(Padre António
Vieira, Pregado em S. Luís do Maranhão,
três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino, Vos estis sal terrae.
S. Mateus, V, l3.)
Vós, diz Cristo, Senhor nosso,
falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra,
porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a
corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo
tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta
corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina;
ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a
doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os
pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa
salgar, e os ouvintes querem antes
imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e
os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa
salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é
tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não
salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há e fazer a este sal e que se há
e fazer a esta terra? O que se há e fazer ao sal que não salga, Cristo o disse
logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet
ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador
faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há e fazer, é lançá-lo fora como
inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o
mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de
reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que
deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o
que com a palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal
que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há de fazer? Este
ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a
resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a
mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava Santo António em Itália na
cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de
entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas
chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem
a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó
dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés
descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada
da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia?
Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a
covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se
rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o
auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias;
deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não
querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh
poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a
concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por
sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.
Se a Igreja quer que preguemos de
Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito
bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito
curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António
foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar
hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como
eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que
ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em
Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja,
e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito
clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a
esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho
colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele,
vós o sabeis e eu por vós o sinto.
Isto suposto, quero hoje, à
imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não
aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os
demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto
que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça.
Ave Maria.
Enfim, que havemos de pregar hoje
aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades
de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador,
que é serem gente os peixes que se não há de converter. Mas esta dor é tão
ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei
hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus
parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
Vos estis sal terrae. Haveis de
saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades,
as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que
se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso
pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma
é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e
repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos
homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da
Igreja S. Basílio: Non carpere solum,
reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt
imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes,
senão também que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede
de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes
bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt
bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que
louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza,
dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as
vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira
satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que
experimentá-las depois de mortos.
Começando pois, pelos vossos
louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas
viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou
primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós
primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos
os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes
poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis,
universaeque terrae. Entre todos os animais do Mundo, os peixes são os mais
e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as
dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante
com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos
os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit
Deus cete grandia. E os três músicos da fornalha da Babilónia o cantaram
também como singular entre todos: Benedicite,
cete et omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores,
estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó
peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é
também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.
Vindo pois, irmãos, às vossas
virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me
oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos
pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com
que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António. Oh grande louvor
verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens! Os
homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se
pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à
vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável
concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando
com silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento)
o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e
visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão
quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes
irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em
feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os
homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão.
Muito louvor mereceis, peixes, por
este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto
mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador
do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande
tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens
lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às
praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível
que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os
ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto
melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar,
e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.
Mas porque nestas duas acções teve
maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas
que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos
peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem
domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito,
o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os
tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves
que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o
açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as
unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário,
lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se
escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem
tão pequeno que não fuja dele. Os autores comumente condenam esta condição dos
peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui
diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e
me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais
longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre!
Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito
embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na
sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o
açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo;
contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela;
preze-se o boi de lhe chamarem formoso
ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro;
glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da
espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no
bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós,
peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim,
mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda
esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não
tendes memória.
No tempo de Noé sucedeu o dilúvio
que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram melhor? Dos
leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das
águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes?
Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos
que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele
universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão
morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros
animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os
homens, os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer
que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram
todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que,
infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era
um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo
pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele
houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse que da
companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam
mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram
livres.
Vede, peixes, quão grande bem é
estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra
do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se
isto vos pregou também Santo António – e foi este um dos benefícios de que vos
exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto
mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou
a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua
clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro
deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder
dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando
sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido
nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos
no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um
ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim
acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado
dos homens.
