Tempo Comum
Semana II
Evangelho:
Mc 3, 1-6
1 Novamente
entrou Jesus na sinagoga, e encontrava-se lá um homem que tinha uma das mãos
atrofiada. 2 Observavam-n'O a ver se curaria em dia de sábado, para
O acusarem. 3 Jesus disse ao homem que tinha a mão atrofiada: «Vem
para o meio». 4 Depois disse-lhes: «É lícito em dia de sábado fazer
bem ou fazer mal? Salvar a vida a uma pessoa ou tirá-la?». Eles, porém,
calaram-se. 5 Então olhando-os com indignação, contristado da cegueira
de seus corações, disse ao homem: «Estende a tua mão». Ele estendeu-a, e a mão
ficou curada. 6 Mas os fariseus, retirando-se, reuniram-se logo em
conselho com os herodianos contra Ele para ver como O haviam de matar.
Comentário:
Aparentemente
este milagre que o Senhor faz em plena Sinagoga pode qualificar-se de um
desafio ou, até, de uma provocação aos que O criticam e desconsideram.
E... porque
não?
A melhor forma
de combater ou dar resposta aos maldizentes talvez seja a demonstração pura e
simples da verdade que se encerra em toda a actuação de Cristo.
O Evangelista
não o refere expressamente mas é muito possível que muitos desses tivessem
ficado "convencidos" nas suas dúvidas e tenham revisto os seus
critérios.
(ama, comentário sobre MC 3
1-6, Malta, 2015.01.21)
Leitura espiritual
Vida cristã
Formar o carácter na
virtude
A maturidade cristã
implica tomar as rédeas da nossa vida, perguntar-nos realmente, diante de Deus,
sobre o que nos falta ainda. Inicia-se então uma batalha para adquirir as
virtudes, com o nosso empenho e, sobretudo, com a ajuda do Senhor.
Tendo
ele saído para se pôr a caminho, veio alguém correndo e, dobrando os joelhos
diante d´Ele, suplicou-Lhe: Bom Mestre, que farei para alcançar a vida eterna? [i].
Nós, discípulos do Senhor,
presenciamos a cena com os Apóstolos e, talvez, nos surpreendamos com a
resposta: Por que me chamas bom? Só Deus
é bom [ii]
Jesus não dá uma resposta directa. Com suave pedagogia divina, quer dirigir
aquele jovem para o sentido último das suas aspirações: «Jesus mostra que a
pergunta do jovem é, na verdade, uma pergunta religiosa, e que a bondade que
atrai e simultaneamente vincula o homem, tem a sua fonte em Deus, mais, é o
próprio Deus, o único que é digno de ser amado "com todo o coração, com
toda a alma e com toda a mente"» [iii]
Para
entrar na Vida
O Senhor volta, em
seguida, às palavras daquela consulta audaz: que devo fazer? Se queres
entrar na vida – responde − observa
os mandamentos [iv].
Tal como o apresentam os
Evangelhos, o jovem é um judeu piedoso que poderia ter ficado satisfeito com
esta resposta; o Mestre confirmou-o nas suas convicções, pois descreve-lhe os
mandamentos que tem vivido desde a sua adolescência [v].
No entanto, quer ouvi-los da boca deste novo Rabi que ensina com autoridade.
Intui, e não se equivoca, que pode abrir-lhe horizontes insuspeitados.
Pergunta: Quais? [vi],
Jesus recorda-lhe os deveres que têm a ver com o próximo: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso
testemunho, honra teu pai e tua mãe, amarás o teu próximo como a ti mesmo [vii].
São os preceitos – a chamada segunda tábua – que protegem «o bem da pessoa,
imagem de Deus, mediante a proteção dos seus bens» [viii].
Constituem a primeira etapa, o caminho para a liberdade, não a liberdade
perfeita, como afirma Santo Agostinho [ix];
dito de outro modo, são um primeiro passo no caminho do amor, mas ainda não o
amor amadurecido, plenamente satisfeito.
Que
me falta ainda?
O jovem conhece e vive
aqueles preceitos, mas algo no seu interior lhe pede mais; tem que haver –
pensa − algo mais que possa fazer. Jesus lê no seu coração: fixou nele o olhar, sentiu afeição por ele
[x].
E lança-lhe o desafio da sua vida:
Uma
só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um
tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me [xi].
Jesus Cristo pôs aquele
homem perante a sua consciência, perante a sua liberdade, perante o seu desejo
de ser melhor. Nós não sabemos em que medida entendeu o convite do Mestre,
embora pela sua própria pergunta − que me falta ainda? − pareça que ele
esperava outras "coisas para fazer". As suas disposições são boas,
embora talvez ainda não tivesse compreendido a necessidade de interiorizar o
sentido dos mandamentos do Senhor.
A vida, para a qual Deus
chama, não consiste unicamente em fazer coisas boas, mas em "ser
bons", virtuosos. Como costumava concretizar S. Josemaria [xii],
não basta ser bondadosos, mas bons, de acordo com o panorama imenso − só Deus é bom [xiii]
- que Jesus abre diante de nós.
