Tempo comum XXIV Semana
Evangelho:
Lc 8, 1-3
1 Em seguida Jesus
caminhava pelas cidades e aldeias, pregando e anunciando a boa nova do reino de
Deus; andavam com Ele os doze 2 e algumas mulheres que tinham sido
livradas de espíritos malignos e de doenças: Maria, chamada Madalena, da qual
tinham saído sete demónios, 3 Joana, mulher de Cusa, procurador de
Herodes, Susana, e outras muitas, que os serviam com os seus bens.
Comentário:
É preciso caminhar por todos os
caminhos da terra que nos estão indicados como nossa rota para a meta.
Necessitamos ir a todos os lugares e contactar com todas as pessoas que, talvez
sem o sabermos, esperam por nós. Temos de levar-lhes o Evangelho, a doutrina, o
alento e auxílio que pudermos para que conheçam melhor e verdadeiramente se
apaixonem por Cristo.
Ele urge-nos a que o façamos e
levemos a cabo com obras de apostolado constante, sorridente e eficaz.
(ama, comentário
sobre Lc 8, 1-3, 2010.09.03)
Leitura espiritual
Documentos do Magistério
Sermão do Espírito Santo
Padre António Vieira
III
Aplicando
agora esta doutrina universal ao particular da terra em que vivemos, digo que,
se em outras terras é necessário aos apóstolos, ou aos sucessores do seu
ministério, muito cabedal de amor de Deus para ensinar, nesta terra, e nestas
terras é ainda necessário muito mais amor de Deus que em nenhuma outra. E por
quê? Por dois princípios: o primeiro, pela qualidade das gentes; o segundo,
pela dificuldade das línguas.
Primeiramente,
pela qualidade da gente, porque a gente destas terras é a mais bruta, a mais
ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de
quantas há no mundo. Bastava por prova a da experiência, mas temos também —
quem tal cuidara! — a do Evangelho. A forma com que Cristo mandou pelo mundo a
seus discípulos, diz o evangelista S. Marcos que foi esta: Exprobavit
incredulitatem eorum, et duritiam cordis, quia iis, qui viderant eum
resurrexisse, non crediderunt, et dixit illis: Euntes in mundum universum
praedicate Evangelium omni creaturae (Mc. 16,14 s): Repreendeu Cristo aos
discípulos da incredulidade e dureza de coração, com que não tinham dado
crédito aos que o viram ressuscitado, e sobre esta repreensão os mandou que
fossem pregar por todo o mundo. — A S. Pedro coube-lhe Roma e Itália; a S.
João, a Ásia Menor; a São Tiago, Espanha; a S. Mateus, Etiópia; a S. Simão,
Mesopotâmia; a S. Judas Tadeu, o Egito; aos outros, outras províncias, e
finalmente a Santo Tomé esta parte da América em que estamos, a que vulgar e
indignamente chamaram Brasil. Agora pergunto eu: e por que nesta repartição
coube o Brasil a Santo Tomé e não a outro apóstolo? Ouvi a razão.
Notam
alguns autores modernos que Cristo notificou os apóstolos a pregação da fé pelo
mundo, depois de os repreender da culpa da incredulidade, para que os trabalhos
que haviam de padecer na pregação da fé fossem também em satisfação e como em
penitência da mesma incredulidade e dureza de coração que tiveram em não quererem
crer: Exprobavit incredulitatem eorum, et duritiam cordis, et dixit illis:
Euntes in mundum universum. E como São Tomé, entre todos os apóstolos, foi o
mais culpado da incredulidade, por isso a São Tomé lhe coube, na repartição do
mundo, a missão do Brasil, porque, onde fora maior a culpa, era justo que fosse
mais pesada a penitência. Como se dissera o Senhor: os outros apóstolos, que
foram menos culpados na incredulidade, vão pregar aos gregos, vão pregar aos
romanos, vão pregar aos etíopes, aos árabes, aos armênios, aos sarmatas, aos
citas; mas Tomé, que teve a maior culpa, vá pregar aos gentios do Brasil, e
pague a dureza de sua incredulidade com ensinar à gente mais bárbara e mais
dura. Bem o mostrou o efeito. Quando os portugueses descobriram o Brasil,
acharam as pegadas de Santo Tomé estampadas numa pedra, que hoje se vê nas
praias da Bahia; mas rasto, nem memória da fé que pregou Santo Tomé, nenhum
acharam nos homens. Não se podia melhor provar e encarecer a barbaria da gente.
Nas pedras, acharam-se rastos do pregador, na gente não se achou rasto da
pregação; as pedras conservaram memórias do apóstolo, os corações não
conservaram memória da doutrina.