Isto é, peixes, em comum o natural
que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou o parabém, não sem
inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se houvera de discorrer
pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez admirável em cada um de
vós. De alguns somente farei menção. E o que tem o primeiro lugar entre todos,
como tão celebrado na Escritura, é aquele santo peixe de Tobias a quem o texto
sagrado não dá outro nome que de grande, como verdadeiramente o foi nas
virtudes interiores, em que só consiste a verdadeira grandeza. Ia Tobias
caminhando com o anjo S. Rafael, que o acompanhava, e descendo a lavar os pés
do pó do caminho nas margens de um rio, eis que o investe um grande peixe com a
boca aberta em ação de que o queria tragar. Gritou Tobias assombrado, mas o
anjo disse-lhe que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra;
que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de
servir muito. Fê-lo assim Tobias, e perguntando que virtude tinham as entranhas
daquele peixe que lhe mandara guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para
sarar da cegueira e o coração para lançar fora os demônios: Cordis eius
particulam, si super carbones ponas,
fumus eius extricat omne genus daemoniorum: et fel valet ad ungendos oculos, in
quibus fuerit albugo, et sanabuntur. Assim o disse o anjo, e assim o
mostrou logo a experiência, porque, sendo o pai de Tobias cego, aplicando-lhe o
filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista; e tendo um
demônio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo
Tobias; e queimando na casa parte do coração, fugiu dali o Demônio e nunca mais
tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a cegueira a Tobias, o velho, e
lançou os demônios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão bom coração e de
tão proveitoso fel, quem o não louvará mais? Certo que se a este peixe o
vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de
Santo António.
Abria Santo António a boca contra
os hereges, e enviava-se a eles, levado do fervor e zelo da fé e glória divina.
E eles que faziam? Gritavam como Tobias e assombravam-se com aquele homem e
cuidavam que os queria comer. Ah homens, se houvesse um anjo que vos revelasse
qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vos amarga, quão proveitoso e
quão necessário vos é! Se vós lhe
abrísseis esse peito e lhe vísseis as entranhas, como é certo que havíeis de
achar e conhecer claramente nelas que só duas cousas pretende de vós, e
convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os
demônios fora de casa.
Pois a quem vos quer tirar as cegueiras,
a quem vos quer livrar dos demônios perseguis vós?! Só uma diferença havia
entre Santo António e aquele peixe: que o peixe abriu a boca contra quem se
lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não queriam lavar.
Ah moradores do Maranhão, quanto
eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede
este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego
aos peixes.
Passando dos da Escritura aos da
história natural, quem haverá que não louve e admire muito a virtude tão
celebrada da rémora? No dia de um santo menor, os peixes menores devem preferir
aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão
pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que não sendo maior de um
palmo, se pega ao leme de uma nau da Índia, apesar das velas e dos ventos, e de
seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem
se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera uma rémora na terra, que
tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos haveria na vida e que
menos naufrágios no Mundo!
Se alguma rémora houve na terra,
foi a língua de Santo António, na qual, como na rémora, se verifica o verso de
São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem
parva est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua
eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da nau e ao freio do cavalo.
Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da rêmora, a
qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme. E tal foi a virtude
e força da língua de Santo António. O
leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes
obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão
desobediente e rebelde, mostrou a língua de António quanta força tinha, como
rêmora, para domar a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo fortuna na
nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é
vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de António,
como rêmora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como
mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos,
embarcados na nau Vingança, com a artilharia abocada e os botafogos acesos,
corriam infunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique se
a rêmora da língua de António lhes dão detivesse a fúria, até que, composta a
ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando
na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as
costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com
perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de António os não fizesse
parar, como rêmora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e
tomassem porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração,
sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e
deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Sila, ou em
Caribdes, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rémora da língua de António
os não contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusessem em vista.
Esta é a língua, peixes, do vosso
grande pregador, que também foi rêmora vossa, enquanto o ouvistes; e porque
agora está muda (posto que ainda se
conserva inteira) se vêem e choram na terra tantos naufrágios.
Mas para que da admiração de uma
tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja de outra não menor,
admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos
chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista;
mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem.
Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em
lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior,
mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a
virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da
cana ao braço do pescador.
Com muita razão disse que este
vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso
elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na
terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que
pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!
