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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO V
Não se deve imaginar uma extensão infinita de tempos antes do Mundo, nem
também uma extensão infinita de lugares fora do Mundo, porque antes do Mundo não
há tempos nem fora dele há lugares.
Quanto àqueles que admitem connosco que Deus é o autor do Mundo, mas nos põem a
objecção do tempo do Mundo, vejamos o que esses mesmos respondem acerca
do lugar do Mundo. Porque da mesma forma que nos perguntam:
— porque
o fez Ele em tal momento em vez de o ter feito em tal outro?, assim também
se lhes pode perguntar:
— porque o fez aí em vez de o ter feito noutro sítio?
Efectivamente, se
imaginam antes do Mundo extensões infinitas de tempos no decurso das quais,
parece-lhes, Deus não podia ficar inactivo, — pois imaginem também, fora do
Mundo, extensões infinitas de lugares. E se disserem que também aí o
Omnipotente não se pode manter inactivo, não serão eles obrigados a sonhar, como Epicuro, com inúmeros mundos (com a única
diferença de que em vez de, como ele, atribuírem a sua formação e dissolução
aos movimentos fortuitos dos átomos, dirão que foram criados por Deus)? Não
será o que se conclui, se não admitirem que Deus se mantém inactivo na imensidade sem limites desses lugares que se
estendem por todos os lados à volta do Mundo, nem será o que se conclui, se não
admitirem que esses mundos não poderão ser destruídos por causa alguma, como
eles pensam também do nosso Mundo. Lidamos com os que pensam, como nós, que
Deus é um ser incorpóreo, criador de todas as naturezas distintas da sua.
Quanto aos outros, seria demasiado indigno admiti-los nesta discussão acerca da
religião; principalmente porque, àqueles que creem que se deve prestar culto a
uma multidão de deuses, estes filósofos os superam em nobreza e autoridade e por isso, por muito afastados que pareçam estar da verdade, estão, todavia, dela mais próximos que todos os outros.
A respeito da substância de Deus, que não incluem num lugar, nem nele a
delimitam , nem fora dele a deixam, mas antes, como convém pensar acerca de
Deus, reconhecem que ela está inteiram ente toda com um a presença incorpórea
em toda a parte — acaso dirão que ela está ausente desses espaços tamanhos que
se estendem para fora do Mundo? Acaso dirão que ela ocupa unicamente o lugar deste M undo tão exíguo em comparação dos espaços infinitos? Não creio que cheguem a cair em tal palavreado. Reconhecem, pois,
que não há senão um Mundo, formando sem dúvida uma massa corpórea imensa, mas
limitada e circunscrita no seu lugar e que é obra de Deus. O que eles respondem
a propósito dos espaços que se estendem sem limites para fora do Mundo quando
perguntam: porque é que Deus nada fez aí? que o digam a si próprios a propósito dos
tempos ilimitados decorridos antes do Mundo, quando perguntam: porque é que
Deus nada fez então? Se Deus estabeleceu o Mundo no lugar onde está e não
noutro, quando nesses espaços infinitos todos os lugares tinham os mesmos
direitos de serem escolhidos, — não se segue por certo que Ele o fez por acaso e não por uma razão divina, embora esta razão escape a toda a inteligência humana. Pela
mesma razão não é lógico atribuir a uma decisão fortuita que Deus criou o Mundo em tal tempo em vez de em tal outro, mesmo que no passado tenha havido uma
infinidade de tempos igualmente anteriores sem diferença algum a para ser preferido um tempo a outro.
Se dizem que são vãos os pensamentos dos homens que imaginam espaços infinitos,
pois que não há lugar algum fora do Mundo, responder-se-lhes-á que também é vão
imaginar tempos passados em que Deus nada fazia, já que tempo não há antes do
Mundo.
CAPÍTULO VI
Para o Mundo como para os tempos o começo é o mesmo: um não precede o outro.
Se, de facto, a verdadeira diferença entre a eternidade e o tempo consiste em
que não há tempo sem mudança sucessiva, ao passo que a eternidade não admite
mudança alguma, — quem não verá que o tempo não teria existido, se não tivesse
sido feita uma criatura que desloca tal ou tal coisa por um qualquer movimento?
Essa mudança, esse movimento cedem o seu lugar e sucedem-se, e, não podendo
existir ao mesmo tempo em intervalos mais curtos ou prolongados de espaço, dão
origem ao tempo. Pois que Deus, cuja eternidade exclui a menor mudança, é o
criador e o ordenador dos tempos, como é que se poderá dizer que Ele criou o
Mundo depois dos espaços de tempo? Eu não o vejo — a não ser que se diga que
antes do Mundo já existia uma criatura cujos movimentos teriam determinado o
curso dos tempos. Mas as Sagradas Escrituras, absolutamente verídicas, afirmam
que «no princípio fez Deus o Céu e a Terra» (Gén. I, 1), para nos darem a entender
que Ele nada tinha feito antes; porque, se tivesse feito alguma coisa antes de
tudo o que fez, seria dessa coisa que estaria escrito «no princípio Deus
fê-la». Está, pois, fora de dúvida que o Mundo foi feito, não no tempo, mas com
o tempo. O que efectivamente se faz no tempo, faz-se depois de algum tempo e antes de outro — depois do que foi (praeteritum),
antes do que será {juturum). Mas não poderia haver passado algum,
porque não havia criatura alguma capaz, pelos seus movimentos sucessivos de
realizar o tempo. Foi, pois, com o tempo que o Mundo foi feito pois que, ao
criar o Mundo, Deus criou nele o movimento sucessivo. Assim o demonstra a
própria ordem dos seis ou sete primeiros dias: estão lá nomeadas uma manhã e
uma tarde, até que, acabadas todas as obras de Deus no sexto dia, o sétimo nos
descobre, num grande mistério, o repouso de Deus. Mas de que dias se trata — é
difícil, impossível mesmo, fazer disso um a ideia, quanto mais exprimi-la.
