Quaresma
Semana Santa
Evangelho:
Mt 26, 14-25
14 Então um
dos doze, que se chamava Judas Iscariotes, foi ter com os príncipes dos
sacerdotes, 15 e disse-lhes: «Que me quereis dar e eu vo-l'O
entregarei?». Eles prometeram-lhe trinta moedas de prata.16 E desde
então buscava oportunidade para O entregar. 17 No primeiro dia dos
ázimos, aproximaram-se de Jesus os discípulos, dizendo: «Onde queres que Te
preparemos o que é necessário para comer a Páscoa?». 18 Jesus
disse-lhes: «Ide à cidade, a casa de um tal, e dizei-lhe: “O Mestre manda
dizer: O Meu tempo está próximo, quero celebrar a Páscoa em tua casa com os
Meus discípulos”». 19 Os discípulos fizeram como Jesus tinha
ordenado e prepararam a Páscoa. 20 Ao entardecer, pôs-se Jesus à
mesa com os doze. 21 Enquanto comiam, disse-lhes: «Em verdade vos
digo que um de vós Me há-de 22 Eles, muito tristes, cada um começou a dizer:
«Porventura sou eu, Senhor?» 23 Ele respondeu: «O que mete comigo a
mão no prato, esse é que Me há-de trair. 24 O Filho do Homem vai certamente,
como está escrito d'Ele, mas ai daquele homem por quem será entregue o Filho do
Homem! Melhor fora a tal homem não ter nascido». 25 Judas, o
traidor, tomou a palavra e disse: «Porventura, sou eu, Mestre?». Jesus
respondeu-lhe: «Tu o disseste».
Comentário:
A traição tem sempre um preço
porque quem trai espera receber algo em troca.
Não se encontra grande compaixão
por um traidor porque o acto em si é repugnante seja qual for o objecto da
traição.
Mas pode – isso sim – haver perdão
para o que trai.
E se, como no caso de Judas, não
quiser ser perdoado?
Então o preço a pagar pela traição
pode atingir proporções gigantescas, muitíssimo superiores à paga recebida.
(ama,
comentário sobre MT 26, 14-25, 2015.04.01)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO - CONFISSÕES
CAPÍTULO
V
A
origem do mal
Eu buscava a origem do
mal, mas de modo erróneo, e não via o erro que havia no meu modo de buscá-la.
Desfilava diante dos olhos da minha alma toda a criação, tanto o que podemos ver
– como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os animais – como o que
não podemos ver – como o firmamento, e todos os anjos e seres espirituais.
Estes, porém, como se também fossem corpóreos, colocados pela minha imaginação nos
seus respectivos lugares. Fiz da tua criação uma espécie de massa imensa,
diferenciada em diversos géneros de corpos; uns, corpos verdadeiros, e
espíritos, que eu imaginava como corpos.
E eu imaginava-a não tão
imensa quanto ela realmente era – o que seria impossível – mas quanto me
agradava, embora limitada por todos os lados. E a ti, Senhor, como a um ser que
a rodeava e penetrava por todas as partes, infinito em todas as direcções, como
se fosses um mar incomensurável, que tivesse dentro de si uma esponja tão
grande quanto possível, limitada, e toda embebida, em todas as suas partes,
desse imenso mar.
Assim é que eu concebia a
tua criação finita, cheia de ti, infinito, e dizia: “Eis aqui Deus, e eis aqui
as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente mais excelente que
as suas criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede como as
abraça e penetra! Onde está pois o mal? De onde e por onde conseguiu penetrar
no mundo? Qual é a sua raiz e sua semente?
E se tememos em vão, o
próprio temor já é certamente um mal que atormenta e espicaça sem motivo o nosso
coração; e tanto mais grave quanto é certo que não há razão para temer.
