CAPÍTULO IV
«ELE É O VERDADEIRO DEUS
E A VIDA ETERNA»
Divindade de Cristo e anúncio da
eternidade
2 . Cristo, síntese de eternidade e tempo
1.
Dos
dois “tempos” às duas “naturezas” de Cristo.
…/2
Logo que nos predispomos
para a tarefa de partirmos da Bíblia, na mira de um renovado anúncio sobre
Jesus Cristo, começamos a fazer descobertas surpreendentes. De facto, vemos
como são enormes as possibilidades que ela ainda oferece para um discurso
moderno e existencial sobre Cristo e, por conseguinte, sobre o homem, como
sementes preparadas para germinar e frutificar.
Os estudiosos da natureza e
das plantas ficam maravilhados perante tudo aquilo que está contido numa
pequena semente e que a ciência nela vai descobrindo cada vez mais. Se
tivéssemos de escrever todas as informações contidas numa semente, daí
resultaria uma espécie de enciclopédia. Tudo nela está programado até ao
pormenor. É como se fosse um computador natural, no qual se encontra memorizado
um volume incalculável de dados: como e quando germinar, que frutos dar, de que
cor e de que sabor, de que dimensões, como reagir a este ou àquele agente
estranho, como adaptar-se a um clima diferente. Por vezes estas informações
mantêm-se operantes durante séculos, se é verdadeira a notícia segundo a qual foram
encontrados grãos de trigo ainda com capacidade para germinar, nas antigas
pirâmides do Egipto.
Sob o impulso da actual
crise ecológica, veio a descobrir-se como um melhor conhecimento da semente,
dos seus recursos e dos seus aliados naturais, nos pode ajudar a intervir menos
violentamente sobre a planta, através de antiparasitários que não só envenenam
o terreno como também, a pouco e pouco, prejudicam a própria planta.
A mensagem revelada é também
ela uma semente.
O próprio Jesus compara-a «à
mais pequena de todas as sementes» [i] e
compara-Se a Si mesmo a um grão de trigo lançado à terra [ii].
Como a semente, também a
mensagem esconde em si recursos insuspeitos, os quais, depois de dois mil anos,
estão ainda bem longe de ser inteiramente explorados por nós.
Isto é válido de modo
particular para a cristologia.
No kerigma neotestamentário
a respeito de Cristo encontram-se encerradas “informações” que lhe permitem
voltar a florir em todas as estações da História e de «se aclimatar a todas as
culturas, sem nunca contrariar ou mudar de natureza. Ele possui em si próprio
as Suas defesas e não é mantido vivo por intervenções externas e humanas, de
natureza polémica e apologética.
Basta pô-lo em condições de
utilizar os seus recursos, não o confinando aos livros e às formulações
dogmáticas, como que numa estufa, mas, sim, pondo-o em contacto com o terreno
vivo e sempre renovado da História e fazendo-o reagir a ele.
Perguntemo-nos, então, como
é que se apresenta hoje este terreno vivo da História e o que tem de novo em
comparação com os tempos antigos quando o dogma cristológico foi determinado
pela primeira vez.
Não pretendo estar à altura
de definir em poucas palavras a índole própria da cultura moderna.
Penso, todavia, que posso
dizer alguma coisa.
O homem de hoje é o homem
que descobriu o “sentido histórico”, que se interessa mais pela existência que
pela essência, tanto sua como das coisas que se interessa mais pela liberdade
que pela natureza. Não cabe ao pregador do Evangelho se, isto é, um bem ou um
mal, um progresso ou retrocesso.
Ele deve tornar-se moderno
com os modernos, como São Paulo, São João e os Padres se tornaram «gregos com
os gregos» [iii].
No fundo, os homens da
antiguidade e os homens de hoje não divergem assim tão radicalmente entre si,
sobre a substância das coisas. Uns e outros estão interessados pelo seu destino
e “reagem” a uma mensagem, se esta os atingir no núcleo profundo da sua
existência onde jazem as mais importantes questões: “Quem somos? Donde vimos?
Para onde vamos?”.
Estas perguntas que o homem
de hoje se coloca a si mesmo, já o homem do século II depois de Cristo as punha
a si mesmo [iv].
O problema da salvação, isto
é, a soteriologia, é a porta de ingresso na cristologia. O que mudou foi
somente o modo como se apresenta esta necessidade de salvação.
Se antigamente se concebia a
salvação como a libertação do mundo e do corpo, hoje a salvação é sobretudo
concebida como redenção do mundo e do corpo, para além da alma.
Vejamos então o que é que o
dogma cristológico tem para dizer aos homens da nossa época, marcada como está
– assim se exprime o título de uma célebre obra filosófica deste século – pelo
problema da ”existência e tempo”.
São João, na sua primeira
carta, diz de Cristo:
«Nós estamos no verdadeiro
Deus e no Seu Filho Jesus Cristo: Ele é o verdadeiro Deus e a vida eterna» [v].
Estes dois conceitos, -
“verdadeiro Deus” e “vida eterna” - aplicados a Cristo, equivalem-se, quanto à
importância e frequência, nos escritos joaninos.
O pensamento antigo utilizou
deles, em sede dogmática, só o primeiro “verdadeiro Deus”, tendo extraído dele
a fórmula consagrada no símbolo de Niceia: «Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro».
Está ainda em grande parte
por explorar aquilo que significa, para a cristologia, dizer que Jesus é a
“vida eterna” e que n’Ele não apareceu na Terra somente a divindade, mas também
a eternidade.
Estamos perante uma daquelas
sementes que estão à espera de germinar, ou, como dizia no princípio deste
capítulo, perante um brado que espera para ser lançado sobre o corpo da Igreja.
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
[iv]
Cfr. Extractos de Teodoto, 78 (OCS
17,2, Berlim, 1970. P. 131