Capitulo VII
Natureza dos primeiros dias que, segundo a tradição, tiveram manhã e tarde
ainda antes da criação do Sol.
Como, efectivamente, vemos, os dias, com o os conhecemos, têm tarde porque há
um ocaso, e têm manhã porque há nascer do Sol. Mas os três primeiros dias
decorreram sem Sol, feito, segundo a Escritura, ao quarto dia. É certo que ela
nos conta que a luz foi feita em primeiro lugar pela palavra de Deus e que Deus a separou das trevas chamando dia à luz e
noite às trevas. Mas que luz era esta e por que movimento alternante fazia ela
a tarde e a manhã, é coisa que escapa aos nossos sentidos e não podemos
compreender o que seja. Todavia, devemo-lo crer sem hesitação. De facto, ou é
um a luz corpórea situada longe dos nossos olhares nas regiões superiores do
mundo — um fogo de que mais tarde se iluminou o Sol; ou a palavra luz designa a
Cidade Santa dos anjos e dos espíritos bem-aventurados de que fala o Apóstolo:
Ela é a Jerusalém do alto, nossa mãe eterna nos céus.[i]
e noutro lugar:
Vós sois todos filhos da luz e filhos do dia; nós não somos filhos da noite nem das trevas,[ii]
se é que nós podemos compreender a tarde e a manhã desse dia.
Com parada à ciência do Criador, a ciência da criatura é semelhante a um
crepúsculo; também ela começa a clarear e a tornar-se como que manhã, quando é
dirigida ao louvor e ao amor do Criador. E não pende para a noite senão quando
abandona o Criador para amar a criatura. Enfim, a Escritura, quando enumera
aqueles dias pela sua ordem, em parte nenhuma intercala a palavra noite.
Efectivamente, em parte nenhuma diz: a noite foi feita, mas sim:
Fez-se uma tarde, fez-se uma manhã: é um dia[iii].
E da mesma maneira, do segundo e dos outros dias. Na verdade, a ciência da
criatura em si mesma é, por assim dizer, mais descolorida do que quando se
conhece na Sabedoria de Deus com o no modelo de que ela procede. Por isso, o
nome de tarde convém melhor do que o de noite. Todavia, com o
disse, quando essa ciência se dirige ao louvor e ao amor do Criador, torna-se manhã,
quando a ciência se realiza no
conhecimento de si própria, isto é o primeiro dia;
quando ela se realiza no conhecimento do firmamento, que, situado entre as
águas do alto e de baixo, se chama Céu, é o segundo dia;
quando se realiza no conhecimento da terra e do mar e de todos os seres que se reproduzem , que se continuam através das raízes da
terra, é o terceiro dia;
quando se realiza no conhecimento dos luzeiros maior e menor e dos astros, é o
quarto dia;
quando se realiza no dos animais que nadam nas águas e voam, é o quinto dia;
e quando se realiza no dos animais terrestres e do
próprio homem, é o sexto dia.
CAPÍTULO VIII
Com o compreender a existência e a natureza
do repouso de Deus no sétimo dia, depois de seis de trabalho.
Que Deus descansou de todos os seus trabalhos ao sétimo dia e que o santificou — é facto que não deve ser compreendido
puerilmente no sentido de que Deus se fatigou com o trabalho. A palavra
falou e as coisas se
fizeram [iv]
deve ser entendida com o um a
palavra inteligível e eterna, não sonora nem temporal. Mas o repouso de Deus
significa o repouso dos que nele descansam, com o a alegria de uma casa
significa a alegria dos que nela se alegram, mesmo que não seja a casa, mas um
outro objecto que os torne alegres. Quanto mais se a própria casa pela sua
beleza torna felizes os que nela habitam! Neste caso
chama-se alegre, não por essa figura de linguagem em que o continente é tom ado pelo conteúdo (como se diz: o teatro aplaudiu, os prados mugem, quando num os espectadores aplaudem e nos outros mugem os bois), — mas pela figura em que se toma o efeito
pela causa (como se diz: uma carta alegre, para significar a alegria que ela
comunica aos leitores). É por isso que com muita propriedade, quando a
autoridade profética nos conta que Deus descansou, se quer significar o repouso
dos que descansam n ’Ele, a quem Ele próprio faz descansar. Refere-se também aos homens a quem se dirige e para
quem foi escrita a profecia: esta promete-lhes, a eles também, o repouso eterno
em Deus depois das boas obras que Deus opera neles e por eles, se antes, nesta
vida, se aproximaram, por assim dizer, d’Ele pela fé. Este repouso é ainda figurado
pelo do sabbat prescrito pela lei ao antigo Povo de Deus. Mas disto é
minha intenção tratar mais pormenorizadamente no seu lugar próprio.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)