Portanto, ou existe o mal que tememos, ou o próprio temor é o mal. Donde, pois,
procede o mal se Deus, que é bom, fez boas todas as coisas? Bem superior a
todos os bens, o Bem supremo, criou sem dúvida bens menores do que ele. De onde
pois vem o mal? Acaso a matéria de que se serviu para a criação era corrompida
e, ao dar-lhe forma e organização, deixou nela algo que não converteu em bem?
E por quê isto? Acaso,
sendo omnipotente, não podia mudá-la, transformá-la toda, para que nela não
restasse semente do mal? Enfim, por que se utilizou dessa matéria para criar?
Por quê a sua omnipotência não a aniquilou totalmente? Poderia ela existir
contra a sua vontade? E, se é eterna, por que a deixou existir por tanto tempo
no infinito do passado, resolvendo tão tarde servir-se dela para fazer alguma
coisa? Ou, já que quis fazer de súbito alguma coisa, sendo omnipotente, não
poderia suprimir a matéria, ficando ele só, bem total verdadeiro, sumo e
infinito? E, se não era conveniente que, sendo bom, não criasse nem produzisse
bem algum, por que não destruiu e aniquilou essa matéria má, criando outra que
fosse boa e com a qual plasmar toda a criação?
Porque ele não seria
omnipotente se não pudesse criar algum bem sem a ajuda dessa matéria que não
havia criado.”
Tais eram os pensamentos do
meu pobre coração, oprimido pelos pungentes temores da morte, e sem ter
encontrado a verdade. Contudo, arraigava sempre mais em meu coração a fé do teu
Cristo, nosso Senhor e Salvador, professada pela Igreja Católica; fé ainda incerta,
certamente, em muitos pontos, e como que flutuando fora das normas da doutrina.
A minha alma porém não a abandonava, e cada dia mais se abraçava a ela.
CAPÍTULO
VI
O
absurdo dos horóscopos
Também já havia rechaçado
as enganosas predições e ímpios delírios dos astrólogos.
Ainda por isso, meu Deus,
quero confessar-te as tuas misericórdias desde o mais íntimo da minha alma!
Foste tu, e só tu – pois, quem pode afastar-nos da morte do erro, senão a Vida
que desconhece a morte, a Sabedoria que ilumina as pobres inteligências sem
precisar de outra luz, e que governa o mundo até as folhas que tremulam nas
árvores? Foste tu que medicaste a obstinação com que me opunha ao sábio velho
Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que diziam – o primeiro, com
veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente – não existir a
tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos homens muitas
vezes têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavam em predizer
algumas coisas, sem que os mesmos que as diziam o soubessem.
Foste tu que me fizeste
encontrar um amigo mui afeiçoado a consultar os astrólogos, não entendido nessa
ciência, mas que consultava por curiosidade. Ele conhecia uma história, que ouvira
do pai, segundo dizia. Ignorava até que ponto essa história era valiosa para destruir
a autoridade daquela arte.
Esse homem, chamado
Firmino, educado nas artes liberais e instruído na eloquência, veio consultar-me,
como amigo íntimo, sobre alguns assuntos nos quais alimentava esperanças mundanas,
para ver qual seria o meu vaticínio conforme as suas constelações, como eles
dizem. Eu, que já começara a inclinar-me para a opinião de Nebrídio, embora não
me negasse a fazer-lhe o horóscopo e expor-lhe as suas conclusões, acrescentei,
contudo, que estava quase persuadido de que tudo aquilo era ridícula quimera.
Então, ele contou-me que
seu pai tinha grande interesse na leitura de tais livros, e que tivera um amigo
igualmente apaixonado. Conversando sobre a matéria, empolgaram-se cada vez mais
no estudo daquelas tolices, e chegaram ao ponto de observar os momentos do
nascimento até dos animais domésticos, notando a posição das estrelas a fim de
coligir dados experimentais daquela pseudo-arte.
Firmino relatava-me ter
ouvido o pai contar que, estando a sua mãe para o dar à luz, uma serva daquele
amigo também estava grávida de seu pai, coisa que não poderia passar despercebida
ao seu senhor, que cuidava com extrema diligência e precisão de conhecer até o
parto das cadelas.
