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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XII
CAPÍTULO XIII
Resposta aos que acusam a criação do homem por ter chegado tão tarde.
Quando foi tratada a questão da origem do Mundo, respondemos aos que se recusam
a crer que o Mundo começou e não existiu sempre, como o próprio Platão expressamente
confessa, embora alguns lhe atribuam opinião contrária ao que deixou dito. Esta
mesma será a resposta, a propósito da primeira criação do homem, aos que perguntam
porque é que o homem não foi criado desde tempos inumeráveis e sem fim do
passado, mas tão tarde que, segundo a Escritura, nós contamos menos de seis mil
anos desde que o homem começou a existir. Se os impressiona a brevidade do tempo
que lhes parece feito de tão poucos anos desde que o homem apareceu, como se lê
nos nossos autorizados escritores, — pois fiquem a saber que nada que tem um termo
é de tão longa duração. Comparados a uma eternidade sem fim todos os períodos
de séculos que têm um termo devem ser tidos, não por exíguos, mas por nada. Se,
portanto, desde que o homem foi feito por Deus, decorreram, não digo cinco ou seis mil anos, mas sessenta ou
seiscentos mil, ou sessenta ou seiscentas vezes mais, ou seiscentas mil vezes
mais, ou multiplicarmos estas· quantidades por si mesmas até não haver algarismos
para exprimir tais quantidades — ainda se poderá perguntar da mesma forma
porque é que Deus o não fez mais cedo! Comparemos a abstenção divina anterior à
criação do homem na sua duração eterna e sem começo, a uma soma de períodos de tempo
por maior e inexprimível que seja, mas encerrada nos limites de um a
determinada duração e, portanto, finita, — esta soma nem sequer representa a
mais pequena gota de água de todo o mar que o Oceano abarca; porque estas duas
coisas — uma tão pequenina e a outra tão desmesuradamente grande — são ambos
finitas. Mas este período de tempo, por mais longo que seja, que parte de um começo
e pára num termo, comparado ao que não tem começo, já não sei se devemos tê-lo
por mínimo ou se tê-lo antes mesmo por nulo. Se, efectivamente, deste período,
a partir do seu termo, se subtraírem momentos extremamente pequenos, o seu número,
tão grande que já nem é exprimível, descerá, todavia; e subindo (como se a
partir do dia actual de um homem descontasses os seus dias subindo até ao seu
nascimento), a subtracção conduziria finalmente ao princípio do período. Mas se
duma duração que não teve começo se retirarem do passado, não digo instantes,
nem um a um, horas, dias, meses ou anos em grandes quantidades, mas períodos de
tempo tão longos que não seja possível a um especialista em cálculo medi-los em anos, — mesmo que, na realidade, estes se
esgotassem por subtracção de momentos, de instante em instante, — e se lhe
retirarem estes tão grandes períodos de tempo, não um a ou duas vezes nem
frequentem ente mas constantemente, — que acontece? Que é que se consegue? Nunca se chega ao começo, que começo não há.
É por isso que as questões que agora formulamos poderão os nossos descendentes
voltar a formulá-las com a mesma curiosidade após seiscentos mil anos se até lá
se prolongar esta raça mortal que vai nascendo e morrendo e se até então
continuar a sua ignorância e debilidade. E os que, antes de nós, viveram em
tempos próximos da criação do homem, poderiam ter levantado a mesma questão. Enfim,
no dia seguinte ao do próprio dia da sua criação, até o primeiro homem poderia
ter perguntado porque é que não fora criado mais cedo. E qualquer que fosse,
nos tempos anteriores, a data da sua criação, este problema do começo dos seres
temporais não teria encontrado entãoimportância diferente da de agora ou da de mais tarde.
CAPÍTULO XIV
O retorno dos séculos: alguns filósofos julgaram que, depois de completarem
um determinado ciclo de séculos, as coisas voltariam a existir na mesma ordem e
da mesma forma.
