Tempo comum XIX Semana
Evangelho: Mt 18, 1-5. 10. 12-14
1 Naquela mesma ocasião aproximaram-se de Jesus os
discípulos, dizendo: «Quem é o maior no Reino dos Céus?». 2 Jesus,
chamando uma criança, pô-la no meio deles 3 e disse: «Na verdade vos
digo que, se não vos converterdes e vos tornardes como crianças, não entrareis
no Reino dos Céus. 4 Aquele, pois, que se fizer pequeno como esta
criança, esse será o maior no Reino dos Céus. 5 E quem receber em
Meu nome uma criança como esta, é a Mim que recebe.
10
Vede,
não desprezeis um só destes pequeninos, pois vos declaro que os seus anjos nos
céus vêem incessantemente a face de Meu Pai que está nos céus. 12
«Que vos parece? Se alguém tiver cem ovelhas, e uma delas se extraviar,
porventura não deixa as outras noventa e nove no monte, e vai em busca daquela
que se extraviou? 13 E, se acontecer encontrá-la, digo-vos em
verdade que se alegra mais por esta, do que pelas noventa e nove que não se
extraviaram. 14 Assim, não é a vontade de vosso Pai que está nos
céus que pereça um só destes pequeninos.
Comentário:
Para
uma esmagadora maioria da humanidade, a criança merece uma atenção e carinho
especiais.
Mesmo
o coração mais empedernido se deixa “tocar” pelas suas candura e fragilidade.
Ao
mesmo tempo, choca-se e sente revolta pelo mal – às vezes terrivelmente soez –
que alguns lhes infligem.
Na
verdade, talvez não queiram atingir directamente as crianças mas, sim, aqueles
que as amam.
Como
não sentirá o Senhor essas violências e desmandos que atingem os Seus
predilectos?
(ama,
comentário sobre Mt
18, 1-5; 10. 11-14, 2014.05.26)
Leitura espiritual
Magistério
cardeal joseph ratzinger
Algumas perguntas pessoais
…/4
A consciência
"infalível". 2
O
que mais me chocava nessa afirmação não era a ideia de uma consciência
equivocada concedida pelo próprio Deus para poder salvar os homens mediante
esse estratagema, isto é, a ideia de uma ofuscação enviada por Deus para a
salvação de alguns. O que me perturbava era a ideia de que a fé fosse uma carga
insuportável que só naturezas fortes poderiam suportar, quase um castigo ou, em
todo o caso, uma exigência difícil de cumprir. A fé não facilitaria a salvação,
antes a dificultaria. Livre seria aquele que não carregasse com a necessidade
de crer e de se dobrar ao jugo da moral que decorre da fé da Igreja Católica. A
consciência errónea, que permitiria uma vida mais leve e mostraria um caminho
mais humano, seria a verdadeira graça, o caminho normal da salvação. A falsidade
e o afastamento da verdade seriam melhores para o homem do que a verdade.
O
homem não seria libertado pela verdade, mas deveria ser libertado dela. A
morada do homem seria mais a obscuridade do que a luz, e a fé não seria um dom
benéfico do bom Deus, mas uma fatalidade.
Porém,
se as coisas fossem assim, como poderia surgir a alegria da fé? Como poderia surgir
a coragem de transmiti-la aos outros? Não seria melhor deixá-los em paz e
mantê-los distantes dela? Foram ideias como essa que paralisaram, cada vez com
mais força, atarefa evangelizadora. Quem encara a fé como uma carga pesada ou
como uma exigência moral excessiva não pode convidar outras pessoas a
abraçá-la. Preferirá deixá-los na suposta liberdade da sua boa consciência. [...]
O
que inicialmente me estarreceu no argumento mencionado foi, sobretudo, a caricatura
da fé que me pareceu haver nele. Mas, numa segunda consideração, pareceu-me
igualmente falso o conceito de consciência que pressupunha. A consciência
errónea protege o homem das exigências da verdade e o salva: assim soava o argumento.
A consciência não aparecia aí como uma janela que abre ao homem o panorama da verdade
comum que nos sustenta a todos, tornando possível que sejamos uma comunidade de
vontade e de responsabilidade apoiada na comunidade do conhecimento.
Nesse
argumento, a consciência também não era a abertura do homem ao fundamento que o
sustenta nem a força que lhe permite perceber o supremo e o essencial.
