A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRQ XIV
CAPITULO IX
Perturbações da alma cujos rectos movimentos se encontram na alma dos
justos.
No nono livro desta obra já respondemos a esses filósofos acerca desta questão
das perturbações da alma, mostrando que eles, apegando-se mais às palavras do
que aos factos, preferem a discussão à verdade. Entre nós, porém, segundo as
Sagradas Escrituras e a sã doutrina, os cidadãos da Cidade de Deus, que vivem
como a Deus apraz na peregrinação desta vida, tem em e desejam, entristecem-se e
regozijam-se — e, como é recto o seu amor, rectos são também estes afectos.
Temem o eterno castigo, desejam a vida eterna; entristecem -se com o presente
porque gemem ainda em si próprios, esperando a adopção divina e a redenção de
seus corpos; regozijam-se na esperança porque há-de cumprir-se
a palavra que foi escrita: a morte foi absorvida pela
vitória.[i]
De igual modo — receiam pecar, desejam perseverar; entristecem-se dos seus
pecados, regozijam-se das suas boas obras. Receiam pecar porque ouvem:
Porque abundará a iniquidade, arrefecerá a caridade de
muitos;[ii]
desejam perseverar ao ouvirem o que está escrito:
0 que perseverar até ao fim será salvo;[iii]
entristecem-se dos seus pecados ao ouvirem:
Se dissermos que estamos sem pecado, iludimo-nos a nós próprios e
a verdade não está em nós;[iv]
regozijam-se das suas obras quando ouvem:
Deus ama o que dá com alegria.[v]
Da mesma maneira, conforme são débeis ou fortes __ assim eles receiam ser
tentados ou desejam ser provados, entristecem-se nas tentações ou nas tentações
se regozijam; receiam ser tentados ao ouvirem:
Se alguém for encontrado em falta, vós, que sois espirituais,
instrui-o em espírito e doçura, mas acautela-te não sejas tu tentado;[vi]
desejam ser tentados ao ouvirem aquele varão forte da Cidade de Deus dizer:
Prova-me, Senhor, tenta-me; queima os meus rins} o meu coração;[vii]
entristecem -se nas tentações ao verem Pedro chorar; regozijam-se nas tentações
ao ouvirem Tiago dizer:
Considerai tudo com alegria, meus irmãos, quando assediados pelas
tentações.[viii]
Mas eles não se com ovem comestes sentimentos olhando apenas para si próprios,
mas olhando também para aqueles cuja salvação desejam e cuja perdição receiam —
entristecendo-se se eles perecem, regozijando-se se eles são libertados.
Lembremos aquele varão, o melhor e o mais forte, que se glorifica nas suas
enfermidades; lembremos, principalmente nós que viemos dos gentios para a
Igreja de Cristo, esse doutor das «gentes», mestre na fé e na verdade; ele
trabalhou mais que todos os outros apóstolos e por meio de múltiplas epístolas,
instrui os povos de Deus, tanto aqueles que via no seu tempo como também aqueles
que previu que haviam de vir; este varão, digo eu, atleta de Cristo, por Ele
instruído, ungido por Ele, com ele crucificado, n’Ele glorioso, foi, no teatro
deste mundo, um espectáculo para os anjos e para os homens, com batendo
lealmente o grande com bate, lançando-se para a meta para recolher a palma da
vocação celeste.
Com os olhos da fé maravilhados vêem-no regozijar-se com os que se regozijam,
chorar com os que choram, com lutas por fora e tem ores por dentro, desejando dissolver-se
para estar com Cristo, aspirando ver os Romanos para, junto deles, ter algum
fruto como entre os outros povos;
estimulando os Coríntios e receando esse estímulo, não vá acontecer que o seu
espírito se afaste do desejo casto de Cristo;
sentindo uma grande tristeza e uma dor contínua do coração a propósito dos
Israelitas porque estes, ignorando a justiça de Deus e querendo estabelecer a
sua, não se submetem à justiça de Deus;
e não é só dor, mas também pranto que manifesta aos que antes tinham pecado e
não fizeram penitência da sua impureza e das suas fornicações
.
Se estes movimentos, estes afectos, que procedem do amor do bem e da santa
caridade, se devem chamar «vícios »,
teremos que admitir que os verdadeiros vícios se amem virtudes. Mas, se esses
afectos seguem a recta razão quando tendem para o seu fim conveniente, quem se atreverá
então a chamar-lhes enfermidades ou paixões viciosas? Foi por isso que o
Senhor, Ele próprio, que se dignou levar a vida humana na forma de escravo, mas
sem ter absolutamente nenhum pecado, usou delas quando julgou que convinha
tazê-lo. Realmente, não era falso o afecto humano de quem tinha verdadeiro
corpo e verdadeiro espírito de homem. E quando o Evangelho conta a seu respeito que Ele sentiu tristeza e ira devido à dureza do coração dos Judeus;
que Ele disse:
Por vossa causa estou alegre ao pensar que tendes fé;[ix]
que Ele chora antes de ressuscitar Lázaro;
que desejou comer a Páscoa com os seus próprios discípulos;
que a sua alma mergulhou na tristeza ao aproximar-se a paixão — com certeza nada disto que se conta é falso. Mas, em conformidade
com um determinado desígnio, quis experimentar estas emoções na sua alma humana
tal qual como se quis tornar homem.
De resto, devemos confessá-lo, os nossos afectos, mesmo quando são rectos e
como a Deus apraz, pertencem a esta vida, não à vida futura que esperamos, e
muitas vezes cedemos-lhe contra vontade. Às vezes um a emoção, apesar de não
devida a um culpável desejo, mas a louvável caridade, faz-nos chorar mesmo que
não queiramos. Temo-los, devido à debilidade da condição humana. Mas não é
assim o Senhor Jesus; a sua própria fraqueza resultou da sua potestade. Mas
enquanto somos portadores da debilidade desta vida, se não tivéssemos nenhum
deles seria caso para dizermos que a nossa vida era defeituosa. Por isso o
Apóstolo vituperava e detestava certos homens que dizia serem desprovidos de
afectos. Também o salmo sagrado incrimina aqueles de quem diz:
Esperei por alguém que partilhasse a minha tristeza e ninguém apareceu.[x]
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)