Pudera-se fazer problema; onde há
mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é
certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande
consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o
instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e
tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões
e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e
reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de tanto peso,
lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera a língua de
Santo António, eu os fizera tremer.
Vinte e dois pescadores destes se
acharam acaso a um sermão de Santo António, e às palavras do Santo os fizeram
tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se lançaram a seus pés; todos,
tremendo, confessaram seus furtos;
todos, tremendo, restituíram o que podiam (que isto é o que faz tremer mais
neste pecado que nos outros); todos enfim mudaram de vida e de ofício e se
emendaram. Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com
um, que não sei se foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a pregar. A
verdade é que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera.
Navegando de aqui para o Pará (que é bem não fiquem de fora os peixes da nossa
costa), vi correr pela tona da água de
quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me
dissessem que os Portugueses lhe chamavam quatro-olhos, quis averiguar
ocularmente a razão deste nome, e achei que verdadeiramente têm quatro olhos,
em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade
de sua divina providência para contigo; pois às águias, que são os linces do
ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também
dois; e a ti, peixezinho, quatro.
Mais me admirei ainda,
considerando nesta maravilha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de
vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde
permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há
tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão
profundo o abismo de seus juízos!
Filosofando, pois, sobre a causa
natural desta providência, notei que aqueles quatro olhos estão lançados um
pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como os dois vidros de
um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior olham direitamente
para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo. E a razão desta nova
arquitetura, é porque estes peixinhos, que sempre andam na superfície da água,
não só são perseguidos dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande
quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e inimigos
no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois alhos, que
direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que
direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.
Oh que bem informara estes quatro
olhos uma alma racional, e que bem empregada fora neles, melhor que em muitos
homens! Esta é a pregação que me fez aquele peixezinho, ensinando-me que, se
tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente
para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me que
há Inferno. Não me alegou para isso passo da Escritura; mas então me ensinou o
que quis dizer David em um, que eu não entendia: Averte oculos meos, ne videant
vanitatem. «Voltai-me, Senhor, os olhos, para que não vejam a vaidade.»
Pois David não podia voltar os
seus olhos para onde quisesse?! Do modo que ele queria, não. Ele queria
voltados os seus olhos, de modo que não vissem a vaidade, e isto não o podia
fazer neste Mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste
Mundo «tudo é vaidade»: Vanitas vanitatum
et omnia vanitas. Logo, para não verem os olhos de David a vaidade,
havia-lhos de voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para o outro Mundo
em ambos seus hemisférios; ou para o de cima, olhando direitamente só para o
Céu, ou para o de baixo, olhando direitamente só para o Inferno. E esta é a
mercê que pedia a Deus aquele grande profeta, e esta a doutrina que me pregou
aquele peixezinho tão pequeno.
Mas ainda que o Céu e o Inferno se
não fez para vós, irmãos peixes, acabo, e dou fim a vossos louvores, com vos
dar as graças do muito que ajudais a ir ao Céu, e não ao Inferno, os que se
sustentam de vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas e os Buçacos, e todas
as santas famílias, que professam mais rigorosa austeridade; vós os que a todos
os verdadeiros cristãos ajudais a levar a penitência das quaresmas; vós aqueles
com que o mesmo Cristo festejou a Páscoa as duas vezes que comeu com seus discípulos
depois de ressuscitado. Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer
esplêndidos e custosos os banquetes dos ricos, e vós gloriai-vos de ser
companheiros do jejum e da abstinência dos justos! Tendes todos quantos sois
tanto parentesco e simpatia com a virtude, que, proibindo Deus no jejum a pior
e mais grosseira carne, concede o melhor e mais delicado peixe. E posto que na semana só dois se chamam vossos,
nenhum dia vos é vedado. Um só lugar vos deram os astrólogos entre os signos
celestes, mas os que só de vós se mantêm na terra, são os que têm mais seguros
os lugares do Céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento, cuja fecundidade
entre todos é própria do Espírito Santo:
Spiritus Domini foecundabat aquas.
