CARTA ENCÍCLICA
HAURIETIS AQUAS
DO SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O CULTO DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
I
FUNDAMENTOS
E PREFIGURAÇÕES
DO
CULTO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
NO
ANTIGO TESTAMENTO
1)
Incompreensão da verdadeira natureza do culto ao coração sacratíssimo de Jesus por
parte de alguns cristãos
5.
Conquanto a Igreja em tão grande estima tenha tido sempre e ainda tenha o culto
do sacratíssimo coração de Jesus, a ponto de se empenhar em fomentá-lo e
propagá-lo por toda parte entre o povo cristão, e conquanto se esforce
diligentemente por defendê-lo contra o "naturalismo" e o
"sentimentalismo", todavia é muito doloroso verificar que, no passado
e em nossos dias, alguns cristãos não têm este nobilíssimo culto na honra e
estima devidas, e às vezes não o têm nem mesmo aqueles que se dizem animados de
zelo sincero pela religião católica e pela própria perfeição.
6.
"Se conhecesses o dom de Deus"
[i].
Servimo-nos
dessas palavras veneráveis irmãos, nós, que por disposição divina fomos
constituídos guardas e dispensadores do tesouro da fé e da religião que o
divino Redentor entregou à sua Igreja, para admoestar todos aqueles dos nossos
filhos que, apesar de, vencendo a indiferença e os erros humanos, já haver o
culto do sagrado coração de Jesus penetrado no seu corpo místico, ainda abrigam
preconceitos para com ele, e chegam até a reputá-lo menos adaptado, para não
dizer nocivo, às necessidades espirituais mais urgentes da Igreja e da
humanidade na hora presente.
Porque
não falta quem, confundindo ou equiparando a índole primária deste culto com as
diversas formas de devoção que a Igreja aprova e favorece, mas não prescreve, o
tem como um acréscimo que cada um pode praticar à vontade, e alguns há também
que consideram oneroso este culto, e mesmo de nenhuma ou pouca utilidade, especialmente
para os militantes do reino de Deus, empenhados em consagrar o melhor das suas
energias, dos seus recursos e do seu tempo à defesa da verdade católica, para
ensiná-la e propagá-la, e para difundir a doutrina social católica, fomentando
práticas religiosas e obras por eles julgadas mais necessárias nos nossos dias.
Por
último, há quem creia que este culto, longe de ser um poderoso meio para
estabelecer e renovar os costumes cristãos na vida individual e familiar, é
antes uma devoção sensível não enformada em altos pensamentos e afectos, e,
portanto, mais própria para mulheres do que para pessoas cultas.
7.
Outros, finalmente, ao considerarem que esta devoção pede penitência, expiação
e outras virtudes, sobretudo as que se chamam "passivas", por não
produzirem frutos externos; não a julgam a propósito para reacender a piedade,
a qual deve tender cada vez mais à acção intensa, encaminhada ao triunfo da fé
católica e à valente defesa dos costumes cristãos, os quais hoje, como todos
sabem, se vêm facilmente infectados pelo indiferentismo, que não reconhece
nenhum critério para distinguir o verdadeiro do falso no modo de pensar e de
agir, e, assim, se vêem lamentavelmente alheados pelos princípios do
materialismo ateu e do laicismo.
2)
Estima e bênção dos sumos pontífices ao culto do Sagrado Coração de Jesus
8.
Quem não vê, veneráveis irmãos, quão alheias são essas opiniões do sentir dos
nossos predecessores, que desta cátedra de verdade publicamente aprovaram o
culto do sacratíssimo coração de Jesus? Quem ousará chamar inútil ou menos
acomodada aos nossos tempos esta devoção que o nosso predecessor de imperecível
memória Leão XIII chamou de "estimadíssima prática religiosa", e na
qual viu um poderoso remédio para os próprios males que, nos nossos dias de
maneira mais aguda e com mais extensão, afligem os indivíduos e a sociedade?
"Esta
devoção – dizia ele – que a todos recomendamos, a todos será de proveito".
E
acrescentava estes avisos e exortações que também se referem à devoção ao
sagrado coração:
"Daí
a violência dos males que, há tempo, estão como que implantados entre nós, e
que reclamam urgentemente busquemos a ajuda do único que tem poder para os
afastar. E quem pode ser este senão Jesus Cristo, o unigénito de Deus? Pois
nenhum outro nome foi dado aos homens sob o céu no qual devamos
salvar-nos" [ii].
"Cumpre recorrer a ele, que é caminho, verdade e vida".[iii]
9.
Nem menos dignos de aprovação e adequado para fomentar a piedade cristã
julgou-o o nosso imediato predecessor, de feliz memória, Pio XI, que, na sua
encíclica "Miserentissimus Redemptor",
escrevia: "Acaso não está contido nessa forma de devoção o compêndio de toda
a religião, e mesmo a norma de vida mais perfeita, como quer que ele guie mais
suavemente as almas para o profundo conhecimento de Cristo Senhor nosso, e com
maior eficácia as mova a amá-lo mais apaixonadamente e a imitá-lo mais de
perto?"[iv]
Nós,
por nossa parte, com não menor agrado do que os nossos predecessores, aprovamos
e aceitamos essa sublime verdade; e, quando fomos elevado ao sumo pontificado,
ao contemplarmos o feliz e triunfal progresso do culto ao sagrado coração de
Jesus entre o povo cristão, sentimos o nosso ânimo cheio de alegria e
regozijamo-nos com os inúmeros frutos de salvação que ele havia produzido em
toda a Igreja, sentimentos que tivemos a satisfação de exprimir logo na nossa
primeira encíclica.[v]
Através
dos anos do nosso pontificado – cheios não só de calamidades e angústias, como
também de inefáveis consolações -, esses frutos não diminuíram nem em número,
nem em eficácia, nem em beleza, antes aumentaram.
Com
efeito, iniciativas múltiplas e muito acomodadas às necessidades dos nossos
tempos surgiram para reacender este culto: referimo-nos às associações
destinadas à cultura intelectual e à promoção da religião e da beneficência; às
publicações de carácter histórico, ascético e místico, encaminhadas a este
mesmo fim; às piedosas práticas de reparação e, de modo especial, às
manifestações de ardentíssima piedade que têm promovido o Apostolado da oração,
a cujo zelo e actividade se deve o se haverem famílias, colégios, instituições,
e mesmo algumas nações, consagrado ao Sacratíssimo Coração de Jesus; e não
raras vezes, por ocasião dessas manifestações de culto, mediante cartas,
discursos e mesmo radiomensagens temos expressado a nossa paternal
complacência.[vi]
PIO PP. XII.
(Revisão da versão portuguesa
por AMA)
Notas:
[iii] Enc. Annum Sacrum., de 25 de Maio
de 1899; Acta Leonis, 19(1900), pp. 71, 77-78.
[iv] Enc. Miserentissimus Redemptor, de
8 de maio de 1928; AAS 20 (1928), p.167.
[v]
Cf. Enc. Summi Pontificatus, de 20 de outubro de 1939; AAS 31 (1939), p. 415.
[vi]
Cf. AAS 32(1940), p. 276; 35(1943), p.170; 37(1945), pp. 263-264; 40(1948), p.
501; 41(1949), p. 331.