Quaresma
Semana IV
Evangelho:
7, 40-53
40 Entretanto,
alguns daquela multidão, tendo ouvido estas palavras, diziam: «Este é
verdadeiramente o profeta». 41 Outros diziam: «Este é o Messias». Alguns,
porém, diziam: «Porventura é da Galileia que há-de vir o Messias? 42 Não diz a
Escritura: “Que o Messias há-de vir da descendência de David e da aldeia de
Belém, donde era David”?». 43 Houve, portanto, desacordo entre o povo acerca
d'Ele. 44 Alguns deles queriam prendê-l'O, mas nenhum pôs as mãos sobre Ele. 45
Voltaram, pois, os guardas para os príncipes dos sacerdotes e fariseus, que
lhes perguntaram: «Porque não O trouxestes preso?». 46 Os guardas responderam:
«Nunca homem algum falou como Este homem». 47 Os fariseus replicaram:
«Porventura, também vós fostes seduzidos? 48 Houve, porventura, algum dentre os
chefes do povo ou dos fariseus que acreditasse n'Ele? 49 Quanto a esta plebe,
que não conhece a Lei, é maldita». 50 Nicodemos, que era um deles, o que tinha
ido de noite ter com Jesus, disse-lhes: 51 «A nossa Lei condena, porventura,
algum homem antes de o ouvir e antes de se informar sobre o que ele fez?». 52
Responderam: «És tu também galileu? Examina as Escrituras, e verás que da
Galileia não sai nenhum profeta». 53 E foi cada um para sua casa.
Comentário:
Para conhecer as coisas de Deus não
podemos usar critérios exclusivamente humanos mas, e em primeiro lugar, ter o
desejo genuíno e sincero de saber, compreender e aceitar.
Tal não é possível sem recta intenção, ou seja, sem qualquer preconceito.
(ama, comentário
sobre Jo 7 40-53 Monte Real 2015.03.21)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO - CONFISSÕES
LIVRO
QUATRO
CAPÍTULO
VIII
O
consolo do tempo e da amizade
O tempo não corre debalde,
nem passa inutilmente sobre nossos sentidos; antes, causa na alma efeitos
maravilhosos. Assim vinha e passava, dias após dias, e passando deixava em mim
novas esperanças e novas recordações; pouco a pouco restituía-me aos meus
prazeres de outrora, a que ia cedendo minha dor. Substituíam-na não novas
dores, mas sementes de novas dores.
Mas, por que me penetrara
aquela dor tão profundamente, até o mais íntimo de meu ser, senão porque
derramei a minha alma sobre a areia, amando a um mortal como se não o fora? O
que mais me confortava e alegrava eram sobretudo as consolações de outros
amigos, com os quais partilhava o amor para o que amava em teu lugar, isto é,
uma fábula enorme, uma longa mentira, cujo contato impuro corrompia nossa
mente, arrastada pelo prurido de ouvir aquilo que a agradava; fábula esta que não
morria para mim, ainda que morresse algum de meus amigos.
Havia neles outros
prazeres que cativavam mais fortemente a minha alma, como conversar, rir,
agradar-nos mutuamente com amabilidade, ler juntos livros bem escritos,
gracejar uns com os outros e divertir-nos juntos; às vezes discutir, mas sem
ódio, como quando discordamos de nós mesmos para, com tais discórdias muito
raras, temperar as muitas conformidades; ensinar ou aprender reciprocamente
muitas coisas, suspirar impacientes pelos ausentes e receber alegres os
recém-chegados. Estes sinais, e outros semelhantes, que procedem de corações
que se amam, e que se manifestam no rosto, na fala, nos olhos, e em mil outros
gestos graciosos, inflamavam as nossas almas, como uma centelha, fazendo de
muitas uma só.