Deitou-vos Deus a bênção, que
crescêsseis e multiplicásseis; e para que o Senhor vos confirme essa bênção,
lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio. Entendei que no
sustento dos pobres tendes seguros os vossos aumentos. Tomai o exemplo nas
irmãs sardinhas. Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são sustento
de pobres. Os solhos e os salmões são muito contados, porque servem à mesa dos
reis e dos poderosos; mas o peixe que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o
mesmo Cristo os multiplica e aumenta. Aqueles dois peixes companheiros dos
cinco pães do deserto, multiplicaram tanto, que deram de comer a cinco mil
homens. Pois se peixes mortos, que sustentam os pobres, multiplicam tanto,
quanto mais e melhor o farão os vivos! Crescei, peixes, crescei e multiplicai,
e Deus vos confirme a sua bênção.
Antes, porém, que vos vades, assim
como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões.
Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me
desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é
este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros,
senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal.
Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas
como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só
grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque
cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com
suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos
outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo
todos criados no mesmo elemento, todos
cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo
Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo,
mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e
abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a
terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e
para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais
que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito
mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar,
vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer
as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo
aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer e como se hão de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e
comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os
legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos
defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o
sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe
dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que,
cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra,
e já o tem comido toda a terra.
Já se os homens se comeram somente
depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento.
Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que
também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis
saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais
comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job destes?
Vede um homem desses que andam
perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo.
Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o
solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha,
come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os
homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão
depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado
nem sentenciado, e já está comido.
E para que vejais como estes
comidos na terra são os pequenos, e pelos
mesmos modos com que vós comeis no
mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne
cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut
cibum panis? «Cuidais,
diz Deus, que
não há de
vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido
aqueles que cometem a maldade?» E que maldade é esta, à qual Deus singularmente
chama maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles que a
cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem
são os maiores, que comem os pequenos: Qui
devorant plebem meam, ut cibum panis.
Nestas palavras, pelo que vos
toca, importa, peixes, que advirtais
muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que
comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem
meam , porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos
podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz
que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm
o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os
pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos
inteiros: Qui devorant plebem meam. E
de que modo os devoram e comem? Ut cibum
panis: não como os outros comeres, senão como pão.
A diferença que há entre o pão e
os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias
de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de
todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os
pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com
tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo
nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não
defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Parece-vos bem isto, peixes?
Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não,
e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre
os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os
maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão
os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de
dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os
homens.
Se cuidais, porventura, que estas
injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como
Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os
mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando
menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos
miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de
governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá
traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos.
Assim foi; mas, se entre vós se
acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a
Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que
esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros
maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da divina justiça tão
antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram:
Vos quibus rector maris, atque terrae Ius dedit magnum necis, atque vitae;
Ponite inflatos, tumidosque vultus; Quidquid a vobis minor extimescit, Maior
hoc vobis dominus minatur.
Notai, peixes,
aquela definição de
Deus: Rector maris atque
terrae:
«Governador do mar e da terra»;
para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com homens na terra,
observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não
façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande Doutor da Igreja Santo
Ambrósio, quando, falando convosco, disse: Cave
nedum alium insequeris, incidas in validiorem: «Guarde-se o peixe que
persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte», que o
engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo atrás do bagre,
como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com
quatro ordens de dentes, que o há de engolir de um bocado. E o que com maior
elegância vos disse também Santo Agostinho: Praedo minoris fit praeda maioris.
Mas não bastam, peixes, estes exemplos para que acabe de se persuadir a vossa
gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o
castigo na voracidade dos grandes?
Já que assim o experimentais com
tanto dano vosso, importa que de aqui por diante sejais mais repúblicos e
zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada
um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão
diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de
fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os
pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer
guerra por tantos modos?! Não vedes que contra vós se emalham e entralham as
redes, contra vós se tecem as nassas, contra vós se torcem as linhas, contra
vós se dobram e farpam os anzóis, contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes
que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos
basta, pois, que tenhais tantos e tão
armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas a dentro o
haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e
comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum
dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos
das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e
muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois
continuai assim, e sereis felizes.