A
causa por que as não conservaram, diremos logo, mas é necessário satisfazer
primeiro a uma grande dúvida, que contra o que imos dizendo se oferece. Não há
gentios no mundo que menos repugnem à doutrina da fé, e mais facilmente a
aceitem e recebam, que os brasis; como dizemos logo, que foi pena da
incredulidade de Santo Tomé o vir pregar a esta gente? Assim foi — e quando
menos, assim pode ser — e não porque os brasis não creiam com muita facilidade,
mas porque essa mesma facilidade com que creem faz que o seu crer, em certo
modo, seja como o não crer. Outros gentios são incrédulos até crer; os brasis,
ainda depois de crer, são incrédulos. Em outros gentios a incredulidade é
incredulidade, e a fé é fé; nos brasis a mesma fé ou é, ou parece
incredulidade. São os brasis como o pai daquele lunático do Evangelho, que
padecia na fé os mesmos acidentes que o filho no juízo.
Disse-lhe
Cristo: Omnia possibilia sunt credenti (Mc. 9,22): Que tudo é possível a quem
crê. — E eles respondeu: Credo, Domine, adjuva incredulitatem meam: Creio,
Senhor, ajudai minha incredulidade.
—
Reparam muito os santos nos termos desta proposição, e verdadeiramente é muito
para reparar.
Quem
diz: creio, crê e tem fé; quem diz: ajudai minha incredulidade, não crê e não
tem fé. Pois como era isto? Cria este homem, e não cria; tinha fé, e não tinha
fé juntamente? Sim, diz o Venerável Beda: Uno eodemque tempore his, qui nondum
perfecte crediderat, simul et credebat, et incredulus erat: No mesmo tempo cria
e não cria este homem, porque era tão imperfeita a fé com que cria, que por uma
parte parecia e era fé, e por outra parecia e era incredulidade: Uno eodemque
tempore, et credebat, et incredulus erat. Tal é a fé dos brasis: é fé que
parece incredulidade, e é incredulidade que parece fé; é fé, porque creem sem
dúvida e confessam sem repugnância tudo o que lhes ensinam, e parece
incredulidade, porque, com a mesma facilidade com que aprenderam, desaprendem,
e com a mesma facilidade, com que creram, descreem.
Assim
lhe aconteceu a São Tomé com ele. Por que vos parece que passou São Tomé tão
brevemente pelo Brasil, sendo uma região tão dilatada e umas terras tão vastas?
É que receberam os naturais a fé que o santo lhes pregou com tanta facilidade e
tão sem resistência nem impedimento, que não foi necessário gastar mais tempo
com ele. Mas tanto que o santo apóstolo pôs os pés no mar — que este, dizem,
foi o caminho por onde passou à Índia — tanto que o santo apóstolo — digamo-lo
assim — virou as costas, no mesmo ponto se esqueceram os brasis de tudo quanto
lhes tinha ensinado, e começaram a descrer ou a não fazer caso de quanto tinham
crido, que é gênero de incredulidade mais irracional, que se nunca creram. Pelo
contrário, na Índia pregou São Tomé àquelas gentilidades, como fizera às do
Brasil: chegaram também lá os portugueses dali a mil e quinhentos anos, e que
acharam? Não só acharam a sepultura e as relíquias do santo apóstolo, e os
instrumentos de seu martírio, mas o seu nome vivo na memória dos naturais, e o
que é mais, a fé de Cristo, que lhes pregara, chamando-se cristãos de Santo
Tomé todos os que se estendem pela grande costa de Coromandel, onde o santo
está sepultado.
E
qual seria a razão por que nas gentilidades da Índia se conservou a fé de São
Tomé, e nas do Brasil não? Se as do Brasil ficaram desassistidas do santo
apóstolo pela sua ausência, as da Índia também ficaram desassistidas dele pela
sua morte. Pois, se naquelas nações se conservou a fé por tantos centos de
anos, nestas por que se não conservou? Porque esta é a diferença que há de umas
nações a outras. Nas da Índia, muitas são capazes de conservarem a fé sem assistência
dos pregadores; mas nas do Brasil nenhuma há que tenha esta capacidade. Esta é
uma das maiores dificuldades que tem aqui a conversão. Há-se de estar sempre
ensinando o que já está aprendido, e há-de de estar-de sempre plantando o que
já está nascido, sob pena de se perder o trabalho e mais o fruto. A estrela que
apareceu no Oriente aos Magos guiou-os até o presépio, e não apareceu mais. Por
quê?
Porque
muitos gentios do Oriente, e doutras partes do mundo, são capazes de que os
pregadores, depois de lhes mostrarem a Cristo, se apartem dele e os deixem.
