que a resposta há-de ser procurada.
A tendência mais comum da mentalidade
de hoje é imaginar a eternidade como algo, por assim dizer, encerrado na sua
imutabilidade; Deus é o prisioneiro do seu plano eterno, elaborado "antes
de todos os tempos". "Ser" e "devir" não se misturam. A
eternidade é concebida negativamente como ausência de tempo, como o elemento
oposto ao tempo, incapaz de influenciar o tempo, pois assim deixaria de ser
imutável, tornando-se temporal. No fundo, tais concepções mantêm-se dentro de
um ponto de vista pré-cristão, em que não se tomou conhecimento da ideia de um
Deus a revelar-se pela fé na Criação e na Encarnação. Supõem – o que aqui não
podemos desenvolver – o dualismo antigo, e são expressão de um pensamento ingénuo
que considera Deus à maneira humana. Quem, pois, julgar Deus capaz de modificar
o que planejou desde a eternidade, sem o perceber mete a eternidade no esquema
do tempo, ao distinguir o "antes" e o "depois".
Ora, eternidade não é imemorial, a
existir antes do tempo, mas é algo completamente outro, que se comporta em relação
ao tempo que passa como o seu "hoje", que lhe é realmente
"hodierno"; eternidade não está imprensada entre um antes e um
depois; ela é a dinâmica do presente em todo o tempo. A eternidade não se
encontra isolada ao lado do tempo, mas é a força a sustentar criadoramente todo
o tempo, que o abrange em seu próprio presente, conferindo-lhe assim a
possibilidade de existir. Sendo a eternidade o hoje, igual em todos os tempos,
pode influenciar qualquer tempo.
A encarnação de Deus em Jesus Cristo,
graças à qual o Deus eterno e o homem temporal se encontram em uma única
pessoa, nada mais representa do que a derradeira expressão concreta do domínio
divino sobre o tempo. Neste ponto, Deus arrebatou o tempo à existência terrena
de Jesus, absorvendo-o em si. O seu domínio sobre o tempo ergue-se diante de
nós, como que, corporalmente. Cristo, de facto, é a "porta" entre
Deus e homem (Jo 10,9), o seu "mediador" (1Tim 2,5), no
qual o Eterno dispõe de tempo. Em Jesus nós, seres temporais, estamos em
condição de falar aos temporais, nossos contemporâneos; nele, que é tempo connosco,
palpamos, simultaneamente, o eterno, porque, connosco, ele é tempo e, com Deus,
eternidade.
Embora noutro contexto, Hans Urs von
Balthasar esclareceu profundamente a importância espiritual dessas verdades.
Lembra, primeiro, que em sua vida terrestre Jesus não pairava acima do espaço e
do tempo, mas vivia do meio do seu tempo e no seu tempo; a humanidade de Jesus
que colocou-o no meio daquele tempo vem-nos ao encontro em cada página e em
cada linha do Evangelho; percebemo-la hoje mais viva e claramente do que em
outras épocas a notaram. Mas esta sua "permanência no tempo" não é
mera moldura histórica em que se possa encontrar, oculto alhures, o eterno do
seu ser propriamente dito; trata-se, antes, de uma realidade antropológica a
determinar profundamente a mesma forma da existência humana. Jesus dispõe de
tempo e não antecipa a vontade do Pai em pecaminosa impaciência. "Por isso
o Filho, que no mundo dispõe de tempo para o Pai, é o lugar original onde Deus
dispõe de tempo para o mundo. Outro tempo que não no Filho, Deus não tem para o
mundo, mas no Filho Deus tem todo o tempo". Deus não é o prisioneiro da
sua eternidade: em Jesus ele dispõe de tempo para nós, e, deste modo, Jesus
realmente é o "trono da graça" ao qual podemos aproximar-nos a
qualquer tempo, cheios de confiança (Hbr 4,16).
(cont)
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)