Dir-me-eis (como também dizem os
homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre
vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito
abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que
vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e
não estatuto da natureza. Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio
do Mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as
espécies se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do
dilúvio, porque, tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam
conservar, se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos
viveram juntos dentro na arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a
perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá
tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do
paiol comum que Noé lhes repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais
cálidos foram capazes desta temperança, porque o não serão os da água? Enfim,
se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e
aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude
sem necessidade e será maior virtude.
Outra cousa muito geral, que não
tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão notável
ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para
estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado
e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água,
e em o vendo o peixe, arremete cego a ele
e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no
convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira
que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?
Dir-me-eis que o mesmo fazem os
homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se
os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque
houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade
entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os
homens. E que faz a vaidade? Põe por isco na ponta desses piques, desses chuços
e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de
Malta, ou verde, que se chama de Avis. ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os
homens, por chegarem a passar esse
retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E
depois que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra
ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol
para pescar outros.
Por este exemplo vos concedo,
peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi
este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que
se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos.
Mas nem por isso vos negarei que
também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais
ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um
homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com
quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes
passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores
da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes
sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos
trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano,
e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento.
Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no
tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches,
nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os
lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda
a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.
Não é isto, meus peixes, grande
loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis
negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano,
quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou
de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e
doiradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam
ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira
deixardes-vos enganar ou deixardes-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de
pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pode enganar o Mundo com essas
vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se
preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cônego regrante; e
depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa
aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela
corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram
sisudos.
Descendo ao particular, direi
agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa
costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu
tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns
peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de
coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de
roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não
ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto
não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem
particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam.
S. Pedro, a quem muito bem
conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra
um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na
bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco.
Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro
que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer se fosse
necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e
bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já
tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no
horto que vigiasse, e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou- o dormindo
com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha
blasonado: Sic non potuisti una hora vigilare mecum ? Vós, Pedro, sois o
valente que havíeis de morrer por mim, «e não pudestes uma hora vigiar comigo»?
Pouco há, tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar
antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos
roncadores? Se isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor
peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem
roncar.
Se as baleias roncaram, tinha mais
desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas baleias não
seria essa arrogância segura. O que é a baleia entre os peixes, era o gigante
Golias entre os homens. Se o rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação
com o Oceano, como devem ter, pois dele manam todos, bem deveis de saber que
este gigante era a ronca dos Filisteus. Quarenta dias contínuos esteve armado
no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe
atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela arrogância? Bastou um
pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele em terra. Os arrogantes
e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo.
Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António.
Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas
incham: o saber e o poder. Caifás roncava de saber: Vos nescitis quidquam .
Pilatos roncava de poder: Nescis quia potestatem habeo? E ambos contra Cristo.
Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já vos disse, e
tanto poder, como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o
ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais blasonar disso. E porque tanto
calou, por isso deu tamanho brado.
Nesta viagem, de que fiz menção, e
em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes
tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido esta
ronha e pegado também aos peixes. Pegadores se chamam estes de que agora falo,
e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros
maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados. que jamais os desferram.
De alguns animais de menos força e indústria se conta que vão seguindo de longe
aos leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem
estes pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe
grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas,
e assim lhes sustenta o peso e mais a fome.
Este modo de vida, mais astuto que
generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o
aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos Portugueses o navegaram;
porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado
de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhes matem a fome, de que
lá não tinham remédio. Os menos ignorantes, desenganados da experiência,
despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à
mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos pegadores do
mar.
Rodeia a nau o tubarão nas
calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele,
que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros.
Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se
furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia
companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos;
enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores.
Parece-me que estou ouvindo a S.