Tratava-se antes de uma espécie de invólucro protector da subjectividade [...]
que não dá acesso à estrada salvadora da verdade, a qual ou não existe ou é
exigente demais; e convertia-se assim em justificação da subjectividade, que
não se quer ver questionada, e do conformismo social que deve possibilitar a
convivência como valor médio entre as diversas subjectividades. Desapareciam
assim o dever de buscar a verdade e as dúvidas quanto às atitudes e costumes
dominantes: bastariam o conhecimento adquirido individualmente e a adaptação
aos outros. Reduzia-se o homem às convicções mais superficiais, e, quanto menor
a sua profundidade, melhor para ele. [...].
Pouco
depois, num debate entre um grupo de colegas sobre a força justificadora da consciência
errónea, alguém objectou contra essa tese que, se fosse universalmente válida,
estariam justificados - e deveríamos procurá-los no céu - os membros das SS que
cometeram os seus crimes com um conhecimento fanatizado e plena segurança de consciência.
[...] Não haveria a menor dúvida de que Hitler e os seus cúmplices, que estavam
profundamente convencidos do que faziam, não podiam ter agido de outra forma.
Apesar do horror objetivo das suas ações, teriam agido de maneira moralmente recta
do ponto de vista subjectivo. Como seguiam a sua consciência, embora esta os tivesse
guiado erroneamente, deveríamos reconhecer que as suas ações eram morais para
eles; não poderíamos duvidar, em suma, da salvação eterna das suas almas.
A
partir dessa conversa, passei a ter absoluta certeza de que há algum erro na
teoria sobre a força justificadora da consciência subjetiva; em outras
palavras, que um conceito de consciência que conduz a semelhantes resultados é
falso. A firme convicção subjectiva e a segurança e falta de escrúpulos que
dela derivam não tiram a culpa do homem. Quase trinta anos depois, lendo o
psicólogo Albert Görres, descobri, resumida em poucas palavras, a ideia que
então tentava penosamente reduzir a conceitos e cujo desenvolvimento forma o
núcleo das nossas reflexões. Görres indica que o sentimento de culpabilidade, a
capacidade de sentir culpa, pertence de forma essencial ao património anímico
do homem. O sentimento de culpa, que rompe a falsa tranquilidade da consciência
[...], é um sinal tão necessário para o homem como a dor corporal, que permite
conhecer a alteração das funções vitais normais. Quem não é capaz de sentir culpa
está espiritualmente doente, é um "cadáver vivente, uma máscara do
caráter", como diz Görres. [i]
"Os animais e os monstros, entre outros, não têm sentimentos de culpa.
Talvez Hitler, Himmler ou Stalin também não os tivessem. Com certeza, os chefões
da máfia também carecem deles. Mas é bem possível que, na verdade, os cadáveres
dos seus «eus» estejam ocultos no sótão, junto com os sentimentos de culpa rejeitados...
Todos os homens necessitam de um sentimento de culpa" [ii].
Além
do mais, uma rápida incursão na Sagrada Escritura poderia ter evitado esses diagnósticos
e as teorias da justificação pela consciência errónea. No Salmo 19, 13 encontramos
uma proposição eternamente digna de reflexão: "Quem será capaz de reconhecer
os seus deslizes? / Limpa-me, [Senhor,] dos [pecados] que me são ocultos".
Isso
não é um "objectivismo vetero-testamentário", mas profunda sabedoria
humana: negar-se a ver a culpa ou fazer emudecer a consciência em tantos
assuntos é uma doença da alma mais perigosa que a culpa reconhecida como culpa.
Aquele que é incapaz de perceber que matar é pecado cai mais baixo do que
aquele que reconhece a ignomínia da sua ação, pois está muito mais distante da
verdade e da conversão.
Não
é em vão que, diante de Jesus, o orgulhoso aparece como alguém verdadeiramente perdido.
O facto de o publicano, com todos os seus pecados indiscutíveis, parecer mais justo
diante de Deus que o fariseu, com todas as suas obras verdadeiramente boas (Lc 18,
9-14), não significa que os pecados do publicano não sejam pecados nem que não sejam
boas as obras boas. [...] O fundamento desse juízo paradoxal de Deus revela-se precisamente
a partir do nosso problema: o fariseu não sabe que também tem pecados.
Está
inteiramente quite com a sua consciência. Mas o silêncio da consciência torna-o
impermeável a Deus e aos homens, ao passo que o grito da consciência que aflora
no publicano torna-o capaz da verdade e do amor. Jesus pode actuar nos pecadores
porque não se fazem inacessíveis às mudanças que Deus espera deles - de nós -
escondendo-se atrás do biombo da sua consciência errónea. Mas não pode actuar
nos "justos", que não sentem necessidade nem de perdão nem de
conversão; a sua consciência, que os escusa, não acolhe nem o perdão nem a
conversão.
