A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO XXII
Depois da ressurreição os corpos dos
santos serão espiritualizados, sem que a carne se transforme em espírito.
Depois da ressurreição os corpos dos justos de mais nenhuma árvore terão
necessidade para não morrerem de doença ou de extrema velhice, nem de qualquer
alimento corporal com que satisfaçam a necessidade de comer ou de beber.
Estarão revestidos de um seguro e inviolável privilégio de imortalidade de
forma que só comerão se quiserem, mas não serão a isso constrangidos. Isso também
os anjos o fizeram, aparecendo sob uma forma visível e palpável — não porque
tivessem fome mas porque o puderam e quiseram para se adaptarem aos homens,
humanizando o seu ministério (porque não é de crer que, quando os homens lhes
dispensavam hospitalidade, só na aparência é que comiam), embora tenha parecido àqueles que ignoravam a sua qualidade de
anjos que eles comiam, como nós, por necessidade. Daí o que disse o anjo no
livro de Tobias:
Víeis-me comer, mas era com os vossos olhos que me víeis,[i]
isto é, «julgáveis que eu tomava o alimento por necessidade de refazer o corpo
como vós fazeis». Talvez para os anjos haja um a explicação mais aceitável. Mas
a nossa fé cristã não duvida, acerca do Salvador, de que Ele, mesmo depois da
ressurreição comeu e bebeu com os seus discípulos, em carne de certo espiritual,
mas verdadeira carne. Na verdade, o que a tais corpos será tirado, não é a faculdade, mas a necessidade de beber e de comer. Segue-se disto que
eles serão espirituais, não porque deixarão de ser corpos, mas porque subsistirão graças à vida do espírito.
CAPÍTULO XXIII
Que se deve entender por corpo
animal e corpo
espiritual; e quais são os que morrem
em Adão e os que são vivificados em Cristo.
Assim como se chama «corpos animais»
aos corpos que ainda não têm o «espírito vivificante», mas têm uma «alma
vivente» (sem, contudo, serem almas nos corpos) — assim também aos corpos
ressuscitados se chama «corpos espirituais». Longe de nós, porém, crermos que
sejam espíritos! Serão corpos com uma substância de carne, mas que não sofrerão, graças ao espírito vivificante, a menor corrupção ou o
entorpecimento da carne. O homem já não será então terrestre, mas celeste, não
porque o seu corpo, feito da terra, deixe de ser o mesmo, mas porque um dom celeste
o tornará apto a habitar mesmo no Céu, sem mudar de natureza, mas sim de
qualidade. Mas o primeiro homem terrestre, porque tirado da terra, foi criado com «alma vivente» e não
com «espírito vivificante» — o que lhe estava reservado com o prémio da sua
obediência. O seu corpo tinha necessidade de com ida e de bebida para não
sofrer de fome e de sede. Estava garantido contra uma morte fatal, não por absoluta e indissolúvel imortalidade, mas pela árvore
da vida que também o mantinha na flor da juventude; mas não há dúvida de que
não era um corpo espiritual, mas animal, sem, contudo, estar destinado a morte
se o homem, pecando, não tivesse incorrido na condenação de que Deus o tinha ameaçado.
Sem que lhe fossem negados os alimentos fora do Paraíso, ficou, porém, privado da árvore da
vida e entregue ao tempo e à velhice, para acabar os dias de uma vida que, se
não tivesse pecado, podia ser perpétua no Paraíso, embora com corpo animal, até
que, graças ao prémio da obediência, chegasse a ser espiritual.
É por isso que — mesmo considerando esta morte manifesta que separa a alma do
corpo como referida também nestas palavras que Deus proferiu:
No dia em que dele comerdes, é de morte que haveis de morrer,[ii]
— não deve parecer absurdo que esta separação do corpo não tenha tido lugar no
próprio dia em que comeram do alimento proibido e mortífero. E certo que, desde
esse dia, a sua natureza se deteriorou e ficou viciada e, pela justíssima
privação da árvore da vida, surgiu neles a fatalidade da morte corporal com a
qual nós nascemos. E por isso que o Apóstolo não diz «o corpo deve morrer por
causa do pecado», mas diz:
Realmente, o corpo morreu por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça.[iii]
E acrescenta:
Se o Espírito daquele que ressuscitou Cristo dos mortos habita em vós, o que ressuscitou Cristo dos mortos vivificará também os vossos corpos mortais pelo seu Espírito que habita em vós [iv]
O corpo estará, portanto, então, com um «espírito vivificante», ao passo que
agora está com uma «alma vivente»; e, todavia, o Apóstolo chama-lhe já morto
porque já está sujeito à fatalidade da morte. Mas outrora estava com uma «alma
vivente» sem estar com um «espírito vivificante» e, contudo, não seria correcto
chamar-lhe «morto» porque só o pecado poderia sujeitá-lo à fatalidade da morte. Assim, ao dizer:
Deus referiu-se à morte da alma — a morte que surge quando ele a abandona; e ao
dizer:
És terra e voltarás à terra,[vi]
referiu-se à morte do corpo — a morte que se verifica quando a alma o deixa.
Por isso é de crer que nada disse da morte «segunda», que quis que se
mantivesse secreta para a anunciar no Novo Testamento, no qual ela é
abertamente anunciada. Era preciso, antes de tudo, que a «primeira morte», com
um a todos, fosse revelada como proveniente do pecado que se tornou a todos com
um pelo facto de um só; mas a «segunda morte» não é com um a todos pois dela se
exceptuam aqueles
que, segundo decisão sua, (Deus) chamou, previu e predestinou a,[vii]
como diz o Apóstolo,
tornarem-se conformes com a imagem de seu Filho, para que este Filho fosse o primogénito de muitos irmãos.[viii]
A todos estes, preservou a graça de Deus, pelo Mediador, da segunda morte. Com
o diz o Apóstolo, foi num corpo animal que o primeiro homem foi feito.