Mateus, sem ser apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto
Herodes, diz o Evangelista, apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe que
já se podia tornar para a pátria, porque «eram mortos todos aqueles que queriam
tirar a vida ao Menino»: Defuncti sunt
enim qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo
menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus
aderentes, todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna. Pois é possível que
todos estes morressem juntamente com Herodes?! Sim: porque em morrendo o
tubarão, morrem também com ele os pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt qui quaerebant animam Pueri.
Eis aqui, peixinhos ignorantes e
miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o
exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o
de Santo António.
Deus também tem os seus pegadores.
Um destes era David, que dizia: Mihi
autem adhaerere Deo bonum est. Peguem-se outros aos grandes da terra, que
«eu só me quero pegar a Deus». Assim o fez também Santo António; e senão, olhai
para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele.
Verdadeiramente se pode duvidar qual dos dois é ali o pegador: e parece que é
Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão
pequenino, para se pegar a António. Mas António também se fez menor, para se
pegar mais a Deus. Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é
imortal, seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros, que
ainda no caso em que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não
morressem todos os que se pegassem a ele: Si ego me quaeritis, sinite hos
abire.
«Se me buscais a mim, deixai ir a
estes.» E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus
peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra,
que quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal
sorte que morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore,
em que era significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu
descansavam sobre os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à sua
sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos: mas também diz que, tanto
que foi cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram.
Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis
por eles, nem morrais com eles.
Considerai, pegadores vivos, como
morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão
morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior
ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque
comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a
maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia
pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o
pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que
hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos
desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da vossa
ignorância com quanta água tem o mar.
Com os voadores tenho também uma
palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para
peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar
para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois
peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as
vossas escamas, e conhecereis que não sois aves, senão peixes, e ainda entre os
peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos
outros de vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso
haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas ainda mal, porque tantas vezes vos
desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por
isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes, do alto mata-os o anzol ou
a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso
capricho. Vai o navio navegando e o marinheiro dormindo, e o voador toca na
vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e
engana-os a isca; ao voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento.
Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima
das entenas e cair morto!
Grande ambição é que, sendo o mar
tão imenso, lhe não basta a um peixe tão
pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o
castigo da ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o
mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para
ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como
correu pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as
barbatanas, e agora jazes em um convés
amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és
ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não
quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um
com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não
viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água,
mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.
À vista deste exemplo, peixes,
tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o
que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe
nem nade. Ouvi o caso de um voador da terra: Simão Mago, a quem a arte mágica,
na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se que ele era o verdadeiro
filho de Deus, sinalou o dia em que aos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu,
e com efeito começou a voar mui alto; porém a oração de S. Pedro, que se achava
presente, voou mais depressa que ele, e caindo lá de cima o mago, não quis Deus
que morresse logo, senão que aos olhos também de todos quebrasse, como quebrou,
os pés.
Não quero que repareis no castigo,
se não no género dele. Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também
estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o
merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os
braços, se não os pés?! Sim, diz S. Máximo, porque quem tem pés para andar e
quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o
Santo Padre: Ut qui paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset;
et qui pennas assumpserat, plantas amitteret. Se Simão tem pés e quer asas,
pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas para que não voe, e também
os pés, para que não ande. Eis aqui, voadores do mar, o que sucede aos da
terra, para que cada um se contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo
nos rios, depois que Ícaro se afogou no Danúbio não haveria tantos Ícaros no
Oceano.
Oh alma de António, que só vós
tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e não para
cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela mulher cujo ornato gastou todas as
luzes ao Firmamento, e diz que «lhe foram
dadas duas grandes asas de águia»: Datae
sunt mulieri alae duae aquilae magnae. E para quê? Ut volaret in desertum:
«Para voar ao deserto.» Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo
Profeta grande maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparauit in caelo, mulier amicta sole. Pois se a
mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao
deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para subir são
muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as de Santo António.
Deram-se à alma de Santo António duas asas de águia, que foi aquela duplicada
sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não
estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas que,
sendo a Arca do Testamento, era reputado, como já vos disse, por leigo e sem
ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra), imitai o vosso santo
pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não
as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela ou
algum costado; encolhei-as para descer, ide- vos meter no fundo em alguma cova;
e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros.