A maturidade cristã
implica tomar as rédeas da nossa vida, perguntar-nos realmente, diante de Deus,
o que nos falta ainda. Obriga-nos a sair do refúgio confortável de quem é um
cumpridor da lei para descobrir que o que conta é seguir Jesus, apesar dos
próprios erros. Deixamos então que os seus ensinamentos transformem o nosso
modo de pensar e de sentir. Experimentamos que o nosso coração, antes pequeno e
estreito, dilata-se com a liberdade que Deus nele colocou: correrei pelo
caminho dos vossos mandamentos, porque sois Vós que dilatais o meu coração. [xiv]
O
desafio da formação moral
O jovem não esperava que
"o que lhe faltava" fosse precisamente pôr a sua vida aos pés de Deus
e dos outros, perdendo a segurança de ser cumpridor. E retirou-se triste, como
sucede a todo aquele que prefere seguir apenas o seu próprio itinerário, em vez
de deixar que Deus o guie e o surpreenda.
Deus chamou-nos para viver
com a Sua liberdade - hac libertate nos
Christus liberavit [xv]
- e, no fundo, o nosso coração não se conforma com menos.
Amadurecer, é aprender a
viver de acordo com uns ideais elevados. Não se trata simplesmente de conhecer
uns preceitos ou de adquirir uma visão cada vez mais aperfeiçoada das
repercussões dos nossos atos. Decidir-se a ser bons – santos, em última análise
– supõe identificar-se com Cristo, sabendo descobrir as razões do estilo de
vida que Ele nos propõe. Implica, portanto, saber o significado das normas
morais, que nos ensinam a que bens precisamos de aspirar, como devemos viver
para alcançar uma existência plena. E isto consegue-se incorporando no nosso
modo de ser as virtudes cristãs.
Os
pilares do carácter
O saber moral não é um
discurso abstracto, nem uma técnica.
A formação da consciência
requer um fortalecimento do carácter que se apoia nas virtudes como seus
pilares. Estas são a base da personalidade, estabilizam-na, transmitem-lhe
equilíbrio. Fazem-nos capazes de sair de nós mesmos, do egocentrismo, e direccionar
o foco dos nossos interesses para fora de nós próprios, para Deus e para os
outros. A pessoa virtuosa está centrada, é ponderada em tudo, é recta, íntegra,
de uma só peça.
Por sua vez, aquele que
carece de virtudes, dificilmente será capaz de empreender grandes projetos ou
de dar forma aos grandes ideais. A sua vida estará feita de improvisos e
oscilações, de modo que não será fiável, nem sequer para si mesmo.
Fomentar as virtudes
expande a nossa liberdade. Não tem nada a ver a virtude com a habituação ou com
a rotina. Desde logo, para que ganhe raízes um hábito operativo bom, para que
cristalize no nosso modo de ser e nos leve a fazer o bem com mais facilidade,
não basta uma única acção. A repetição sucessiva, ajuda a que se estabilizem os
hábitos: faz-nos bons sendo bons. Repetir a resolução de pôr-se a estudar a uma
hora, por exemplo, faz com que a segunda vez nos custe menos do que a primeira,
e a terceira um pouco menos do que a segunda..., mas deve-se perseverar na
determinação de pôr-se a estudar para manter o hábito de estudo, porque de
outro modo perde-se.
A
renovação do espírito
As virtudes humanas e
sobrenaturais, orientam-nos para o bem, para aquilo que preenche as nossas
aspirações. Ajudam-nos a alcançar a autêntica felicidade, que consiste em
unir-se a Deus: a vida eterna consiste em que conheçam a Ti, um só Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste [xvi].
Dão facilidade para agir de acordo com os preceitos morais, que já não se veem
apenas como normas a cumprir, mas como um caminho que conduz à perfeição
cristã, à identificação com Jesus Cristo, de acordo com o estilo de vida das
bem-aventuranças, que são como que o retrato do Seu rosto e «referem-se a
atitudes e disposições de fundo da existência» [xvii]
que conduzem à vida eterna.
Abre-se, então, um caminho
de crescimento na vida cristã, segundo as palavras de S. Paulo: transformai-vos pela renovação do vosso espírito,
para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe
agrada e o que é perfeito [xviii].
A graça transforma o modo
como julgamos os diferentes acontecimentos, e dá-nos novos critérios para
atuar. Progressivamente, aprendemos a ajustar o nosso modo de ver as coisas com
a vontade de Deus, que também se expressa na lei moral, de modo que amamos o
bem, a vida santa, e gostamos do que é bom, Lhe agrada e é perfeito [xix].
Alcança-se a maturidade moral e afectiva, do ponto de vista cristão, que leva a
apreciar facilmente o que é verdadeiramente nobre, verdadeiro, justo e bonito,
e a rejeitar o pecado, que ofende a dignidade dos filhos de Deus.
Este caminho leva a
formar, como dizia S. Josemaria, uma «alma de critério» [xx].
Mas quais são as características deste critério? Noutro momento, ele
acrescentava: «o critério pressupõe maturidade, firmeza de convicções,
conhecimento suficiente da doutrina, delicadeza de espírito, educação da
vontade» [xxi].