CAPÍTULO
IX
O
amigo de Deus
É isto o que se ama nos
amigos; e de tal modo se ama, que a consciência humana se julga culpada se não
ama ao que a ama, ou se não retribui amor com amor procurando na pessoa do
amigo apenas o sinal exterior de sua benevolência. Daqui o pranto do luto
quando morre um amigo, as trevas de dores, e as lágrimas que inundam o coração
quando a doçura se transforma em angústia, e a morte dos que morrem na morte
dos que vivem.
Bem-aventurado o que te
ama, Senhor, e ama ao amigo em ti, e ao inimigo por amor a ti; só não perde o
amigo quem tem a todos por amigos naquele que nunca se perde. E quem é este,
senão o nosso Deus, o Deus que fez o céu e a terra, e os enche, porque,
enchendo-os, os criou?
Ninguém, Senhor, te perde
senão o que te abandona. Mas, quem te deixa, para onde vai, ou para onde foge,
senão de ti benévolo para ti irado? Onde não achará tua lei para seu castigo?
Porque tua lei é a verdade, e a verdade és tu mesmo.
CAPÍTULO
X
As
mentiras da beleza
Ó Deus das virtudes!
Converte-nos e mostra-nos tua face, e seremos salvos! Porque, para onde quer
que se volte a alma humana, onde quer que se estabeleça fora de ti, sempre
encontrará dor, mesmo que sejam as belezas que estão fora de ti e fora de si
mesma; e todavia, estas não seriam nada se não existissem em ti. Elas nascem e
morrem; e, nascendo, começam a existir, e crescem para alcançar a perfeição e,
uma vez perfeitas, começam a envelhecer e morrem. Embora nem tudo envelheça,
tudo perece. Logo, quando os seres nascem e se esforçam para existir, quanto
mais depressa crescem para existir, tanto mais se apressam para deixar de
existir. Esta é a sua condição. Eis tudo o que lhes deste, porque são partes de
coisas que não existem simultaneamente mas, morrendo e sucedendo-se umas às
outras, formam o conjunto de que são partes.
Assim forma-se também o
nosso discurso, por meio dos sinais sonoros; este nunca se realizaria se uma
palavra não se extinguisse, depois de pronunciadas suas sílabas, para dar lugar
à seguinte.
Que a minha alma te louve
por tudo isto, ó Deus, criador de todas as coisas; mas não se pegue a elas com
o visco do amor dos sentidos, pois também elas caminham para o não-ser, e
dilaceram a alma com desejos pestilenciais, e ela quer existir e gosta de descansar
nas coisas que ama. Mas nelas não acha onde, porque as coisas não são estáveis.
Elas são fugazes, e quem poderá segui-las com os sentidos da carne? Ou quem as
pode alcançar, mesmo estando presentes? Lento é o sentido da carne, por ser da
carne, mas essa é a sua condição. É suficiente para o que foi criado, mas não o
é para reter o curso das coisas, do princípio que lhes foi fixado, até o fim
que lhes foi designado, porque em teu Verbo, que as criou, ouvem estas palavras:
“Daqui até ali”.
CAPÍTULO
XI
A
verdade de Deus
Não seja vã, ó minha alma,
nem ensurdeças o ouvido do coração com o tumulto da tua vaidade. Ouve também: o
próprio Verbo clama que voltes, porque só acharás repouso imperturbável lá onde
o amor não é abandonado, se ele não nos abandona antes. Eis que as coisas passam
para ceder lugar as outras, e para que assim se forme este universo inferior,
de todas as suas partes. “Mas, por acaso, afasto-me de um lugar para outro? –
diz o Verbo de Deus.
– Fixa nele a tua morada,
confia a ele tudo o que dele recebeste, alma minha, já cansada de tantos
enganos. Confia à Verdade quanto da Verdade recebeste, e nada perderás; antes,
a tua podridão reflorescerá e serão curadas todas as tuas fraquezas, e serão
retomadas e renovadas, estreitamente unidas a ti, as tuas partes inconscientes;
e já não te arrastarão para a ladeira por onde descem, mas permanecerão contigo
para sempre onde está Deus, eterno e imutável.