E sucedeu que, contando
com o maior esmero os dias, horas e as suas menores parcelas, da esposa e da
escrava, ambas as mulheres deram à luz no mesmo momento, o que os obrigou a fazer,
até em seus menores detalhes os mesmos horóscopos para os nascidos, um para o
filho e outro para o pequeno servo.
Tendo começado o trabalho
de parto, informaram-se um ao outro o que se passava nas suas casas, e enviaram
mensageiros um ao outro, a fim de anunciar com igual rapidez o nascimento das
crianças; e conseguiram fazê-lo facilmente, como se o facto se passasse em suas
próprias casas. E Firmino contava que os mensageiros que haviam sido enviados
vieram a encontrar-se à mesma distância das suas respectivas casas, de modo que
não se podia notar a menor diferença na posição das estrelas, assim como nas
demais fracções de tempo. No entanto Firmino, como filho de grande família,
corria pelos mais brilhantes caminhos do mundo, crescia em riquezas e era
coberto de honras, ao passo que o escravo, sujeito ainda ao jugo da escravidão,
tinha que servir os seus senhores, segundo ele próprio contava, pois o
conhecia.
Ouvindo essa história, na
qual acreditei pelo crédito que merecia o seu narrador – toda a minha
resistência se quebrou. Esforcei-me em seguida para afastar Firmino daquela vã curiosidade,
dizendo-lhe que, pelo seu horóscopo e para ser verdadeiro, deveria certamente considerar
seus pais como os primeiros entre seus concidadãos; o renome da sua família, a mais
nobre da cidade; o seu nascimento ilustre, a sua educação esmerada e os seus
conhecimentos nas artes liberais. E, pelo contrário, se aquele servo me
consultasse sobre o tal horóscopo – que era o mesmo de Firmino – se também
tivesse de lhe dizer a verdade – deveria ver nos mesmo sinais os sua família paupérrima,
a sua condição servil e tantas outras coisas, tão diferentes e opostas às primeiras.
Portanto, para dizer a
verdade, vendo os mesmos sinais celestes deveria tirar conclusões divergentes,
porque fazer prognósticos semelhantes seria mentir.
Donde concluí, com toda a certeza,
que as predições verdadeiras não se podem atribuir a uma arte, mas ao acaso, e
que as falsas não se devem à ignorância dessa arte, mas à mentira do acaso.
Após esta abertura e nela
baseado, ruminava dentro de mim tais coisas, para que nenhum daqueles loucos
que buscam nisso o lucro, e a quem eu então desejava refutar e ridicularizar,
não me objectasse que Firmino ou o pai podiam ter contado mentiras. Voltei pois
a minha atenção ao caso dos gémeos, muitos dos quais saem do seio materno com
tão breve intervalo de tempo, que por mais que o pretendam importante, não pode
ser apreciado pela observação humana, nem pode ser considerado nos signos de que
o astrólogo lançará mão para fazer uma previsão certa. Mas os vaticínios não
serão verdadeiros pois, vendo os mesmos signos, deveria predizer a mesma sorte para
Esaú e Jacob, sendo que os acontecimentos da vida de ambos foram muito diversos.
O astrólogo, portanto,
deveria prognosticar coisas falsas, ou, no caso de falar coisas verdadeiras,
estas forçosamente deveriam ser diferentes, a despeito da identidade das observações.
Logo, se os seus prognósticos fossem verdadeiros, não o seriam por efeito da
arte, mas do acaso. Porque tu, Senhor, governador justíssimo do Universo, por
inspiração secreta, desconhecida dos consulentes e astrólogos, fazes que cada
um ouça a resposta que lhe convém, de acordo com os méritos das almas, do fundo
do abismo do teu justo juízo. E que o homem não se atreva a dizer: Que é isto?
Por quê isto? Não o diga, não o diga, porque é um simples homem.
(Revisão
de versão portuguesa por ama)