Assim o fez S. Filipe ao eunuco da rainha Candace, de Etiópia: explicou-lhe a
Escritura de Isaías, deu-lhe notícia da fé e divindade de Cristo, batizou-o no
rio de Gaza, por onde passavam, e tanto que esteve batizado, diz o texto que
arrebatou um anjo a S. Filipe, e que o não viu mais o eunuco: Cum autem ascendissent
de aqua, Spiritus Domini rapuit Philippum, et amplius non vidit eum eunuchus
(At. 8, 39). Desapareceu a estrela, e permaneceu a fé nos Magos; desapareceu S.
Filipe, e permaneceu a fé no eunuco; mas esta capacidade, que se acha nos
gentios do Oriente, e ainda nos de Etiópia, não se acha nos do Brasil. A
estrela que os alumiar não há de desaparecer, sob pena de se apagar a luz da
doutrina; o apóstolo que os baptizar, não se há-de ausentar, sob pena de se perder
o fruto do Batismo. É necessário, nesta vinha, que esteja sempre a cana da
doutrina arrimada ao pé da cepa, e atada à vide, para que se logre o fruto e o
trabalho.
Os
que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis
naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito
diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito
a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez,
não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma
figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se
dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela,
para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um
ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem
dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma
confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e
outras na doutrina da fé.
Há
umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente
recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam
com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam,
replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez
que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore:
não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e
estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande
docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem
resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o
jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a
ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o
mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o
que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que
não deem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o
que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros
da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do
tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não
natural, e compostura dos ramos.
Eis
aqui a razão por que digo que é mais dificultosa de cultivar esta gentilidade,
que nenhuma outra do mundo: se os não assistis, perde-se o trabalho, como o
perdeu São Tomé; e para se aproveitar e lograr o trabalho, há-de ser com outro
trabalho maior, que é assisti-los; há-se de assistir e insistir sempre com ele,
tornando a trabalhar o já trabalhado e a plantar o já plantado, e a ensinar o
já ensinado, não levantando jamais a mão da obra, porque sempre está por obrar,
ainda depois de obrada. Hão-se de haver os pregadores evangélicos na formação
desta parte do mundo, como Deus se houve ou se há na criação e conservação de
todo. Criou Deus todas as criaturas no princípio do mundo em seis dias, e,
depois de as criar, que fez e que faz até hoje? Cristo o disse: Pater meus
usque modo operatur et ego operor :
Desde o princípio do mundo até hoje não levantou Deus mão da obra, nem por um
só instante; e com a mesma ação com que criou o mundo, o esteve sempre, e está,
e estará conservando até o fim deles. E se Deus o não fizer assim, se desistir,
se abrir mão da obra por um só momento, no mesmo momento perecerá o mundo, e se
perderá tudo o que em tantos anos se tem obrado. Tal é no espiritual a condição
desta nova parte do mundo, e tal o empenho dos que têm à sua conta a conversão
e reformação dela. Para criar, basta que trabalhem poucos dias; mas para
conservar, é necessário que assistam, e continuem, e trabalhem, não só muitos
dias e muitos anos, mas sempre. E já pode ser que esse fosse o mistério com que
Cristo disse aos apóstolos: Praedicate omni creaturae (MC. 16,15). Não disse:
Ide pregar aos que remi, senão: Ide pregar aos que criei, porque o remir foi
obra de um dia, o criar é obra de todos os dias. Cristo remiu uma só vez, e não
está sempre remindo; Deus criou uma vez, e está sempre criando. Assim se há-de
fazer nestas nações: há-de aplicar-se-lhes o preço da Redenção, mas não pelo
modo com que foram remidas, senão pelo modo com que foram criadas. Assim como
Deus está sempre criando o criado, assim os mestres e pregadores hão-de estar
sempre ensinando o ensinado, e convertendo o convertido, e fazendo o feito: o
feito para que se não desfaça; o convertido, para que se não perverta; o
ensinado, para que se não esqueça; e, finalmente, ajudando a incredulidade não
incrédula, para que a fé seja fé não infiel: Credo, Domine: adjuva incredulita
tem meam .
E sendo tão forçosamente necessária a assistência com estas gentes, e no seu
clima, e no seu trato, e na sua miséria, e em tantos outros perigos e
desamparos da vida, da saúde, do alívio, e de tudo o que pede ou sente o
natural humano, vede se é necessário muito cabedal de amor divino para esta
empresa, e se com razão entrega Cristo o magistério dela a um Deus, que, por
afeto, e por efeitos, todo é amor: Ille vos docebit omnia .
(cont)