Por que, perversa, segues
o apelo de tua carne? Seja esta, convertida a te seguir. Tudo o que por ela
sentes é parte, mas ignoras o todo de que é parte, ainda que te dê prazer. Mas,
se os sentidos de tua carne fossem idóneos para compreender o todo, e se, para
teu castigo, não tivessem sido justamente limitados a compreender apenas partes
do universo, certamente desejarias que passasse tudo o que presentemente
existe, para melhor desfrutar do conjunto.
O que falamos também ouves
com os ouvidos da carne, e com certeza não queres que as sílabas se detenham,
mas que voem, para que outras lhes sucedam, e assim ouvires o conjunto.
O mesmo acontece com todas
as coisas que compõem um todo, quando essas partes constituintes não existem
simultaneamente; há mais encanto no todo do que nas partes percebidas
separadamente. Mas melhor do que todas elas, é o que as fez, que é nosso Deus,
que não passa, porque nada vem depois dele.
CAPÍTULO
XII
O
amor em Deus
Se te agradam os corpos,
louva a Deus neles, e dirige teu amor para teu artífice, para não o desagradar
nas mesmas coisas que te agradam.
Se te agradam as almas,
ama-as em Deus, porque, embora mutáveis, se fixas nele, terão estabilidade; de
outro modo, passariam e pereceriam. Ama-as, pois, nele, e arrasta contigo até
ele quantas almas puderes, dizendo-lhes: “Amemo-lo”. Porque ele criou estas coisas,
e não está longe; ele não as fez para depois ir embora, mas dele procedem e
nele estão. E ele está onde aprecia a verdade: no mais íntimo do coração; mas o
coração errante se afastou dele.
Voltai, pecadores, ao
coração, e ligai-vos àquele que é vosso criador. Firmai-vos nele, e estareis
firmes; descansai nele, e estareis descansados. Para onde ides por esses
ásperos caminhos? Para onde ides? O bem que amais, dele procede, mas só é bom e
suave quando se dirige a ele; porém, será justamente amargo se, abandonando a
Deus, amardes injustamente o que dele procede. Por que continuai por caminhos
difíceis e trabalhosos? O descanso não está onde o buscais. Buscais a vida
feliz na região das trevas: não está lá. Como achar a vida bem-venturada onde
nem sequer há vida?
Ele, nossa vida real veio
até nós; sofreu nossa morte, e a suplantou com a abundância da sua vida; com
voz de trovão clamou para que voltássemos a ele, para o lugar escondido de onde
veio até nós, passando primeiro pelo seio de uma virgem, onde se desposou com
ele a natureza humana, carne mortal, para não ficar sempre mortal.
Dali, como o esposo que
sai do tálamo, deu saltos como um gigante, para correr seu caminho. E não se
deteve; correu clamando com as suas palavras, com as suas obras, com a sua
própria morte, com a sua vida, com a sua descida aos infernos e com a sua
ascensão, clamando para que voltássemos a ele. Se ele se afastou da nossa
vista, foi para que entremos em nosso coração, e ali o encontremos; se partiu,
ainda está connosco. Não quis ficar por muito tempo entre nós, mas não nos
abandonou. Retirou-se de onde nunca se afastou, pois o mundo foi criado por
ele, e no mundo estava, e ao mundo veio para salvar os pecadores. E a ele se
confessa minha alma, a ele que a cura e contra quem pecou.
Filhos dos homens, até
quando sereis duros de coração? Será possível que, depois de ter a vida descido
até vós, não queirais subir e viver? Mas para onde subis, quando vos ergueis e
abris vossa boca no céu? Descei para subir, para subir até Deus, já que caístes
levantando-vos contra Deus.
Diz-lhes isto, minha alma,
para que chorem neste vale de lágrimas, e assim os arrebates contigo para Deus,
pois, ao dizer estas palavras ardendo em chamas de caridade, é o espírito
divino que te inspira.
(cont)
(Revisão
de versão portuguesa por ama)