CARTA
ENCÍCLICA
LAUDATO SI’
DO
SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE
O CUIDADO DA CASA COMUM
CAPÍTULO I
O
QUE ESTÁ A ACONTECER À NOSSA CASA
17. As reflexões teológicas ou filosóficas
sobre a situação da humanidade e do mundo podem soar como uma mensagem repetida
e vazia, se não forem apresentadas novamente a partir dum confronto com o
contexto actual no que este tem de inédito para a história da humanidade.
Por isso, antes de reconhecer como a fé
traz novas motivações e exigências face ao mundo de que fazemos parte, proponho
que nos detenhamos brevemente a considerar o que está a acontecer à nossa casa
comum.
18. A contínua aceleração das mudanças na
humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e
trabalho, que alguns, em espanhol, designam por «rapidación». Embora a mudança
faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem
as acções humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica.
A isto vem juntar-se o problema de que os
objectivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados
para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral.
A mudança é algo desejável, mas torna-se
preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da qualidade de
vida de grande parte da humanidade.
19. Depois dum tempo de confiança
irracional no progresso e nas capacidades humanas, uma parte da sociedade está
a entrar numa etapa de maior consciencialização.
Nota-se uma crescente sensibilidade
relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma sincera e
sentida preocupação pelo que está a acontecer ao nosso planeta. Façamos uma resenha,
certamente incompleta, das questões que hoje nos causam inquietação e já não se
podem esconder debaixo do tapete.
O objectivo não é recolher informações ou
satisfazer a nossa curiosidade, mas tomar dolorosa consciência, ousar transformar
em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim, reconhecer a
contribuição que cada um lhe pode dar.
1.
Poluição e mudanças climáticas
Poluição, resíduos e cultura do descarte
20. Existem formas de poluição que afectam
diariamente as pessoas.
A exposição aos poluentes atmosféricos
produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais
pobres, e provocam milhões de mortes prematuras.
Adoecem, por exemplo, por causa da
inalação de elevadas quantidades de fumo produzido pelos combustíveis utilizados
para cozinhar ou aquecer-se.
A isto vem juntar-se a poluição que afecta
a todos, causada pelo transporte, pelos fumos da indústria, pelas descargas de
substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da água, pelos
fertilizantes, insecticidas, fungicidas, pesticidas e agro-tóxicos em geral.
Na realidade a tecnologia, que, ligada à
finança, pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério
das múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes
resolve um problema criando outros.
21. Devemos considerar também a poluição
produzida pelos resíduos, incluindo os perigosos presentes em variados ambientes.
Produzem-se anualmente centenas de milhões
de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos
e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos, electrónicos e
industriais, resíduos altamente tóxicos e radio-activos.
A terra, nossa casa, parece transformar-se
cada vez mais num imenso depósito de lixo.
Em muitos lugares do planeta, os idosos
recordam com saudade as paisagens de outrora, que agora vêem submersas de lixo.
Tanto os resíduos industriais como os produtos químicos utilizados nas cidades
e nos campos podem produzir um efeito de bioacumulação nos organismos dos
moradores nas áreas limítrofes, que se verifica mesmo quando é baixo o nível de
presença dum elemento tóxico num lugar.
Muitas vezes só se adoptam medidas quando
já se produziram efeitos irreversíveis na saúde das pessoas.
22. Estes problemas estão intimamente
ligados à cultura do descarte, que afecta tanto os seres humanos excluídos como
as coisas que se convertem rapidamente em lixo.
Note-se, por exemplo, como a maior parte
do papel produzido se desperdiça sem ser reciclado.
Custa-nos a reconhecer que o funcionamento
dos ecossistemas naturais é exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas
que alimentam os herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que
fornecem significativas quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a uma
nova geração de vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no final do ciclo
de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar
resíduos e escórias.
Ainda não se conseguiu adoptar um modelo
circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras
e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando
o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e
reciclando-os.
A resolução desta questão seria uma maneira
de contrastar a cultura do descarte que acaba por danificar o planeta inteiro,
mas nota-se que os progressos neste sentido são ainda muito escassos.
O clima como bem comum
23. O clima é um bem comum, um bem de
todos e para todos.
A nível global, é um sistema complexo, que
tem a ver com muitas condições essenciais para a vida humana.
Há um consenso científico muito
consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do
sistema climático.
Nas últimas décadas, este aquecimento foi
acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar
ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se
possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenómeno particular.
A humanidade é chamada a tomar consciência
da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para
combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou
acentuam.
É verdade que há outros factores (tais
como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo solar),
mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global
das últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito de estufa
(dióxido de carbono, metano, óxido de azoto, e outros) emitidos sobretudo por
causa da actividade humana.
Concentrando-se na atmosfera, estes gases
dificultam a evasão do calor que a luz do sol produz sobre a superfície da terra.
Isto é particularmente agravado pelo
modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que
está no centro do sistema energético mundial.
E incidiu também a prática crescente de
mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade
agrícola.
24. Por sua vez, o aquecimento influi
sobre o ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a situação
e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável,
a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção
de parte da biodiversidade do planeta.
O derretimento das calotas polares e dos
glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de alto risco, de gás
metano, e a decomposição da matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda
mais a emissão de dióxido de carbono.
Entretanto a perda das florestas tropicais
piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática.
A poluição produzida pelo dióxido de
carbono aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha.
Se a tendência actual se mantiver, este
século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma destruição
sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós.
Por exemplo, a subida do nível do mar pode
criar situações de extrema gravidade, se se considera que um quarto da população
mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades
estão situadas em áreas costeiras.
25. As mudanças climáticas são um problema
global com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e
políticas, constituindo actualmente um dos principais desafios para a humanidade.
Provavelmente os impactos mais sérios
recairão, nas próximas décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento.
Muitos pobres vivem em lugares
particularmente afectados por fenómenos relacionados com o aquecimento, e os
seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados
serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais.
Não possuem outras disponibilidades
económicas nem outros recursos que lhes permitam adaptar-se aos impactos climáticos
ou enfrentar situações catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços
sociais e de protecção.
Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem
a migrações de animais e vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto,
por sua vez, afecta os recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados
também a emigrar com grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e dos seus
filhos.
É trágico o aumento de emigrantes em fuga
da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como
refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada
sem qualquer tutela normativa.
Infelizmente, verifica-se uma indiferença
geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes
partes do mundo.
A falta de reacções diante destes dramas
dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade
pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil.
26. Muitos daqueles que detêm mais
recursos e poder económico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar
os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns
impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais
efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos actuais de
produção e consumo.
Por isso, tornou-se urgente e imperioso o
desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão
de dióxido de carbono e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente,
por exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de
energia renovável.
No mundo, é exíguo o nível de acesso a
energias limpas e renováveis.
Mas ainda é necessário desenvolver
adequadas tecnologias de acumulação.
Entretanto, nalguns países, registaram-se
avanços que começam a ser significativos, embora estejam longe de atingir uma
proporção importante.
Houve também alguns investimentos em
modalidades de produção e transporte que consomem menos energia exigindo menor
quantidade de matérias-primas, bem como em modalidades de construção ou
restruturação de edifícios para se melhorar a sua eficiência energética. Mas
estas práticas promissoras estão longe de se tornar omnipresentes.
(cont)