Que grande retrato da
personalidade cristã: uma maturidade que nos ajuda a tomar decisões, com
liberdade interior, e a torná-las próprias, isto é, com a responsabilidade de
quem sabe dar conta delas; umas convicções fortes e seguras, baseadas num
conhecimento profundo da doutrina cristã que alcançamos através de aulas ou
palestras de formação, de leituras, da reflexão e, especialmente, do exemplo de
outros, pois as «verdadeiras estrelas da nossa vida são as pessoas que souberam
viver com retidão» [xxii].
Isto relaciona-se com a delicadeza de espírito, que se traduz na amabilidade
para com os outros e na educação da vontade que se decide a levar uma vida virtuosa.
Uma alma de critério, portanto, sabe perguntar-se nas diferentes
circunstâncias: que espera Deus de mim?
Pede luzes ao Espírito
Santo, recorre aos princípios que assimilou, aconselha-se com quem pode ajudar,
e sabe atuar em conformidade.
Fruto
do amor
Assim entendido, o
comportamento moral − que se concretiza em viver os mandamentos com a força da
virtude − é fruto do amor, que nos compromete com a procura e a promoção do
bem. Um amor assim, vai além do sentimento, que pela sua própria natureza é flutuante
e efémero: não depende dos estados de ânimo do momento, do que me apetece, ou
do quer me agradaria numa determinada circunstância.
Pelo contrário, amar e ser
amado pressupõe um dar-se, que se baseia no atractivo que originam no coração o
saber-se amado por Deus e aqueles grandes ideais pelos quais vale a pena
penhorar a liberdade: «na entrega voluntária, em cada instante dessa dedicação,
a liberdade renova o amor e renovar-se é ser continuamente jovem, generoso,
capaz de grandes ideais e de grandes sacrifícios» [xxiii]
A perfeição cristã não se
limita ao cumprimento de umas normas, nem ao desenvolvimento isolado de
capacidades como o autocontrole ou a eficiência. Impulsiona, em vez disso,
entregar a liberdade ao Senhor, para responder ao Seu convite: vem e segue-Me [xxiv],
com a ajuda da Sua graça.
Trata-se de viver segundo
o Espírito [xxv],
movidos pela caridade, de modo que se deseja servir os outros, e compreende-se
que a lei de Deus é a via privilegiada para realizar esse amor livremente
escolhido.
Não é questão de cumprir
umas regras, mas de aderir a Jesus, de compartilhar a Sua vida e o Seu destino,
obedecendo à vontade do Pai.
Sem
ser perfeccionistas
Este esforço para crescer
nas virtudes é alheio a qualquer afã narcisista de perfeição.
Lutamos por amor ao nosso
Pai Deus e é n'Ele que temos fixo o olhar e não em nós mesmos. Convém,
portanto, rejeitar a tendência para o perfeccionismo, que poderia talvez surgir,
se planeássemos erroneamente a nossa luta interior de acordo com uns critérios
de eficácia, rigor, rendimento..., muito em voga nalguns contextos
profissionais, mas que descaracterizam a vida moral cristã.
A santidade consiste
principalmente em amar a Deus.
Na verdade, a maturidade
leva a harmonizar o desejo de actuar bem, com as limitações reais que
experimentamos em nós mesmos e nos outros. Às vezes, podemos ter vontade de
dizer com São Paulo: não entendo,
absolutamente, o que faço, pois não faço o que quero; faço o que aborreço (...)
Homem infeliz que sou! Quem me livrará
deste corpo que me acarreta a morte? [xxvi].
No entanto, não perderemos
a paz, porque Deus nos diz o mesmo que ao Apóstolo: basta-te a Minha graça [xxvii].
Enchemo-nos de
agradecimento e esperança, porque o Senhor conta com as nossas limitações,
desde que nos incentivem a converter-nos e a recorrer à Sua ajuda.
Mais uma vez, o cristão
encontra um ponto de apoio na primeira resposta de Jesus ao jovem: só Deus é bom [xxviii].
Da bondade de Deus vivemos
os seus filhos. Ele dá-nos a força para orientar toda a nossa vida para o que é
verdadeiramente valioso, de compreender o que é bom e querê-lo, de dispor de
nós mesmos com vista à missão que Ele nos confiou.
j.m.
barrio ‒ r. valdés
(Revisão
da versão portuguesa por ama)
[iii] S. João Paulo II, Enc. Veritatis splendor (6-VIII-1993),
n. 9. Cfr. Mt 22, 37.
[viii] S. João Paulo II, Enc. Veritatis splendor, n. 13.
[ix] Cfr. In Ioannis Evangelium Tractatus, 41,
9-10 (cit. em Veritatis splendor, n.
13).
[xii] Cfr. S. Josemaria, Caminho, n. 337.
[xvii] S. João Paulo II, Enc. Veritatis splendor, n. 16.
[xx] S. Josemaria, Caminho, Ao leitor.
[xxi] S. Josemaria, Temas actuais do cristianismo, n. 93.
[xxii] Bento XVI, Enc. Spe salvi (30-XI-2007), n. 49.
[xxiii] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 31.