Mas já que estamos nas covas do
mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas
queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo com
aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios
estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a
mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou
desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores
da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste
esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de
todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são gala, no
polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e
artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se
está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor
da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da
traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada
dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo
prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas
abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que
prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as
cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a
traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo- se a
si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz,
para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade,
pois Judas em tua comparação já é menos traidor!
Oh que excesso tão afrontoso e tão
indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água,
espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu! Lá disse o Profeta por
encarecimento, que «nas nuvens do ar até a água é escura»: Tenebrosa aqua in
nubibus aeris. E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a
escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento é
sempre clara, diáfana e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem
dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com
tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto,
tão enganoso e tão conhecidamente traidor!
Vejo, peixes, que pelo conhecimento
que tendes das terras em que batem os vossas mares, me estais respondendo e
convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes,
ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. E sobre o mesmo sujeito
que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito
própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande confusão, porém,
vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois não o posso negar. Mas
ponde os olhos em António, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar
da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou
engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava
antigamente ser português, não era necessário ser santo.
Tenho acabado, irmãos peixes, os
vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas
obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra: Vos estis sal terrae. Só
resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles
são tão esparcelados e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à
costa muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece.
Importa, pois, que advirtais, que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo,
porque todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados
e malditos.
Esta pena de excomunhão, que é
gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas
vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido por esta
lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto
começam a definhar, até que acabam miseravelmente.
Mandou Cristo a S. Pedro que fosse
pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que
pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que
ele era o primeiro, do preço dele e dos outros podia fazer o dinheiro com que
pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso. Com
que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe e que seja ele
o que morra primeiro que os demais?
Ora estai atentos. Os peixes não
batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa
vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio
que fizera naufrágio naqueles mares. E
quis mostrar o Senhor que as penas que S. Pedro ou seus sucessores
fulminam contra os homens que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes
por seu modo as incorrem morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo
dinheiro que engoliram atravessado na garganta.
Oh que boa doutrina era esta para
a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais miserável
morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é pecado de que
o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E posto que os
homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo
apressam a sua temporal, como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se
não abstêm dos bens dos naufragantes.
Com esta última advertência vos
despeço, ou me despeço de vós, meus peixes. E para que vades consolados do
sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma
desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se
publicou o Levítico. Na lei eclesiástica ou ritual do Levítico, escolheu Deus certos
animais que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos eles ou animais
terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos sacrifícios. E
quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de grande desconsolação e
sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre, que mereceu dar
a matéria ao primeiro sacramento? O motivo principal de serem excluídos os
peixes, foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes
geralmente não, senão mortos; e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça,
nem chegue aos seus altares. Também este ponto era muito importante e
necessário aos homens, se eu lhes pregara a eles. Oh quantas almas chegam
àquele altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar, estando em pecado
mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque
melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto. Os outros animais ofereçam
a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao sacrifício; os
outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito e a
reverência.
Ah peixes, quantas invejas vos
tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas
mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço
muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto
melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as
palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro,
mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis
a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e
conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e
eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e
podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes; eu
espero que o hei de ver; mas com que rosto hei de aparecer diante do seu divino
acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase estou por dizer que me fora
melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as mesmas obrigações, disse a
Suma Verdade, que «melhor lhe fora não nascer homem»: Si natus non fuisset homo
ille. E pois os que nascemos homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso
nascimento, contentai-vos, peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso.
Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino: «Louvai, peixes, a Deus, os
grandes e os pequenos», e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o
todos uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número.
Louvai a Deus, que vos distinguiu
em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade e
formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os instrumentos
necessários à vida; louvai a Deus, que vos deu um elemento tão largo e tão
puro; louvai a Deus, que, vindo a este Mundo, viveu entre vós, e chamou para si
aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a
Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus,
enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim
como no princípio vos deu sua bênção, vo-la dê também agora. Amen. Como não
sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.
FIM