Alguns filósofos deste Mundo, para resolverem este problema, julgaram que não
havia outra possibilidade de solução senão a de admitirem períodos cíclicos de
tempo dentro dos quais a natureza seria constantemente renovada e repetida em todos
os seus seres. Assim se sucederiam sem paragem os movimentos periódicos dos
séculos que vêm e vão, — quer estas revoluções se cumpram num Mundo permanente quer, em
certas épocas, um Mundo que morre e que renasce apresente, sem cessar, como novos,
os mesmos seres passados e futuros. Deste jogo burlesco não pode escapar a alma
imortal, mesmo que tenha alcançado já a sabedoria: sem parar encaminhar-se-ia
para uma falsa beatitude e, sem parar, voltaria a uma autêntica miséria. Como é
que seria autêntica esta felicidade se a sua perenidade não é segura? É que
ou a alma desconhece a sua miséria
futura — e nesse caso vive numa lastimosa ignorância no meio da verdade, ou, se a acontece, vive roída de
temor no meio da felicidade. Mas se ela nunca mais voltar à
desgraça e caminhar para a beatitude — é porque aconteceu no tempo algo de novo
que não acabará no tempo. Porque é que não há-de ser assim o Mundo? E porque
não será assim também o homem criado no Mundo? Tomando o recto caminho da sã
doutrina evitar-se-iam todos estes rodeios de não sei que falsos ciclos
concebidos por falsos sábios enganosos.
Há os que invocam esta passagem de Salomão no livro chamado Eclesiastes:
Que é que ele foi? O mesmo que há-de ser. E que é que aconteceu? O
mesmo que há-de acontecer. Não há nada de novo sob o sol. Quem falará, quem
dirá — aqui está uma coisa nova? Ela
já existiu nos séculos que nos precederam.[i]
Segundo aqueles, tratar-se-ia desses ciclos que reconduzem todos os seres aos
mesmos estados. Isto disse-o ele ou das coisas que vem referindo mais acima,
isto é, das gerações que apareceram e desapareceram, dos cursos do Sol, da
queda das torrentes, ou então, com certeza, de todas as espécies de seres que
nascem e morrem. Efectivamente, houve homens antes de nós, há-os connosco e
homens haverá depois de nós. Da mesma forma quanto aos animais e plantas. Até os
próprios monstros, que raramente nascem, embora difiram entre si e alguns,
segundo se diz, sejam únicos. Todavia, esses seres estranhos e monstruosos,
como tais sempre existiram e sempre existirão: um monstro sob o Sol não é, pois,
coisa recente e nova que nasça. Outros interpretam estas palavras assim: o que
aquele sábio quis dizer foi que tudo já aconteceu na predestinação de Deus — e,
portanto, nada de novo haveria sob o Sol.
Está, porém, longe da nossa recta fé acreditar que Salomão quis significar com
tais palavras os famosos ciclos de acordo com os quais o tempo e as coisas temporais
se repetiriam com o um eterno rodopio. Assim, na escola da Academia de Atenas,
o filósofo Platão ensinou no seu século discípulos; da mesma forma nos
inumeráveis séculos do passado, com intervalos muito afastados, mas bem
definidos, na mesma cidade, na mesma escola, o mesmo Platão teria tido os
mesmos discípulos e voltaria a encontra-los no decurso de inúmeros, séculos do
futuro. Longe de nós, eu vo-lo digo, acreditar em tais coisas. Cristo morreu uma
só vez pelos nossos pecados
mas, tendo ressuscitado dos mortos, não morrerá mais e a
morte não voltará a dominá-lo.[ii]
E nós, depois da ressurreição, estarem os eternamente com o Senhor a quem agora
dirigimos as palavras que o Salmo Sagrado sugere:
Tu, Senhor, nos conservarás, tu nos guardarás desde
esta geração até à eternidade.[iii]
Mas parece-me que convém aos outros o que se segue:
os ímpios andarão às voltas.[iv]
Não é que a sua vida tenha de girar nos círculos da sua invenção — mas que Tal
é o caminho do seu erro, isto é, a sua falsa doutrina.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)