Voltamos
a encontrar esta mesma ideia, ainda que exposta de outro modo, em Paulo, que
nos diz que os gentios, quando guiados pela razão natural, sem Lei, cumprem os preceitos
da Lei (Rom 2, 1-16). Toda a teoria da salvação pela ignorância fracassa diante
desses versículos: no homem, existe a presença inegável da verdade, da verdade do
Criador, que se oferece também por escrito na revelação da História Sagrada. O homem
pode ver a verdade de Deus no fundo do seu ser criatural. É culpado se não a vê.
Só deixa de vê-la quando não quer vê-la, ou seja, porque não quer vê-la. Essa vontade
negativa que impede o conhecimento é culpa. Que o farol não brilhe é consequência
de um afastamento voluntário do olhar daquilo que não queremos ver.
Nesta
fase das nossas reflexões, é possível tirar as primeiras consequências para responder
à pergunta sobre o que é a consciência. Agora já podemos dizer: não é possível
identificar a consciência humana com a autoconsciência do eu, com a certeza subjectiva
de si e do seu comportamento moral. Essa consciência pode ser às vezes um mero
reflexo do meio social e das opiniões difundidas nele. Outras vezes, pode estar
relacionada com uma pobreza autocrítica, com não ouvir suficientemente a profundidade
da alma.
O
que se deu no Leste Europeu após a derrocada dos sistemas marxistas confirma
este diagnóstico. Os espíritos mais lúcidos e despertos dos povos libertados
falam de um imenso abandono moral, produzido por muitos anos de degradação
espiritual, e de um embotamento do sentido moral cuja perda -com os perigos que
acarreta - pesa muito mais que os danos económicos que a ideologia produziu.
O
novo patriarca de Moscovo pôs energicamente em evidência este aspecto, no
começo da sua actividade, no verão de 1990: as faculdades perceptivas dos
homens que vivem num sistema de engano turvam-se inevitavelmente. A sociedade
perde a capacidade de misericórdia e os sentimentos humanos desaparecem: [...]
"Temos de conduzir de novo a humanidade para os valores morais
eternos", isto é, desenvolver de novo o ouvido quase extinto para escutar
o conselho de Deus no coração do homem. O erro, a consciência errónea, só são
cómodos num primeiro momento. Depois, o emudecimento da consciência converte-se
em desumanização do mundo e em perigo mortal, se não se reage contra ele.
Por
outras palavras: a identificação da consciência com o conhecimento superficial
e a redução do homem à subjetividade não libertam, mas escravizam. Fazem-nos completamente
dependentes das opiniões dominantes e rebaixam dia após dia o nível dessas
mesmas opiniões dominantes. Aquele que iguala a consciência à convicção superficial
identifica-a com uma segurança aparentemente racional, tecida de fatuidade, conformismo
e negligência. A consciência degrada-se à condição de mecanismo de escusa, em
vez de representar a transparência do sujeito para refletir o divino, e, como consequência,
degrada-se também a dignidade e a grandeza do homem. A redução da consciência à
segurança subjectiva significa a supressão da verdade. Quando o salmista,
antecipando a visão de Isaías sobre o pecado e a justiça, pede a Deus que o liberte
dos pecados que lhe estão ocultos, chama a atenção para o seguinte facto:
deve-se, sem dúvida, seguir a consciência errónea, mas a supressão da verdade
que a precede, e que agora se vinga, é a verdadeira culpa, que adormece o homem
numa falsa segurança e por fim o deixa só num deserto inóspito [iii].
O
respeito humano, traição da própria consciência. O Juiz do mundo, que um dia
voltará para nos julgar a todos nós, está ali, aniquilado, insultado e inerme
diante do juiz terreno. Pilatos não é um monstro de maldade. Sabe que esse
condenado é inocente, e procura um modo de libertá-lo. Mas o seu coração está
dividido. E, por fim, faz prevalecer a sua posição, a si mesmo, acima do
direito. Também os homens que gritam e pedem a morte de Jesus não são monstros
de maldade. Muitos deles, no dia de Pentecostes, sentir-se-ão emocionados até o
fundo do coração (At 2, 37) quando Pedro lhes disser: a Jesus do Nazaré, homem
acreditado por Deus junto de vós \...\ vós o matastes, cravando-o na cruz pela
mão de gente perversa (At 2, 22-23). Naquele momento, porém, sofrem a
influência da multidão. Gritam porque os outros gritam e tal como os outros
gritam. E assim a justiça é espezinhada pela covardia, pela pusilanimidade,
pelo medo do diktat da mentalidade predominante. A voz subtil da consciência
fica sufocada pelos gritos da multidão. A indecisão, o respeito humano dão força
ao mal [iv].