Querendo, de facto, distinguir o corpo animal, que temos agora, do corpo
espiritual, que teremos na ressurreição, diz:
Foi semeado na corrupção, ressuscitará na incorruptibilidade;
foi semeado na ignomínia, ressuscitará na glória
foi semeado na debilidade, ressuscitará na pujança;
foi semeado corpo animal, ressuscitará corpo espiritual.[ix]
Para o provar declara:
Se há um corpo animal, também haverá um corpo espiritual .[x]
e para mostrar o que é um corpo animal, acrescenta:
Assim está escrito: o primeiro homem Adão foi feito numa alma vivente.[xi]
Quis, portanto, mostrar desta forma o que é o corpo animal, embora do primeiro homem,
chamado Adão, quando pelo sopro de Deus uma alma lhe foi criada, a Escritura não
tenha dito: «Ele foi feito num corpo animal» mas
O homem foi feito numa alma vivente.[xii]
Portanto, com o que está escrito:
O homem foi feito numa alma vivente,[xiii]
quis o Apóstolo designar o corpo animal do homem. Como se há-de entender o
«espiritual», declara-o, dizendo:
O novo Adão em espírito vivificante,[xiv]
designando, sem sombra de dúvida, Cristo, que, ressuscitado dos mortos, já não
morrerá mais. Até que acaba por dizer:
O primeiro não é o espiritual mas o que é animal; depois é que
vem o corpo espiritual.[xv]
Mostra aqui muito mais claramente que pretendeu designar o corpo animal ao
falar do primeiro homem feito em alma
vivente, e o corpo espiritual ao dizer:
O novo Adão em espírito vivificante.[xvi]
Em primeiro lugar há, efectivamente, o corpo animal — o do primeiro Adão —
posto que não destinado a morrer, salvo se pecasse; e é também o que nós temos agora,
degradado e viciado na sua natureza ao ponto de ficar sujeito, após o pecado, à
fatalidade da morte. (Foi tal corpo que o próprio Cristo se dignou assumir primeiro por nós, não por
imposição da fatalidade, mas por poder da vontade). Em seguida vem o corpo
espiritual, como aconteceu já, primeiro em Cristo, nossa cabeça, e como continuará
a acontecer nos seus membros na ressurreição derradeira dos mortos.
Depois o Apóstolo estabelece a evidentíssima diferença entre estes dois homens
ao dizer:
O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo vem
do céu. Tal o terrestre, tais também os terrestres; tal o celeste, tais também os
celestes. E da mesma forma que nós revestimos a imagem do terrestre,
revistamos também a imagem daquele que vem do céu.[xvii]
O que o Apóstolo assim afirma é o
que agora se opera em nós, conforme o sacramento da regeneração, como diz algures:
Todos vós que em Cristo fostes baptizados, de Cristo vos
revestistes.[xviii]
mas a realidade terá lugar quando o
que em nós há de animal ao nascermos, se torne espiritual ao ressuscitarmos. Para
usarmos das suas próprias palavras,
é na esperança que somos salvos.[xix]
Vestimo-nos da imagem do homem
terrestre pela transmissão da prevaricação e da morte que a geração nos
proporciona. Mas revestimos a imagem do homem celeste pela graça do perdão e da
vida perpétua que nos subministra a regeneração através do único Mediador de
Deus e dos homens — o homem Jesus Cristo. E a Este que o Apóstolo quer designar
por «homem celeste», porque veio do Céu para revestir um corpo de mortalidade
terrena que revestiria de imortalidade celeste. Também chama «celestes» aos
outros homens, mas é porque eles se tornam seus membros pela graça, para
formarem com ele um só Cristo, com o a cabeça e o corpo. E o que ele ainda mais
claramente expõe na mesma epístola:
Por um homem veio a morte e por um homem veio a ressurreição dos mortos. Assim como todos morrem em Adão, assim todos serão vivificados em Cristo.[xx]
Sê-lo-ão doravante num corpo espiritual que estará «num espírito vivificante»;
não porque todos os que morrem em Adão hão-de ser membros de Cristo (realmente
um grande número deles será ferido eternamente de segunda morte) — mas porque a
repetição da palavra «todos» (omnes) quer dizer que, assim com o ninguém
morre em seu corpo mortal senão em Adão, assim também ninguém é vivificado no
corpo espiritual senão por Cristo.
Longe de nós, pois, o pensamento de que na ressurreição teremos um corpo
idêntico ao do primeiro homem antes do pecado. Nem o dito:
Tal o terrestre, tais também os terrestres. [xxi]
se deve entender do estado produzido pelo pecado. Realmente, não se deve pensar
que, antes do pecado, o corpo do homem era espiritual e que, devido ao pecado,
se transformou em corpo animal. De facto, pensar assim seria prestar pouca
atenção às palavras de tão grande mestre (doctor) que declara:
Se há um corpo animal, também haverá um corpo espiritual;[xxii]
Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito numa alma vivente.[xxiii]
Porventura aconteceu isto depois do pecado, sendo para esta primeira condição
do homem que o bem-aventurado Paulo apela, com o testem unho da lei, para
explicar o corpo animal?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[ix] I Corínt., XV, 42-44.
[xx] I Corínt., XV, 21-22.
[xxi] I Corínt., XV, 47-49.