Falsas
promessas. Cristo diz: Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vós sob disfarce
de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis.
Parece
uma advertência contra as seitas e heresias.
É
uma interpretação possível. Mas também é uma advertência contra qualquer regra fácil.
Jesus previne-nos contra os "curandeiros do espírito". Diz que a
nossa norma deve ser perguntarmo-nos: "Como vive essa pessoa? Quem é na
realidade? Que frutos produzem ele e o seu círculo? Analise isso e verá a que
conduz".
Essa
norma prática, ditada por Cristo à vista das circunstâncias do momento em que viveu,
projecta-se sobre a História. Pensemos nos pregadores da salvação do século passado,
quer se trate de Hitler ou dos pregadores marxistas; todos vieram e disseram: "Trazemo-vos
a justiça". No princípio, pareciam mansas ovelhas, mas acabaram sendo grandes
destruidores. Mas [a norma prática dos frutos] também diz respeito aos numerosos
pequenos pregadores que nos dizem: "Eu tenho a chave! Age assim e em pouco
tempo conseguirás a felicidade, a riqueza, o êxito".
William
Shakespeare, evidentemente um católico, viveu com intensidade a roda da existência.
Como bom pedagogo, no fim ofereceu uma recomendação, algo assim como a essência
do seu conhecimento mundano: "Compra tempo divino, vende horas do triste tempo
terrenal". São palavras sábias, como as que se esperam de um grande homem.
O tempo mais bem aproveitado é aquele que se transforma em algo duradouro: é o
tempo que recebemos de Deus e a Ele devolvemos. O tempo que é pura transição
desmorona e se transforma em mera caducidade [v].
Formar
a consciência. Certamente a fé cristã vai além daquilo que a pura razão é capaz
de reconhecer, mas faz parte das suas convicções fundamentais que Cristo é o Logos,
quer dizer, a razão criadora de Deus da qual procede o mundo e que se reflete
na nossa racionalidade. O apóstolo Paulo, que falou com tanta ênfase da
novidade e da unicidade do cristianismo, destacou ao mesmo tempo que o preceito
moral registado na Sagrada Escritura coincide com aquele que "está
inscrito nos nossos corações, segundo o testemunho da nossa consciência"
(Rom 2, 15). É verdade que, com frequência, esta voz do nosso coração, a
consciência, é sufocada pelos ruídos secundários da nossa vida.
A
consciência pode, por assim dizer, tornar-se cega. Precisamos assistir às
"aulas de recuperação" da fé, que voltam a despertá-la e assim tornam
novamente perceptível a voz do Criador em nós, suas criaturas [vi].
A
regra de ouro. O Sermão da Montanha não corresponde necessariamente às ideias tradicionais.
Opõe-se até às nossas definições de sorte, grandeza, poder, êxito ou justiça.
E,
no seu final, oferece aos ouvintes um resumo, quase que uma lei das leis, a
"regra de ouro" da vida. Diz assim: "Portanto, tudo o que
quiserdes que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles; porque esta é a
Lei e os Profetas".
A
regra de ouro já existia antes de Cristo, embora formulada de maneira negativa:
"Não faças a ninguém o que não queres que te façam". Jesus supera-a
com uma formulação positiva que, como é lógico, é muito mais exigente.
Na
minha opinião, o que assombra pela sua grandiosidade é que se deixam de lado as
comparações - quem fez o quê, quando, como, a quem -; que a pessoa já não se
perde em distinções, mas compreende a missão essencial que lhe foi confiada:
abrir bem os olhos, abrir o coração e encontrar as possibilidades criativas do
bem. Já não se trata de perguntar o que é que eu quero, mas de transpor para os
outros o meu querer. E esta entrega autêntica, com toda a sua fantasia
criativa, com todas as possibilidades que abre diante de nós, está recolhida
numa regra muito prática, para que não fique reduzida a um sonho idealista
qualquer. [vii]
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] A.
Görres, "Schuld und Schuldgefuhle", em Internationale katoliscke
Zeitschrift "Communio", 13 (1948), pág. 434
[iii] Verdad, valores,
poder, págs. 40-55
[iv]
Via-sacra no Coliseu, Primeira estação:
meditação. Departamento para as Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice,
Roma, 14.04.2005
[v] La fe, de tejas
abajo
[vi] Entrevista a Jaime
Antúnez Aldunate
[vii] Entrevista a Jaime
Antúnez Aldunate